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Uma biografia política e teórica de Marx

Por Etienne Balibar, via Brado, traduzido por Elisa Amaro Bacelar

Reproduzimos aqui a primeira parte do texto Marx e o marxismo, de Étienne Balibar do seu livro Cinco Estudos Do Materialismo Histórico (1974), traduzido por Elisa Amaro Bacelar, originalmente publicado no blog “Brado!”.


Marx e o Marxismo

Karl Marx, nascido em Treves em 1818, morto em Londres em 1883, é o primeiro teórico do socialismo científico e o principal organizador do movimento operário internacional do seu tempo.

A apresentação e a análise da teoria de Marx não deixaram nunca de pôr em jogo lutas ideológicas, em última análise políticas. Estas lutas aparecem a partir do período da sua própria atividade. Continuam no segundo período da história do movimento operário moderno: o da formação dos partidos socialistas de massas e da II Internacional. No terceiro período: o do desenvolvimento do imperialismo e da revolução soviética. Não cessam no quarto, o período atual: o da generalização das lutas revolucionárias à escala mundial, mas que é também o período da cisão do movimento comunista internacional. Interessa sempre, para compreender estas lutas, atender à sua significação prática.

Este princípio aplica-se primeiro às controvérsias relativas à natureza e ao sentido da filosofia, da qual se pensa geralmente que «fundaria» a teoria e a prática do marxismo. Filosofia hegeliana como querem alguns (Marx seria a continuação de Hegel, ou Hegel aplicado a uma nova matéria)? ou filosofia anti-hegeliana, como pretendem outros (Marx seria Hegel invertido ou Hegel refutado)? Materialismo naturalista, onde a história humana aparece como o prolongamento da evolução biológica e até geológica, onde as «leis» da história seriam casos particulares de uma dialética universal da natureza? Ou então, e pelo contrário, filosofia antropológica e humanista, assente na «crítica» de todas as alienações da sociedade burguesa, no ideal ético de uma libertação do homem, na irredutibilidade criadora da prática humana na história? Mas a teoria de Marx é ao certo «fundada» numa filosofia? Estas discussões, que renascem periodicamente, podem parecer puramente especulativas; mas, em certas conjunturas históricas, puderam influenciar diretamente a linha política do movimento operário.(1) Voltaremos a este ponto.

Mas este princípio aplica-se igualmente às controvérsias sobre o papel de Marx na história do movimento operário, e em particular na Primeira Internacional, portanto sobre o empenhamento e o alcance das lutas de fracções que nela se desenrolaram, e sobre as circunstâncias da sua dissolução. Marx, esse jurista, esse filósofo, esse «sábio», teria sido de certa maneira o convidado do movimento operário, como pretende a maior parte dos historiadores burgueses, social-democratas, ou anarquistas? Terá introduzido do exterior no movimento operário uma teoria forjada por si como observador (e não participante direto) dos acontecimentos históricos? Terá sabido por uma hábil táctica fazer triunfar no movimento operário a sua própria tendência contra outras, esperando que o seu conflito conduzisse à cisão? Ou então, foi, pelo contrário (segundo a expressão da sua biógrafa soviética, E. Stepanova), «o verdadeiro criador» da Internacional, exprimiu, consciencializando, as tendências profundas do movimento, «facilitando» e «acelerando» o processo social objetivo, e fazendo-se o intérprete da história em curso para instruir e guiar, antes de mais ninguém, os dirigentes naturais da classe operária? Talvez nem uma coisa nem outra. De novo estas discussões podem parecer puramente eruditas e especulativas. Mas, tal como aquelas, idênticas, que dizem respeito ao papel histórico de Lenin, relacionam-se diretamente — a experiência prova-o — com as formas de organização e portanto, de novo, com a linha política do movimento operário. Voltaremos a este ponto.

De fato, nestas questões «filosóficas» como nestas questões «históricas», trata-se exatamente do mesmo paradoxo, no qual, somos forçados a constatar, muitos marxistas tropeçam ainda hoje: o que Marx parece trazer de fora ao movimento do proletariado (uma «consciência», isto é, uma doutrina e uma estratégia), é na realidade a ideologia proletária da própria classe, na sua autonomia. Pelo contrário, os arautos teóricos «autóctones» do proletariado não foram de facto senão representantes da ideologia pequeno-burguesa. É neste sentido particular, contrário às verossimilhança de um certo senso comum, que o marxismo foi importado para a classe operária pela obra de um «intelectual»: esta importação constitui o mesmo processo que aquele que permitiu ao proletariado encontrar as formas de organização que comandam o seu papel histórico na luta de classes. E por conseguinte são também, para cada época (a nossa incluída), as condições práticas que permitem a fusão da «teoria revolucionária» e do «movimento revolucionário» que estão em jogo na interpretação e utilização da obra de Marx.

Tentemos resumir os seus principais as­pectos nesta perspectiva.

As Etapas da Política de Marx

1. A juventude de Marx (1818-1847): do democratismo revolucionário burguês ao internacionalismo proletário.

Na época da juventude de Marx, a principal contradição donde resultara as características da história europeia começa apenas a manifestar-se como contradição da burguesia capitalista e o do proletariado industrial. Mas, de país para país, o seu desenvolvimento é extremamente desigual.

Na Alemanha, a burguesia só domina na Renânia, onde Marx nasceu (seu pai é um advogado liberal, de origem judaica, convertido ao protestantismo, «um verdadeiro Francês do século XVIII»): é que a Renânia sofreu profundamente os efeitos da Revolução francesa, que a tinha anexado provisoriamente, e sofreu antes de qualquer outra região da Alemanha, os efeitos da revolução industrial. A principal questão política é sempre a da unidade nacional, para a qual tende o movimento democrático.

Pelo seu lado, o Estado prussiano faz com que o campesinato e a burguesia liberal paguem as esperanças nascidas com a guerra de libertação nacional de 1813-1814, exercendo uma dura repressão; tenta realizar a unidade nacional por meio da aliança das classes dominantes, a burguesia e a feudalidade fundiária, sob a hegemonia desta última. Procura os meios de tornar impossível a aliança da burguesia e das massas populares, característica da Revolução francesa de 1789-1793.

O jovem Marx é estudante de filosofia e de direito, em Bona e depois em Berlim. Em 1841 doutora-se em filosofia (com uma tese sobre a Diferença da filosofia da natureza em Demócrito e Epicuro), mas não consegue obter uma cátedra de professor: a partir desta época, com efeito, é membro do círculo dos «hegelianos de esquerda», animado por Bruno Bauer, «que procuravam tirar conclusões ateístas e revolucionárias da filosofia de Hegel».(2)

Torna-se então jornalista, depois chefe de redação da Gazeta renana, de tendência democrática revolucionária (burguesa), onde representa o «partido filosófico». A Gazeta renana é finalmente interdita pelo governo prussiano.

Na França, para onde Marx emigra em Outubro de 1843, a situação é muito diferente: a burguesia realizou, sob uma forma violentamente contraditória, uma revolução política e jurídica que a levou ao poder, sem encontrar logo a forma de dominação que lhe desse garantias ao mesmo tempo contra o regresso da antiga classe «feudal» dominante e contra a nova ameaça das classes trabalhadoras que explora. Esta contradição por resolver, fará da França, ao longo de todo o século XIX, o país em que «as lutas políticas de classe são levadas até ao seu termo», isto é, até ao antagonismo aberto, à luta violenta pelo poder de Estado.

