Uma economia à deriva

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Já é dado como certo por analistas econômicos que neste ano de 2019 a economia brasileira não superará o seu estado de anomia, oscilando entre a estagnação e uma recessão moderada. Do ponto de vista do curto prazo, que é o que mais interessa aqui, as trapalhadas políticas do governo Bolsonaro impediram que no seu início o capital político fosse utilizado para viabilizar a retomada da economia engendrando, ao menos, um voo da galinha. Em que medida, uma vez iniciada, esta retomada poderia se constituir num processo contínuo de crescimento é uma questão polêmica, sobretudo no que tange à sua intensidade e duração. Todavia, a questão prática objetiva e para além das conjecturas é que essa oportunidade foi perdida, tornando a volta do crescimento ainda mais problemática.

*Por Ricardo Carneiro no Observatório da Economia Contemporânea.

A afirmação anterior repousa na consideração dos dois fatores cuja interação condiciona a retomada: as expectativas favoráveis e a posição cíclica. No que tange às expectativas, ela é o ingrediente central da confiança que pode mover variáveis relevantes tais como: a valorização da bolsa, juros futuros e taxa de câmbio, ocasionando o efeito-riqueza, induzindo ao endividamento e ampliação do gasto dos agentes. Esses efeitos interagem com uma determinada posição cíclica da economia, acentuando-a ou amenizando-a. Como pano de fundo há que se considerar a trajetória da economia internacional, tanto da perspectiva do ciclo de liquidez quanto do comércio, como fatores que contribuem ou obstaculizam o crescimento doméstico.

No início do governo, as expectativas e seus indicadores mostraram-se muito favoráveis e poderiam ter produzido efeitos benéficos numa economia praticamente estagnada ou pelo menos em lenta recuperação. Como afirmado acima, caso essas expectativas se mantivessem favoráveis ou se acentuassem, ter-se-ia observado, ao menos, um voo da galinha. Contudo, elas se reverteram, jogando a economia de volta à estagnação ou quiçá para uma recessão moderada.

A situação internacional, por sua vez, tem tido impactos contraditórios nessa trajetória. De um lado, a mudança da postura do Federal Reserve (Fed) quanto à taxa de juros evitou o estouro da bolha e a reversão do ciclo de liquidez, que teria trazido sérias dificuldades à economia brasileira. De outro, a desaceleração do crescimento das economias desenvolvidas e da China e a guerra comercial têm se constituído num claro desestímulo via comércio internacional.

Para analisar em detalhe o que foi proposto acima, vejamos alguns dados e informações relevantes e como reforçam e aduzem novos elementos à análise. Iniciando pelo PIB, os dados do IBGE mostram um produto interno praticamente estagnado em doze meses, com crescimento de 0,9%. Entretanto, a medida que os dados se aproximam do período mais recente aparece uma desaceleração, aumento de apenas 0,5% no primeiro trimestre de 2019 contra trimestre homólogo e recessão de -0,2% ante o mesmo trimestre deste ano. As expectativas do mercado expressas no boletim Focus não são melhores: as previsões de crescimento em 2019 passaram por seguidas revisões e caíram de 2,5% em fevereiro para 1,3% em maio. Crescimento real em forte desaceleração e expectativas desfavoráveis tornam praticamente certas as previsões de estagnação ou recessão moderada.

O que dizer daqueles fatores mais gerais e que se constituem, por assim dizer, variáveis independentes do processo, tais como a trajetória da economia internacional e as expectativas favoráveis domésticas, fundadas na confiança inicial do novo governo? Desde o final de 2018, a economia internacional tem sido marcada pela desaceleração do crescimento e pela ampliação das incertezas sobre o futuro imediato, superando a fase de crescimento sincronizado prevalecente até então. Afora elementos cíclicos, que levaram à perda de dinamismo generalizado, principalmente da economia da União Europeia e da China, alguns fatores econômicos e geopolíticos entraram com força no radar. No que tange às previsões de crescimento do PIB, elas foram revistas e reduzidas por todas as agências internacionais relevantes. O FMI, por exemplo, reviu suas estimativas de crescimento para 2019 para o mundo de 3,8% para 3,3%; desenvolvidos, de 2,4% para 1,8% e emergentes e em desenvolvimento, de 4,8% para 4,4%. A guerra comercial entre China e Estados Unidos e seus impactos já efetivos e esperados é um elemento crucial de declínio do comércio e realimentação da desaceleração. Assim, a OMC reduziu muito significativamente a sua previsão de crescimento do comércio internacional em 2019, de 3,7% para 2,6%.