Nos anos de 1840, começa verdadeiramente o desenvolvimento da grande indústria; a classe operária torna-se a pouco e pouco uma força decisiva na luta política contra o domínio da grande burguesia agrária e da «aristocracia financeira», ao mesmo tempo que começa a desenvolver a sua luta econômica contra o capital. A França é também o país clássico do socialismo e do comunismo «utópicos» (Saint-Simon, Fourier, Cabet), primeiras formas de ideologia política do proletariado, ainda dominadas pela ideologia pequeno-burguesa: mas, sob esta mesma dominação, surgem elementos decisivos da ideologia proletária, que remetem para as condições de trabalho, de vida e de luta da classe operária. A forma de organização que corresponde a esta primeira etapa histórica é a «seita», e mesmo a sociedade secreta operária.

Marx fica em Paris até Fevereiro de 1845 (de onde será expulso por Guizot a pedido da Prússia). Torna-se «comunista», frequentando assiduamente os círculos de socialistas e comunistas franceses, os dos operários alemães emigrados (sobretudo a Liga dos justos). Publica então «A Questão Judaica» (contra Bruno Bauer) e a Crítica da filosofia do direito de Hegel, nos Anais franco-alemães, de que é um dos fundadores. Nos limites de uma crítica do Estado e da ideologia (representada sobretudo pela sua forma religiosa), crítica em que ele recorre à problemática da filosofia antropológica de Feuerbach, apresenta nestes textos o proletariado como a força histórica destinada, pelo próprio facto da sua alienação absoluta, a derrubar as relações sociais existentes; o proletariado realizará assim a emancipação humana, realmente universal, em oposição à emancipação fictícia, simplesmente jurídica, realizada pela burguesia. Mas, para isso, é-lhe necessário aliar-se à filosofia, de maneira a tornar-se consciente da universalidade que traz em si.

Há pois nesta época, que precede imediatamente os «começos» do marxismo propriamente dito, um avanço relativo, mas decisivo, das posições políticas de Marx sobre as suas posições teóricas. Este avanço traduz-se cada vez mais na presença, na sua problemática teórica, de teses que são verdadeiros «corpos estranhos», irredutíveis às suas premissas filosóficas, mau grado as aparências da terminologia e as profissões de fé de um certo humanismo (mesmo crítico e revolucionário): estas teses provêm diretamente da experiência das primeiras formas de luta de classe organizada contra o capital.(3) Assim, o comunismo, que era a forma mais radical da ideologia revolucionária da classe operária, visto que colocava em causa a própria forma da propriedade sobre a qual repousa a organização social, pode aparecer-Ihe não como um ideal intelectual de igualitarismo e de fraternidade (em certos casos quase religioso), mas como «a forma necessária e o princípio energético do futuro próximo», como o resultado do aprofundamento das próprias contradições da sociedade atual. Marx estuda portanto através da economia política inglesa (e francesa), a contradição do «trabalho alienado» que, na sociedade burguesa, espolia o produtor tanto mais quanto mais ele produz.(4) Dando mais um passo, em colaboração com Engels, critica na Sagrada Família, de um ponto de vista materialista, toda a filosofia idealista da história e até o ponto de vista simplesmente «crítico» sobre a sociedade, que traduz de fato a impotência histórica da pequena burguesia intelectual. É, prova Marx, a luta de massa do proletariado que é a verdadeira «crítica» de toda a ordem social existente.

Em 1845, Marx, refugiado em Bruxelas, trabalha em colaboração com Engels na elaboração de uma concepção filosófica materialista da história, da qual quer fazer a base teórica de um socialismo proletário autônomo (Teses sobre FeuerbachA Ideologia Alemã: manuscritos publicados depois da morte de Marx e Engels). Ao mesmo tempo, milita ativamente nos grupos revolucionários de operários alemães. Desempenha um papel decisivo na criação da primeira organização operária internacional, a Liga dos comunistas (1847), que, graças a ele, repudia o ideal vazio da fraternidade humana universal («Todos os homens são irmãos»), e adota a palavra de ordem: «Proletários de todos os países, uni-vos!» É a primeira grande formulação da ruptura com a ideologia e a política burguesas (ou pequeno-burguesas), a primeira formulação de autonomia teórica e prática do proletariado na própria sociedade burguesa.

Mas a Liga dos comunistas está longe de ser uma organização de massas. Apenas agrupa uma minoria avançada.

Na mesma época, precisamente, Marx efetua (depois de Engels) as suas primeiras viagens à Inglaterra: único país europeu onde a grande indústria capitalista já é dominante, e onde a classe operária começa a organizar-se em movimentos econômicos e políticos de massa (cartismo, tradeunions), como mostra Engels na Situação da classe trabalhadora na Inglaterra (1845), obra que teve uma influência decisiva em Marx.

Do ponto de vista teórico, o período da juventude de Marx conduziu-o portanto da filosofia idealista alemã, de que a dialética hegeliana era a forma mais sistemática (mas também, como o mostrará mais tarde Lenin, a mais contraditória), ao materialismo «crítico» (sob a influência preponderante de Feuerbach) , e depois ao materialismo histórico. Este processo de transformação permitiu a combinação de três «fontes» heterogêneas: a filosofia alemã, o socialismo utópico (essencialmente francês e inglês) e, em certa medida já (pois o seu uso sofrerá em Marx profundas transformações ulteriores), a economia política «clássica» inglesa. Ao mesmo tempo que uma transformação da posição teórica de Marx, trata-se pois, antes de mais, de uma transformação objetiva destas «fontes» elas próprias teóricas. É, neste sentido, o efeito de um processo histórico e social, e não um simples itinerário subjetivo.(5) Uma tal combinação esboça-se então em outros teóricos do movimento operário (por exemplo Proudhon), sem que consigam no entanto ultrapassar as dificuldades que ela comporta; por este facto, a sua posição fica largamente eclética, dominada em última análise pela ideologia burguesa. E esta contradição tem a sua contrapartida prática imediata: por exemplo, na incapacidade de reconhecer a necessidade, para lutar contra a dominação econômica da burguesia, de lutar também contra a sua dominação política, na incapacidade de reconhecer o carácter objetivamente internacional da luta do proletariado, etc.

Miséria da filosofia, 1846 (o anti-Proudhon), e sobretudo o Manifesto do Partido comunista (redigido em 1847 para a Liga dos comunistas) constituem as primeiras exposições coerentes do materialismo histórico; isto é, os primeiros textos de Marx cuja posição teórica é irredutível a qualquer forma anterior, onde a posição específica do proletariado se torna dominante ao mesmo tempo que encontra a sua formulação. A ruptura é então simultaneamente teórica e política.

2. As revoluções de 1848

Expulso de Bruxelas em Março de 1848, Marx é na mesma altura convidado para regressar a França pelo governo provisório saído da revolução de Fevereiro, através da instigação dos seus membros operários. A revolução popular, ao mesmo tempo proletária, democrática e nacional, estende-se rapidamente a toda a Europa e em particular à Alemanha. Uma tática marxista da direção das lutas proletárias começa a constituir-se no decorrer dos acontecimentos, com experiências positivas e negativas, sobre a base do materialismo histórico. É a própria condição de uma ligação recíproca entre a teoria e a prática.(6)

Marx opõe-se primeiro ao projeto de certos emigrados que querem organizar uma expedição militar à Alemanha. Mas, quando eclode o levantamento pela unidade nacional e o governo democrático, é ele que redige as «Reivindicações do Partido Comunista na Alemanha», programa de uma possível unidade de ação entre a burguesia liberal e o proletariado. A partir de Abril-Maio de 1848, põe esta linha em prática, dirigindo em Colonia a seção da Liga dos comunistas. Depois, querendo a todo  preço evitar à «vanguarda» proletária o isolamento de uma seita, faz admitir a dissolução da Liga e a constituição de uma Associação dos trabalhadores que contará sete mil aderentes na Renânia, e toma a direção da Nova Gazeta renana (na qual colaboram também Engels, os irmãos Wolff, etc.). Neste jornal, dirá mais tarde, não se podia desfraldar senão uma bandeira, a da democracia, mas de uma democracia que evidenciaria sempre o carácter especificamente proletário que ainda não podia arvorar». Participa no Comité de salvação pública criado em Colonia. Aí, esboça-se uma ação revolucionária de massa que ultrapassa largamente o quadro inicial da seita socialista.

Depois dos artigos de Marx contra os massacres dos operários franceses durante as jornadas de Junho, os comanditários liberais da Nova Gazeta renana retiram-se. É que a contra-revolução monárquica, feudal e da grande burguesia progride na Alemanha, ao mesmo tempo que a contra-revolução burguesa vence na França. A burguesia alemã no seu conjunto escolhe a aliança com os grandes proprietários fundiários, sob a hegemonia do Estado despótico, contra o liberalismo político e a unidade nacional. Marx, acusado de subversão, é no entanto absolvido pelo júri de Colonia. Rompendo com a burguesia democrática assustada pela revolução, retoma então o trabalho de organização e de formação teórica das organizações operárias,(7) ao mesmo tempo que tenta contribuir para a resistência armada dos revolucionários renanos (do qual o «general» Engels é o conselheiro militar).

Na primavera de 1849, Marx é expulso da Alemanha e depois, para escapar à fixação de residência pelo governo francês, refugia-se em Londres. No decurso de um ano, Marx e Engels percorreram assim, uma primeira vez, todo o ciclo das situações, das relações de forças, que podiam então apresentar-se na luta da classe operária e das classes dominantes, e todo o ciclo dos métodos de luta política que lhes correspondem.

Após o fracasso das revoluções em França e na Europa, Marx fica durante algum tempo persuadido de que o renascer do levantamento está eminente na França. Às seções da Liga dos comunistas reconstituída, escreve: «O partido do proletariado deve diferenciar-se dos democratas pequeno-burgueses que querem acabar com a revolução a toda a pressa [….], e tornar a revolução permanente até que todas as classes mais ou menos proprietárias tenham sido expulsas do poder […] em todos os principais países do mundo.» (Abril de 1850). Na mesma altura aparece nele pela primeira vez a noção da ditadura do proletariado, forma política indispensável para «manter a revolução permanentemente até à realização do comunismo».(8)

Mas, comparando o desenrolar das revoluções francesa e alemã, ao estudar a sua inter-dependência, e as condições econômicas materiais nas quais elas se desenvolvem, Marx enuncia uma quádrupla conclusão:

  1. O estado da relação de forças entre as classes que lutam umas contra as outras na sociedade moderna depende da conjuntura econômica: o enfraquecimento da burguesia e o seu isolamento resultavam da crise comercial mundial de 1847, o seu fortalecimento em 1848-1849 depende do regresso da prosperidade industrial. «Uma verdadeira revolução não é possível senão nos períodos em que estes dois fatores — as forças produtivas modernas e as forças de produção burguesas — entram em conflito umas com as outras.»
  1. O sucesso da revolução proletária nos países europeus não depende do proletariado unicamente (a luta de classes não é um simples duelo entre a burguesia e o proletariado): depende da sua capacidade de separar os pequenos proprietários rurais, pobres, da burguesia e do Estado que os exploram indiretamente, e de o aliar à luta contra as classes dominantes, sob a direção da classe operária.
  1. O desenvolvimento das contradições sociais na Inglaterra, a luta autônoma do proletariado contra a burguesia francesa, a guerra democrática na Alemanha e na Europa central são os factores inseparáveis de um mesmo processo revolucionário. A ordem contra-revolucionária e a repressão repousam, na Europa, sobre a solidariedade das classes proprietárias.
  1. O Estado moderno é o instrumento desta dominação e desta solidariedade, o garante da manutenção da exploração sob as suas diferentes formas. A própria República democrática burguesa, repousando no sufrágio universal e no mecanismo dos partidos, é a forma normal da «ditadura da burguesia»; é o único regime político, com efeito, que permite a unidade das diferentes fracções da burguesia, portanto a dominação da burguesia sobre a classe camponesa e a pequena burguesia. Eis porque a revolução proletária não pode levar a melhor senão com a condição de «concentrar contra o Estado todas as suas forças de destruição», e de «quebrar a máquina do Estado que todas as revoluções políticas — até ao presente — não fizeram mais do que aperfeiçoar.»

Estas conclusões são enunciadas sobretudo em As Lutas de classes em França (1850) e no 18 Brumário de Louis Bonaparte (1852). Abrem uma dupla problemática, cujo desenvolvimento e arranjos ulteriores determinarão o essencial da contribuição teórica de Marx para o materialismo histórico. Por um lado, o problema da base econômica da história do capitalismo: em particular o da «correspondência» entre o desenvolvimento dos antagonismos econômicos de classes, e o desenvolvimento das contradições (cíclicas ou não) na marcha da produção e da circulação mercantis. Por outro lado, o problema da natureza de classe do Estado, e dos objetivos políticos da revolução proletária. Estes dois problemas aparecem daqui em diante ligados na mesma dialética.

Aos olhos de Marx, a chave da revolução «ininterrupta» até ao comunismo está portanto no desenvolvimento das contradições da produção capitalista, na «concentração» do proletariado num movimento político de massa, e no conhecimento exato destas condições. Marx critica o voluntarismo dos que querem a revolução na ausência das suas condições objetivas, entre as quais o desenvolvimento e a organização do próprio proletariado. «Nós dizemos aos operários: vós tendes de atravessar quinze, vinte, cinquenta anos de guerras civis e de lutas internacionais, não apenas para mudar a situação existente, mas para vos mudar a vós próprios, e tornar-vos aptos para o poder político.»

3. O «Capital» e a Internacional (1850-1871)

Com o fim das revoluções de 1848 começa um novo período que só acabará em 1871, pela Comuna de Paris. A princípio, é o triunfo da reação, no continente e mesmo em Inglaterra. É o período da aliança reconstituída entre os governos russo, inglês, francês, prussiano, austríaco, que acordam entre si, apesar das suas rivalidades, manter a ordem social existente. «As diferentes querelas às quais se entregam hoje os representantes das diversas fracções do partido da ordem continental e em que se comprometem reciprocamente, longe de fornecerem a ocasião para novas revoluções, não são pelo contrário possíveis senão porque a base das relações é momentaneamente tão segura, e, o que a reação não sabe, tão burguesa.» Mas é também o período dos primeiros confrontos imperialistas pela divisão do mundo, em que se constitui o império colonial inglês, o maior que a história jamais conheceu. É o período em que, a partir do «centro» inglês (Marx e Engels falam do monopólio industrial inglês, que domina o mercado mundial), a revolução industrial capitalista se estende em profundidade à França, à Alemanha, aos Estados Unidos. Mas é também a partir da década de 1860, sobretudo, o período das lutas de libertação nacional na Europa (Itália, Polônia, Irlanda); o período do aumento maciço da classe operária, dos progressos da sua organização sindical, das grandes greves traduzindo o desenvolvimento da luta econômica de classes em França, na Inglaterra, na Bélgica.(9)

Neste período, a atividade de Marx apresenta à primeira vista dois aspectos distintos: de um lado o trabalho teórico, que culminará com a publicação do Capital, e cujos resultados só penetrarão a pouco e pouco na base do movimento operário no decurso do período seguinte; por outro lado, a partir da fundação da Internacional, o trabalho de organização política, sob uma primeira forma de «partido» proletário, ainda muito frágil e contraditória, mas definitivamente arrancada ao isolamento das seitas de antes de 1848. É esta disjunção relativa, historicamente inevitável, ao mesmo tempo ultrapassada e materializada na posição prática e na ação de um indivíduo, que produz o papel histórico excepcional de Marx e todo o problema da sua explicação.

a) A Preparação do «Capital»

Mantendo-se afastado dos círculos de emigrados, Marx vive primeiro num grande isolamento. «Quando o vamos visitar, somos acolhidos não por saudações, mas por categorias econômicas».(10)

Prossegue encarniçadamente os seus trabalhos econômicos, sobretudo na sala de leitura do British Museum, que tratam principalmente da economia política, mas igualmente da filosofia, da história, das ciências naturais (química, agronomia), das matemáticas. Em 1866 ainda, escreve ao seu amigo Kugelmann: «Se bem que consagre muito tempo aos trabalhos preparatórios para o Congresso de Genève [da Internacional], não posso, nem quero ir lá, pois é-me impossível interromper o meu trabalho durante tanto tempo. Com este trabalho, penso fazer qualquer coisa bem mais importante para a classe operária do que tudo o que poderia fazer pessoalmente em qualquer congresso.»