Com a reversão da política de normalização monetária e a sinalização da estabilização das taxas de juros de curto prazo no início de 2019, o Fed evitou o estouro da bolha com todos os seus efeitos disruptivos sobre a economia norte-americana e global. Todos os indicadores do desinflar desta última, como a cotação da bolsa que havia caído quase 20% no último trimestre de 2018, a ampliação dos spreads dos títulos de vários riscos e maturidades, queda de preços de commodities de 14%, queda dos fluxos de capitais para emergentes e valorização do dólar, foram revertidos. Assim, a bolha seguiu seu curso rumo a um estouro futuro, mas manteve para países emergentes como o Brasil condições de liquidez e preços de commodities favoráveis, porém, num contexto de desaceleração do crescimento do comércio internacional e de prováveis conflitos comerciais adicionais.

No plano doméstico, no que diz respeito ao desempenho de variáveis-chave e ao comportamento das expectativas, houve uma franca deterioração nos dois últimos meses, mas cabem alguns destaques. O par das variáveis mais relevantes, taxas de juros e de câmbio, traduz com precisão essa deterioração tanto do ponto de vista do comportamento efetivo quanto prospectivo. A cotação do real frente ao dólar chegou a atingir valores próximos a R$ 3,70 em janeiro, mas tem assumido valores crescentes desde março, chegando mais recentemente ao patamar de R$ 4,00. A julgar pelas expectativas do mercado, expressas no Boletim Focus, esse patamar será, pelo menos, mantido. O caso dos juros é patético. Com expectativas de inflação ancoradas, o BC poderia ter reduzido a Selic e criado um clima mais favorável ao crescimento e às expectativas de comportamento futuro dos juros. Não o fez e assistiu à alteração progressiva da curva de juros futuros na direção da elevação destes últimos.

No que tange às expectativas, um bom indicador é o índice de confiança empresarial da FGV que agrega as posturas empresariais para quatro setores: Indústria, Comércio, Serviços e Construção. De acordo com os últimos dados divulgados, esse índice se estabilizou em abril, após três meses de quedas sucessivas. Já o índice que mede as expectativas continuou se deteriorando pelo quarto mês consecutivo. Outro indicador importante produzido pela instituição, o de incerteza da economia brasileira, que estava estabilizado desde o início do governo Bolsonaro, sofreu um deslocamento abrupto em abril, aumentado 7,5% num único mês. Por fim, o índice que apresenta o pior desempenho é o de confiança do consumidor, com sucessivas quedas a partir de março e isto tanto para a confiança propriamente dita como para as expectativas. Aqui, um dado chama a atenção em particular: o índice de confiança por classe de renda mostra que as camadas de alta renda, cujo indicador se mantinha positivo até abril, desaba 7 pontos em maio.

A marcha contraditória da economia internacional e a deterioração das expectativas domésticas interagirá com uma economia com baixo patamar crescimento e em desaceleração, e muito provavelmente levará a um resultado negativo em 2019. No consumo das famílias, por exemplo, as expectativas eram de uma ligeira aceleração ante o ano de 2018, ampliando-se o crescimento de 1,9% para 2,6%. Porém, alcançar esse resultado não será trivial. Os últimos dados do IBGE, para o primeiro trimestre de 2019, já mostram um crescimento de 1,5% em quatro trimestres e com desaceleração: 1,3% comparado a trimestre homólogo de 2018 e 0,3% contra o último trimestre. O indicador de vendas reais do comércio varejista mostra estagnação ao longo do primeiro trimestre do ano. O dado positivo de 2,3% só aparece quando se considera o conceito amplo de faturamento, que inclui veículos e material de construção, com destaque para os primeiros. Ou seja, os dados do consumo mostram que o desempenho favorável está exclusivamente associado àqueles itens não dependentes da massa salarial, mas do crédito.

Essas constatações são coerentes com o quadro social atual do país de elevado desemprego, lento crescimento do emprego e estagnação dos salários que conformam um baixo dinamismo da massa salarial. Todavia, isto não é incompatível com a ampliação dos gastos de bens duráveis, de valor mais elevado por parte das famílias de renda mais alta por meio do crédito. Assim é que se observa um aumento significativo das concessões de crédito às famílias desde meados de 2018. E apesar da desaceleração do primeiro trimestre de 2019, o crescimento dessas concessões ainda é muito significativo, em torno de 10%. Contudo, a deterioração das expectativas e a continuidade da situação precária do mercado de trabalho tira fôlego, mas não elimina esse fator de dinamização do consumo.