Este trabalho é frequentemente interrompido, por longos períodos, por causa da terrível miséria material (e por vezes moral) em que vive: «Penso, escreve a Engels, que jamais se escreveu sobre o dinheiro tendo tanta falta dele. A maior parte dos auto­res que trataram deste assunto, viviam em boas relações com o objeto das suas pesquisas.» (21 de Janeiro de 1859.) Alguns filhos de Marx morrem por essa altura em tenra idade. É a vez dos oficiais de diligências o perseguirem, na esteira da polícia.

Marx colabora em diferentes jornais democráticos, e depois socialistas: nomeadamente o New York Daily Tribune (dirigido por um antigo fourierista), onde aparecem as suas análises da política internacional (as guerras europeias, a guerra da Secessão americana), da colonização inglesa (China, Pérsia e sobretudo Índias), da conjuntura econômica (a crise de 1857), dos mecanismos do crédito bancário e da circulação monetária, do sistema industrial. Estes artigos «alimentícios» são também o laboratório teórico do materialismo histórico. A partir de 1859, assume a direção efetiva de ‘Das Volk’, órgão da Associação cultural dos operários alemães de Londres. Colabora nos jornais cartistas e socialistas ingleses (como o People’s Paper).

Em 1859, Marx publica a primeira parte da Contribuição à crítica da economia política, em que figuram a sua teoria da mercadoria e a do dinheiro (as únicas publicadas). Paralelamente a estes textos teóricos, tem de manter também longas polêmicas: é este o sentido de Herr Vogt (1860), contra as falsificações da história do movimento operário por um naturalista, antigo deputado da Assembleia alemã de Frankfurt (1848) — os arquivos apreendidos pela Comuna provarão em seguida que ele era, conforme tinha afirmado Marx, o agente de Napoleão III.

Em 1867, enfim, aparece o livro I do Capital, resultado do trabalho de quinze anos, «certamente o mais perigoso projétil que jamais foi lançado contra a cabeça dos burgueses, incluindo os proprietários fundiários>> (carta a Becker, 1867). Marx expõe aí a teoria histórica do processo de produção capitalista imediato, que constitui a base material de todos os antagonismos de classes da sociedade moderna. Realiza assim pela primeira vez, sob uma forma científica desenvolvida, a «crítica da economia política», e constitui em contrapartida uma teoria das condições objetivas da revolução prole­tária e da sua necessidade, implicada no desen­volvimento das contradições sociais atuais.

b) A Internacional

Em 1864, por ocasião de um «meeting» internacional organizado em Londres a favor da liberdade da Polônia, funda-se a Associação internacional dos trabalhadores, conhecida pelo nome de Primeira Internacional.

Junta as organizações operárias inglesas, alemãs, francesas, suíças, belgas e depois italianas, espanholas, americanas, etc., de inspirações ideológicas muito diversas (proudhonianas, lassalianas, bakuninianas, mazzinianas, tradeunionistas, liberais inglesas, etc.). A sua reunião, mau grado as divergências, é «o produto espontâneo do movimento proletário, ele próprio engendrado pelas tendências naturais, irreprimíveis, da sociedade moderna», isto é, pelo desenvolvimento das lutas políticas e econômicas de classe, e da sua interdependência. O que distingue a Internacional dos grupos anteriores («a passagem do mundo das seitas para a real organização da classe operária») não é apenas o seu recrutamento, ainda modesto, mas as suas formas de trabalho e de intervenção, que explicam o desenvolvimento da sua influência.

A Internacional agrupa ao mesmo tempo as organizações «sindicais» (locais e profissionais) e as organizações «políticas» (secções) — sem contar com as adesões individuais. Marx, convidado desde a origem a fazer parte do Comité provisório, depois do conselho geral da AIT, faz triunfar, contra o projeto de um simples organismo consultivo de ligação e de solidariedade, a. concepção de um organismo de direção política, encarregado de elaborar a partir das situações locais, segundo a expressão de Lenin, «uma tática única para a luta proletária da. classe operária nos diferentes países», tática não uniforme e invariável, mas fundada numa mesma concepção da prática política e no conhecimento das tendências gerais da conjuntura histórica. É ele que redige o estatuto e a mensagem inaugural da Internacional: considerando que «a emancipação da classe operária deve ser conquistada pela própria classe operária», e que ela consiste no «aniquilamento de qualquer dominação de classe», cuja base reside na «sujeição econômica do trabalhador ao proprietário dos meios de trabalho», enuncia o princípio da combinação necessária das lutas econômicas e políticas, nacionais e internacionais.

«Além do trabalho para o meu livro, a AIT toma-me imenso tempo, escreve Marx a Engels, pois estou de fato à cabeça deste assunto» (13 de Março de 1865). Só depois de 1869 Engels poderá abandonar os seus negócios, vendendo a sua parte na empresa industrial familiar, e juntar-se a Marx, sendo cooptado no Conselho geral. O Conselho geral reúne-se todas as semanas, recebe permanentemente correspondentes do estrangeiro, organiza a solidariedade material aos grevistas dos diferentes países (Charleroi, 1868; Bâle, 1869). A AIT chega mesmo a conseguir, frequentemente, impedir as empresas cujos operários estão em greve de contratar operários estrangeiros para os substituir: o que era, segundo o direito burguês, atentar contra a «liberdade do trabalho», por outras palavras, lutar contra a concorrência entre os trabalhadores que o salariado implica, unificar nesta mesma luta a classe operária perante os interesses comuns da burguesia.

O internacionalismo da AIT traduz-se também no terreno propriamente político: para Marx, «a questão operária não é um problema provisório, nem local, é uma questão da história mundial», e, reciprocamente, a classe operária não pode desinteressar-se das suas próprias posições sobre a história mundial, como o demonstram os laços estreitos que unem objetivamente «a libertação social da classe operária inglesa e a libertação nacional dos irlandeses»; como o demonstram a contrario os laços entre a fraqueza política da classe operária inglesa e a dominação comercial, colonial e industrial da Inglaterra no mundo. «Um povo que oprime outros, dirá Engels a propósito da Rússia e da Polônia, não pode emancipar-se a si próprio. A força de que necessita para oprimir os outros acaba por se virar sempre contra si próprio.»(11) A Internacional trava uma luta política e ideológica ativa para apoiar os movimentos de libertação nacionais na Europa. Contribui para a mobilização da classe operária inglesa, para impedir a Inglaterra de intervir diretamente na guerra da Secessão ao lado dos sulistas (1862), e depois para a mobilização da classe operária americana contra o conflito anglo-americano (Maio de 1869). A partir daí, «a classe operária aparece na cena histórica, não já como um executante dócil, mas como uma força independente (…) capaz de ditar a paz onde os pseudo senhores gritam a guerra».(12)

A Internacional realiza enfim vários inquéritos sobre a condição operária, baseados num questionário estabelecido por Marx (1865: «É preciso ter-se um conhecimento exato e positivo das condições em que trabalha e se move a classe operária»). E difunde sob a forma de mensagens, publicadas em diferentes países, e pela imprensa das secções nacionais, os textos de base de uma formação teórica da classe operária.

A atividade da Internacional é, com efeito, dominada por lutas ideológicas incessantes.

O socialismo francês é na maioria proudhonniano, hostil à ação política. «Desdenham de toda a ação revolucionária, isto é, que brota da própria luta de classes, de todo o movimento social concentrado, ou seja, realizável igualmente por meios políticos (como por exemplo a diminuição legal do dia de trabalho); e isto sob o pretexto de liberdade, de anti-governamentalismo ou de individualismo anti-autoritário».(13)

O socialismo inglês, depois do «fracasso retumbante» de todos os esforços para manter ou refundir o movimento cartista (esmagado pelo contragolpe de 1848 e pela emigração), é «tradeunionista», reformista e legalista, hesitando perante a luta econômica de classe que, aos seus olhos, faz correr o risco de arrastar a alta dos preços.

O socialismo alemão está na sua maioria organizado na Associação geral dos trabalhadores alemães, fundada em 1863 por Lassale e Schweitzer, que alimenta de forma repetitiva a ilusão de uma intervenção socialista do Estado prussiano: «Enxerta o cesarismo nos princípios democráticos» (Carta de três operários berlinenses a Marx, 1865), facilitando o jogo de Bismarck. «Está, escreve Marx em 1865, absolutamente fora de dúvida que a fatal ilusão de Lassale (…) será seguida de uma desilusão. A lógica das coisas falará. Mas a honra do partido operário exige-lhe que afaste estes fantasmas antes que a experiência tenha provado a sua inanidade. A classe operária é revolucionária ou não é nada.»

A partir de 1868, a classe operária suíça, italiana e espanhola é de forma doradoura influenciada pelo anarquismo de Bakunine.

A Internacional não é «comunista». Se põe em prática a palavra de ordem histórica do Manifesto («Proletários de todos os países, uni-vos!»), não se refere a ela explicitamente. No preâmbulo dos estatutos da AIT, Marx escreve: «fui obrigado a admitir […] passagens sobre o Dever, a Verdade, a Moral, e a Justiça; mas foram colocadas de forma a não prejudicar o conjunto. […] Era muito difícil conseguir apresentar o nosso ponto de vista sob uma forma que o tornasse aceitável na fase em que se encontra atualmente o movimento operário. […] Levará o seu tempo, até que o despertar do movimento permita a antiga franqueza de linguagem […]».

A história da Internacional é por este facto a do processo que permitiu que se instaurasse, à custa de uma luta sem tréguas contra estas concepções e estas práticas, a hegemonia do socialismo científico (marxismo) no movimento operário, e se elaborassem ou precisassem a teoria e a táctica do proletariado.

Cada Congresso da Internacional marcou, em função da conjuntura, a derrota de uma forma de socialismo pequeno-burguês, e um sucesso do marxismo:

  1. Pela luta econômica de classes e a sua organização científica nos sindicatos, que são as «escolas do socialismo» para a massa dos trabalhadores. Mas a luta econômica não é útil e eficaz senão quando consegue preservar-se do reformismo: «Depois de ter demonstrado que a resistência periodicamente exercida por parte do operário contra a redução dos salários e os esforços que empreende periodicamente para obter aumentos de salários estão inseparavelmente ligados ao sistema do salariado e são provocados pelo próprio fato de o trabalho ser assimilado às mercadorias e submetido por conseguinte às leis que regulam o movimento geral dos preços. […] Trata-se finalmente de saber até que ponto, no decurso da luta contínua entre o capital e o trabalho, este tem a sorte de ganhar. […] A coisa reduz-se ao problema da relação de forças dos combatentes. No que diz respeito à limitação da jornada de trabalho […], nunca foi regulada doutra forma senão pela intervenção legislativa. Sem a pressão constante dos operários, agindo de fora, nunca esta intervenção se produziria. Em todo o caso, não se teria obtido este resultado pelos acordos privados entre os operários e os capitalistas. Esta mesma necessidade de uma ação política geral é a prova de que, na luta puramente econômica, o capital é o mais forte. […] A tendência geral da produção capitalista não é elevar o nível médio dos salários, mas baixá-lo, isto é, reduzir mais ou menos o valor do trabalho ao seu limite mais baixo. Mas, sendo esta a tendência das coisas neste regime, quer isso dizer que a classe operária deve renunciar à resistência contra as usurpações do capital e abandonar os seus esforços para arrancar, nas ocasiões que se lhe apresentem, tudo o que pode trazer qualquer melhoria à sua situação? Se o fizesse, rebaixar-se-ia a não ser mais do que uma massa informe, esmagada, de seres famélicos para os quais deixaria de haver salvação […] Se a classe operária mostrasse fraqueza no seu conflito quotidiano com o capital, ficaria certamente privada da possibilidade de empreender este ou aquele movimento de maior envergadura. Ao mesmo tempo […] os operários não devem exagerar o resultado final desta luta quotidiana. Não devem esquecer que lutam contra os efeitos e não contra as causas destes efeitos. […] É necessário que compreendam que o regime atual, com todas as misérias com que os oprime, engendra ao mesmo tempo as condições materiais e as formas sociais necessárias para a transformação econômica da sociedade. Em vez da palavra de ordem conservadora: «Um salário equitativo para um dia de trabalho equitativo», deviam inscrever na sua bandeira a palavra de ordem revolucionária«Abolição do salariado».(14) É necessário ler todo este texto modelo de análise dialética das formas da luta de classes.
  1. Pelo princípio da apropriação coletiva dos meios de produção pela classe operária, contra o sonho do regresso à sua propriedade individual, contra as utopias pequeno-burguesas do igualitarismo, da autogestão, da federação dos pequenos produtores autônomos (Congresso de Bruxelas, 1868, e Bâle, 1869). «Não é a igualização das classes, contra-senso impossível de realizar, mas pelo contrário a abolição das classes, o verdadeiro segredo do movimento proletário, que forma o grande objectivo da A.I.T.». (15)
  1. Contra a indiferença (dos proudhonianos sobretudo) relativamente às lutas nacionais, contra a resistência dos operários a dessolidarizar-se da «sua» burguesia e a lutar ao lado dos povos que ela explora (Marx vai de encontro em particular, na questão irlandesa, ao «chauvinismo» que penetra profundamente a classe operária inglesa, e que mantém a presença na própria Inglaterra de uma massa de trabalhadores irlandeses emigrados, que faz pressão sobre o nível dos salários).
  1. Pela organização da luta política de classe no aparelho político existente, sob a forma de um partido organizado (os anarquistas querem a autonomia das secções locais, Marx exige o reconhecimento da tendência geral da Internacional); pela incorporação dos intelectuais revolucionários no movimento operário (os proudhonianos, confundindo pertencer à classe e posição de classe, queriam excluir todos aqueles que não fossem «operários manuais»).
  1. Contra as ilusões pequeno-burguesas a respeito do Estado burguês e do direito burguês, que se exprimem ora no desconhecimento da sua necessidade histórica, na palavra de ordem vazia da sua «abolição» imediata («abolição da família! abolição do direito de herança! abolição da religião!»), ora na incapacidade de criticar as fórmulas da ideologia política e jurídica burguesas («liberdade, igualdade, fraternidade» universais, Verdade e Moralidade).

O ano de 1867-1868 marca uma volta na história da A.I.T., cujo papel nas greves europeias traz à luz do dia e que os governos denunciam oficialmente como inimigo público. Mas a Comuna de Paris vai transformar imediatamente o curso deste afrontamento.