Uma constatação importante quando se analisa a balança comercial brasileira é a da sua perda de dinamismo. A medida tendencial, o saldo em doze meses, mostra declínio sistemático do patamar de US$ 66 bilhões do segundo semestre de 2017 até setembro de 2018, quando passa a se manter estável. Contudo, desde o início de 2019 essa trajetória da balança comercial ocorre com características muito peculiares: tanto as exportações quanto as importações mostram taxa de crescimento negativa. Do ponto de vista dessas últimas, a desaceleração da produção e do investimento são determinantes cruciais. Já quanto às exportações, o mau desempenho é explicado pelos manufaturados que está associado à crise Argentina e à desaceleração do comércio global. Nesse quadro, não se pode esperar maiores contribuições do saldo comercial ao crescimento; ao contrário, a ampliação da desaceleração global, essa crise e a guerra comercial farão o nosso desempenho depender especialmente das commodities, o que nos dará alguma sustentação, mas não dinamismo.

O presidente Jair Bolsonaro fala à imprensa após reunião com o ministro da Economia, Paulo Guedes, no ministério.

A postura contracionista da política fiscal implicará uma contribuição negativa para o crescimento em 2019. Essa postura está, no curto prazo, determinada por duas regras fiscais: a regra de ouro e a do saldo primário. A primeira, que estabelece que o governo não pode se endividar para pagamento de despesas correntes, poderá ser revertida no Congresso. Já a segunda, embora possa ser revisada, constitui a pedra angular de sustentação da atual administração e será perseguida com afinco. Como já está provado aqui e alhures, uma postura de austeridade fiscal num quadro de desaceleração apenas a agrava. Metas de superávit primário não podem ser cumpridas, levando a uma espiral de corte de gastos e desaceleração subsequente. Esse é o quadro que já está instalado no Brasil em 2019.

O que esperar do investimento num contexto de expectativas desfavoráveis, estagnação da demanda agregada e elevada ociosidade? A sua trajetória é de forte desaceleração e declínio já mostrando variação negativa no primeiro trimestre, contra trimestre anterior, (-1,7%). Da indústria, que além da baixa utilização da capacidade ainda amarga um crescimento negativo, pouco será agregado ao investimento. A única possibilidade de algum dinamismo reside no investimento autônomo associado às concessões de infraestrutura e mineração. O governo Temer acelerou as concessões do pipeline construído no governo Dilma, concedendo um valor de R$ 175 bilhões que foram marginalmente completados com o pacote dos aeroportos no governo Bolsonaro. Embora os objetivos fiscais tenham prevalecido, as concessões desse período e dos anos anteriores deverão gerar investimentos anuais da ordem de R$ 80 bilhões.

O mesmo ocorrerá com as inversões da Petrobrás após um período de ajuste, agora concentrada em exploração e produção. O plano de negócios da empresa prevê investimentos anuais de cerca de RS 65 bilhões entre 2019 e 2023. O aumento dos preços do minério de ferro também induzirá investimentos da Vale, da ordem de R$ 10 bilhões em 2019. Pode-se também esperar algum dinamismo da construção residencial, alimentadas por uma moderada ampliação do crédito habitacional. Nesse caso, dados positivos de 2018, particularmente do último trimestre, transmutam-se em desaceleração quando se considera o primeiro trimestre de 2019 e fazem antever um patamar apenas um pouco mais elevado neste ano.

A despeito da existência de vetores claramente desfavoráveis ao crescimento, que vão de expectativas em deterioração à contração de grandes segmentos de demanda, a economia brasileira, por sua complexidade, possui alguns fatores de sustentação que podem evitar uma recessão expressiva. O crescimento, mesmo que pequeno, do consumo das famílias por meio do crédito, a sustentação do saldo comercial num patamar menor, mas significativo, e o componente autônomo do investimento, englobando construção civil residencial, projetos de infraestrutura, petróleo e gás e mineração, pode evitar uma recessão mais profunda, caso o quadro político doméstico e/ou internacional não se agravem. A médio prazo, as reformas ultra-liberalizantes da gestão Guedes-Bolsonaro podem produzir melhoras pontuais nas expectativas e alguns voos da galinha, turbinados por um otimismo circunstancial por conta das transferências de patrimônio público para o setor privado, e aumento da poupança fiscal decorrente do desmonte da política social, mas sem construir de fato um novo modelo de desenvolvimento. Se tudo der certo, apenas reintroduzirão no país um regime de baixo crescimento e de ampliação da exclusão social.

*Ricardo Carneiro é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp.

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