4. A Comuna, o fim da Internacional, as últi­mas obras de Marx

a) O «achado» histórico dos comunardos

A Comuna de Paris (18 de Março – 27 de Maio de 1871) e as suas consequências imediatas marcam o fim do primeiro período da história do movimento operário organizado que tinha lançado as bases de uma fusão da teoria e da prática revolucionárias. A Comuna acaba de facto um período histórico, despedaçando ao mesmo tempo a preponderância do socialismo pequeno-burguês, não marxista, em certos países europeus (em primeiro lugar na Alemanha), e a unidade contraditória da Internacional, cuja desaparição acaba por implicar. Mas abre ao mesmo tempo um novo período, tornando possível a constituição de partidos socialistas de massa, e a preponderância do marxismo no seio deles. A Comuna foi um fracasso do proletariado francês, seguido de uma nova repressão sangrenta (pelo menos 20 000 mortos, outras tantas deportações e prisões). No entanto, foi também um sucesso do proletariado, que adquiriu um alcance universal, pois provou a possibilidade da tomada do poder, revelou a primeira forma histórica concreta da ditadura do proletariado, e abriu a via às revoluções vitoriosas do século XX.(16)

A ação da Internacional no decurso da guerra franco-alemã de 1870 e da Comuna teve de ter em conta a grande complexidade das contradições que aí se acumulavam.

A guerra franco-alemã anunciava, qualquer que fosse o seu resultado, a queda de Napoleão III, o fim do bonapartismo em França e o fim da sua influência na Europa. Implicava ao mesmo tempo a realização da unidade nacional alemã, isto é, a conclusão do processo da revolução burguesa; e esta aparecia ao mesmo tempo como a condição do aprofundamento das lutas de classe na Alemanha, do desenvolvimento do movimento operário alemão. Em última análise, do lado alemão, a guerra comportava um aspecto democrático e «defensivo».(17)

Mas a guerra franco-alemã significava também que a revolução burguesa na Alemanha seria acabada «de cima», sob a hegemonia do Estado prussiano dos fidalgotes. Por isso mesmo, anunciava a reconstituição imediata do bloco defensivo das classes dominantes europeias, à custa de algumas mudanças dinásticas e de uma inversão das hegemonias.

Foi o que provou desde logo a aliança de Bismarck e da burguesia francesa (Thiers, Jules Favre, etc.), que permitiu o isolamento e o esmagamento da Comuna, que arrastou por sua vez a repressão feroz do movimento operário, não apenas em França, mas na Alemanha e em toda a Europa.

Foi no breve intervalo, no «jogo» deixado por esta contradição complexa, que podia mani­festar-se a ação do proletariado.

No seu prefácio de 1907 à tradução russa das Cartas de Marx a Kugelmann. Lenin insistiu demoradamente no alcance político da atitude de Marx durante a Comuna, opondo-a ponto por ponto à de Plekhanov, que durante a revolução russa de 1905, depois de ter apelado para a revolta, exclamava subitamente: «Nunca deviam ter pegado em armas». Desenvolvamos o que ele apenas indica.

Antes da Comuna, Marx e Engels desaconselhavam qualquer insurreição, na qual viam uma «loucura desesperada», que «nos lançaria cinquenta anos para trás», e «falsificaria todos os dados», desenvolvendo no movimento operário francês «o ódio nacional e o reino da fraseologia». Mostram que «a classe operária francesa se encontra colocada em circunstâncias extremamente difíceis»; pois a seguir à queda do Segundo Império, a República francesa «não derrubou o trono, mas apenas ocupou o lugar deixado vago»: é a sua herdeira, uma simples mudança de pessoas à cabeça do aparelho de Estado, e não a expressão de uma tomada de poder pelas classes populares. Está portanto apta a continuar a sua política, a concentrar contra o proletariado todas as forças de repressão, a fim de perpetuar a ordem social existente. Além disso, a transformação de uma guerra nacional em guerra de conquista dinástica (com a fundação do Império alemão) não cria de maneira nenhuma as condições de um movimento internacional de massa em favor da revolução. Também Marx concentra os seus esforços (e os da Internacional) nas manifestações de internacionalismo franco-alemão (que tinham surgido no momento da entrada em guerra, nomeadamente sob o impulso de Liebknecht), na luta contra o imperialismo de Bismarck, e pelo reconhecimento de uma república francesa democrática. A atitude de Marx é ditada pelo seu claro conhecimento do aspecto principal existente na contradição das classes em 1870-1871: a força dos Estados burgueses, a não preparação do proletariado.

Mas, durante a Comuna, a atitude de Marx é totalmente diferente, o que a faz aparecer aos olhos dos historiadores como uma «reviravolta».

A partir da insurreição de 18 de Março de 1871, respondendo à provocação de Versalhes, o Conselho geral da Internacional, que não tinha tido qualquer participação no seu desencadear, «saudou com entusiasmo a iniciativa revolucionária das massas».(18) «Seria evidentemente muito cômodo, escrevia Karl Marx a Kugelmann (17 de Abril de 1871), fazer a história se só travássemos a luta com probabilidades infalivelmente favoráveis […] A desmoralização da classe operária seria uma infelicidade bem maior do que a perda de um número qualquer de «chefes». Graças ao combate travado por Paris, a luta da classe operária contra a classe capitalista e o seu Estado capitalista entrou numa nova fase. Mas qualquer que seja o resultado dela, obtivemos um novo ponto de partida de uma importância histórica universal.»

O Conselho geral organizou, sob a direção de Marx, e apesar de grandes dificuldades, a solidariedade internacional para com a Comuna. Enviou representantes que, forçando o bloqueio, puderam comunicar à Comuna informações (sobre o acordo secreto entre Bismarck e Jules Favre) e alguns conselhos táticos em matéria de defesa militar, finanças e política do trabalho. Depois da queda da Comuna (que se deveu em parte à «demasiada honestidade» dos trabalhadores parisienses, que não quiseram antecipar-se à concentração das tropas de Versalhes e prussianas tomando a ofensiva, nem responder ao terror burguês com o terror popular), Marx organizou o salvamento dos que escaparam, as revelações públicas sobre o seu desenrolar, a difusão das suas ideias. Antes mesmo do fim, empreendeu a análise das lições, em intenção do proletariado de todos os países.(19)

Citemos de novo Lenin: «Marx dizia em Setembro de 1870 que a insurreição seria uma loucura. Mas quando as massas se revoltaram. Marx quis marchar com elas, instruir-se ao mesmo tempo que elas, na luta, e não dar lições burocráticas. Compreende que qualquer tentativa de contar antecipadamente com toda a exatidão com os êxitos da luta seria charlatanismo ou pedantismo irremissível. Considera antes de tudo o facto de que a classe operária, heroicamente, com abnegação, com espírito de iniciativa, elabora a história do mundo. Marx considerava a história do ponto de vista dos que a criam sem poder contar infalivelmente de antemão com as possibilidades de êxito, mas não a olhava como intelectual pequeno-burguês que dá a sua lição de moral. […] Marx sabia ver também que em certos momentos da história uma luta encarniçada das massas, mesmo por uma causa desesperada, é indispensável para a educação ulterior destas mesmas massas, para as preparar para a luta futura. Esta maneira de pôr a questão é inacessível, até mesmo estranha no seu princípio, aos nossos pseudo marxistas atuais, que gostam de citar Marx a propósito de tudo, a ele vão buscar apenas os juízos acerca do passado, mas não procuram lições para construir o futuro.» (20)

Para acreditar numa inconsequência de Marx, é pois necessário, contrariamente à dialética, transformar «o aspecto principal» da contradição (a força relativa do Estado burguês) em aspecto único, esquecer o outro aspecto da contradição, é necessário ver a força (real) da burguesia do ponto de vista de que ela própria se vê, e passar do respeito tático do adversário (indispensável) para o respeito estratégico, que desencoraja toda a prática revolucionária. A posição de Marx é revolucionária porque materialista: ela subordina a atitude dos teóricos, dos dirigentes políticos da classe operária, não à espontaneidade, mas à iniciativa histórica das massas. Esta posição tem uma significação permanente, constantemente verificada pela história: a revolução não se desenrola nunca segundo esquemas pré-estabelecidos, não é nunca aplicação dos «programas» concebidos pelo partido revolucionário. A política científica do proletariado não consiste em procurar na teoria o plano dos acontecimentos históricos vindouros, mas em procurar na teoria, no entendimento das tendências e das condições atuais, os meios de compreender estes acontecimentos quando eles se produzem, a fim de neles participar ativamente, em vez de os aceitar passivamente.

Marx compreendia que a classe operária parisiense não podia escolher, sob o ponto de vista dos seus interesses históricos a longo termo: a insurreição foi-lhe imposta pela provocação direta das classes dominantes. Pois a burguesia francesa, a seguir à derrota militar, tinha necessidade de uma vitória efetiva sobre o proletariado para reconstituir a sua unidade, para subordinar a si própria e comprometer as camadas pequeno-burguesas, todas as outras classes de trabalhadores, para fundar a continuidade do Estado burguês. Tinha necessidade de esmagar politicamente o proletariado, quer forçando-o a recuar sem combater, quer pela violência. Mas os dois meios equivalentes para a burguesia (vitória «pacífica» ou guerra civil) não são de forma nenhuma equivalentes para a classe operária. A sua resistência, na qual afirmava a sua própria capacidade de transformar toda a sociedade e abolir a exploração, era o único meio de fazer progredir o movimento revolucionário. Depois do período de 1848-1852, o próprio desenvolvimento do capitalismo e das lutas de classe modificou o lugar do proletariado na sociedade, de maneira que o fracasso de Junho de 1848 e o fracasso da primavera de 1871 têm uma significação exatamente inversa: o primeiro marcava a incapacidade do proletariado para dar um conteúdo autônomo à sua luta, o segundo sanciona a energia desesperada com que o proletariado começa a desenvolver a sua própria forma política, que vem a «encontrar» sob o efeito de uma necessidade à qual não era possível escapar. Para a classe operária, no momento da Comuna, não há várias políticas possíveis que preservem os seus interesses de classe: a necessidade imediata da luta coincide com a necessidade histórica. São «coincidências destas, que não devem ser percebidas apenas depois de passado o momento, que caracterizam as conjunturas revolucionárias, nas quais a luta de classes aparece com toda a clareza e nas quais, segundo as palavras de Marx, «os dias concentram em si vinte anos».(21)

Há uma estreita conexão entre as condições em que se desenrola a experiência histórica da Comuna e o seu conteúdo principal, a primeira realização prática da ditadura do proletariado, «achado» das massas de que Marx, pelo facto da sua participação e da sua adesão imediatas, mas também devido ao seu papel anterior e às suas descobertas, pôde apropriar-se teoricamente.

b) A ditadura do proletariado

Neste trabalho, o que forneceu a Marx o critério prático de que toda a experiência necessita foi este paradoxo: a Comuna, de facto, não seguiu a política que ditavam as posições ideológicas da maior parte dos seus membros; seguiu uma política diametralmente oposta, ditada pela necessidade, e antes de mais a necessidade da sua própria existência e sobrevivência: a política do socialismo científico. Na Comuna, com efeito, a classe operária dominava, mas não assegurava ela sozinha a direção. Ali figuravam também os representantes da pequena burguesia revolucionária, artesanal e intelectual. Os representantes da classe operária dividiam-se eles próprios numa maioria de blanquistas e numa minoria de internadonalistas, sobretudo proudhonianos (incluindo Varlin), e alguns raros «marxistas» (E. Dmitrieff, Serrailler, Frankel). O que caracterizou a Comuna, na sua curva ascendente, foi uma política não proudhoniana, uma política não blanquista conduzida por proudhonianos e blanquistas.

A Comuna não se «contentou com tomar tal qual a máquina do Estado e fazê-la funcionar por sua própria conta», mas empreendeu imediatamente destruí-la. Suprimiu de uma só vez os instrumentos do poder de Estado burguês, que são o exército permanente, a polícia permanente, e substituiu-os pelo «povo em armas» (na sua maior parte operários) que a guerra e a resistência à invasão tinham mobilizado. Da mesma forma, suprimiu o corpo dos funcionários dependentes apenas de cima, a administração permanente. Mas (contra toda a orientação anarquista e utopista), empenhou-se em substituir este aparelho por «instituições duráveis», que constituíam «a organização do proletariado como classe dominante».

A Comuna de Paris previa o sufrágio universal a todos os níveis, a autonomia relativa das províncias e das comunas, mas de maneira nenhuma a abolição da centralização: a Comuna não era federalista mas centralista, em virtude das próprias características da sociedade moderna, que não é uma sociedade de produtores independentes, mas repousa já num grau elevado de socialização da produção. Distinguia assim a questão do poder opressivo do Estado, imposto por uma minoria, e a questão do centralismo. Fazia repousar a possibilidade de um centralismo democrático sobre a aliança dos operários e outros trabalhadores, sob a direção dos operários.

«A Comuna foi composta por conselheiros municipais, eleitos por sufrágio universal nos diversos bairros da cidade. Eram responsáveis e revogáveis em qualquer momento. A maioria dos seus membros eram, naturalmente, operários ou representantes reconhecidos da classe operária. A Comuna devia ser, não um organismo parlamentar, mas um corpo ativo, executivo e legislativo ao mesmo tempo […] Dos membros da Comuna até ao mais baixo da escala, afunção pública devia ser assegurada por salários de operários. Os benefícios de uso e as ajudas de representação dos altos dignitários do Estado desapareceram com os próprios dignitários. Os serviços públicos deixaram de ser a propriedade privada das pessoas do governo central. Não só a administração municipal, mas toda a iniciativa até aí exercida pelo Estado, foi entregue nas mãos da Comuna.»(22) Assim, a ditadura do proletariado realizava-se através de uma democracia proletária, mais vasta do que qualquer democracia burguesa, que não se contentava com generalizar o princípio da eleição e da «representação» popular, mas fazia dos representantes eleitos os servidores (Marx) dos trabalhadores, colocados sob o controlo permanente das organizações de massa do povo revolucionário (em particular os «clubs» políticos, frequentados pelos mesmos trabalhadores armados que faziam a força da Comuna, e pelas suas mulheres e até mesmo os filhos).

A Comuna abolia toda a distinção entre os «poderes» executivos, legislativos, judicial (que a ideologia jurídica burguesa faz passar pela «garantia» das liberdades individuais). Fazia assim voar em estilhaços, ao mesmo tempo que o parlamentarismo, a «falsa independência» da justiça e do direito. Minava as bases práticas de toda a ideologia moral e jurídica pequeno-burguesa, à qual continuavam ligadas as diferentes formas do socialismo pré-marxista. Mostra que todo o direito, toda a justiça, têm um conteúdo de classe, e que é necessário a classe operária exercer ela própria uma justiça proletária. Pôde mesmo começar a «despedaçar o instrumento espiritual da opressão», atacando a organização material da Igreja e esboçando uma instrução popular controlada pelo povo (e não pela Igreja ou o Estado).

Ao mesmo tempo que «encontrava enfim» a forma política do governo da classe operária, «o resultado da luta de classe dos produtores contra a classe dos apropriadores […], que permitia realizar a libertação econômica do trabalho», a Comuna junta à revolução política as primeiras medidas de expropriação do capital em benefício dos trabalhadores. «Em 1871, mesmo em Paris, este centro do artesanato de arte, a grande indústria tinha de tal maneira deixado de ser uma exceção que o decreto de longe mais importante da Comuna instituía uma organização da grande indústria e até da manufatura, que devia não só assentar sobre a associação dos trabalhadores em cada fábrica, mas também reunir todas estas associações numa grande federação; em resumo, uma organização […que] devia chegar finalmente ao comunismo, isto é, exatamente o oposto da doutrina de Proudhon. E eis também porque a Comuna foi o túmulo da escola proudhoniana do socialismo.»(23)

Pela sua política de destruição do Estado burguês, que é o principal agente da sua exploração, a Comuna esboça as bases da aliança da pequena burguesia pobre, e sobretudo dos camponeses, à ditadura do proletariado. A justeza da sua política foi demonstrada a contrario pelo fracasso da Comuna de Lião, onde a ação de Bakunin levou ao isolamento imediato da classe operária.

Estas lições da Comuna e a análise da sua conjuntura figuram nomeadamente nas três Mensagens redigidas por Marx para a Internacional— a primeira, em 23 de Julho de 1870; a segunda, em 9 de Setembro de 1870; a terceira, A Guerra Civil em França, em 30 de Maio de 1871 —, assim como na correspondência com Kugelmann. Lenin explicou-as em pormenor em O Estado e a Revolução (1917).

c) O Fim da Internacional

A experiência decisiva da Comuna, a teoria marxista e o movimento operário saem um e outro transformados, unidos em bases novas (o que torna inteiramente fútil o problema de saber se a Comuna era uma revolução «marxista»!)

A Internacional apareceu aos governos de toda a Europa como o inimigo a abater a todo o custo. Sob proposta de Jules Favre, a repressão foi organizada em comum.

Recusando seguir Marx nas últimas conse­quências da sua análise, e rejeitando as lições políticas da Comuna, os representantes do tradeunionismo inglês (que nesta época reagrupava sobretudo a «aristocracia operária») abandonam o Conselho geral. As características particulares do Estado em Inglaterra, as suas tradições de democracia burguesa, pareciam tornar possível uma passagem para o socialismo de tipo pacífico. No entanto, respondendo em Julho de 1871 ao correspondente do jornal The World, Marx, sublinhando embora a especificidade das condições nacionais, não se declarava «tão optimista»: «A burguesia inglesa mostrou-se sempre pronta a aceitar o veredito da maioria, enquanto as eleições assegurarem o seu monopólio. Mas estejam certos de que estaremos a braços com uma nova guerra dos Escravos quando estiver em minoria nos assuntos que são para ela de importância vital.»

Bakunin e os seus sequazes, mau grado as consequências catastróficas da sua intervenção, consideram a Comuna como uma confirmação do anarquismo. A seguir a 1868, fundaram a Aliança Internacional da democracia socialista, que se batia pelo «comunismo anti-autoritário» e desenvolvia dentro da Internacional uma atividade secreta de desagregação. Bakunin, em quem Marx em 1864 saudava «um dos raros homens em que, ao fim de dezasseis anos, constato um progresso e não um retrocesso», não pode admitir a ditadura do proletariado, que contradiz a sua teoria anarquista do Estado. A partir do Congresso de Bâle (1869), colidiu contra os marxistas, partidários da socialização dos meios de produção, a propósito da questão das heranças, cuja supressão lhe parecia o meio de abolir a propriedade privada. Para Bakunin todo o Estado é opressivo (mas, aos seus olhos, o Estado «liberal» dos países anglo-saxões não é propriamente um Estado): a «ditadura do proletariado» não seria pois mais do que uma ditadura de sábios e de políticos sobre o proletariado, ou então do proletariado sobre os camponeses e o sub-proletariado, dos países industriais sobre os países agrícolas. Bakunin identificava a tese de Marx, exposta no Manifesto e na Mensagem inaugural da Internacional, sobre «a organização do proletariado em classe dominante», às ideias de Lassalle sobre o «Estado popular», que imperavam em numerosos socialistas alemães.24 Acusava Marx de nacionalismo germânico e de russofobia, e de exercer na Internacional, por intermédio do Conselho geral, uma ditadura pessoal (acusações que foram retomadas e sistematicamente exploradas pela imprensa e a literatura burguesas anti-socialistas).

A luta interna dura até ao Congresso de Haia (Setembro de 1872). «Disso depende a vida ou a morte da Internacional», escrevia Marx a Kugelmann. Apoiados pela maioria dos antigos comunardos e blanquistas (Frankel, Edouard Vaillant), Marx e Engels obtêm a exclusão de Bakunin e a aprovação da sua teoria do partido: «Na luta contra o poder coletivo das classes possuidoras, o proletariado não pode agir como classe senão constituindo-se a si próprio em partido político distinto, oposto a todos os antigos partidos formados pelas classes possuidoras.»25 Para o subtrair aos afrontamentos das seitas, fizeram igualmente votar a transferência do Conselho geral para Nova Iorque. Mas a A.I.T seria dissolvida em 1876.

A «morte» da Internacional foi a sua «vida»: é pela difusão da análise da Comuna que se desenvolve em grande parte o trabalho político nos diferentes países europeus a partir de 1871. As obras anteriores de Marx (notoriamente o Manifesto) começaram então a ser largamente conhecidas e utilizadas nas organizações do proletariado: na Alemanha, em França, na Rússia, na Itália.

«A primeira Internacional tinha cumprido a sua missão histórica e cedia o lugar a uma época de crescimento infinitamente mais considerável do movimento operário em todos os países, caracterizada pelo seu desenvolvimento em extensão, pela formação de partidos socialistas operários de massa, no quadro dos diversos estados nacionais.»26

Em 1879, Marx ajudou ativamente Guesde e Lafargue a fundar o Partido operário francês e a redigir o programa.

Em 1875, teve lugar em Gotha o Congresso de unificação dos socialistas alemães «lassalianos» e «marxistas» (ditos «eisenaquianos»: Bebel, Liebknecht). Neste período, que abre a transição para o que será a fase imperialista do capitalismo, começa também a aparecer a contradição específica da sua nova fase de desenvolvimento do movimento operário: acontradição, no seio dos partidos «marxistas» legais, entre o socialismo científico e o oportunismo, que traduz a influência da burguesia no próprio seio do movimento operário. Marx e Engels travaram uma luta interna sem concessões contra o oportunismo, luta que em parte ficou secreta (cf. a correspondência de Marx com os dirigentes da social-democracia alemã). A sua intervenção não foi sobretudo tática, mas teórica: ver em particular O Anti-Dühring (1878) de Engels (com um capítulo de Marx), e Crítica do Programa de Gotha (1875, publicado apenas em 1891 por Engels).

Crítica do programa de Gotha (que a social-democracia alemã «ignorará» a maior parte das vezes e que Lenin colocará no centro da sua análise do Estado) ilustra a nova etapa da teoria de Marx, o resultado da sua transformação, a combinação das análises do Capital e dos ensinamentos da Comuna. Marx critica aí severamente a tendência para o compromisso com o Estado burguês (o «Estado popular livre», a «educação do povo pelo Estado», o nacionalismo) e com a ideologia jurídica e política burguesa. Sobretudo, Marx enuncia uma tese teórica nova em relação a todos os textos anteriores, que desenvolve a teoria da ditadura do proletariado: a distinção das duas fases da sociedade comunista. Na primeira fase, a fase «inferior», que sucede à tomada do poder pela classe operária, encontramo-nos a braços com «uma sociedade comunista não tal como se desenvolveu nas bases que lhe são próprias, mas pelo contrário, tal como acaba de sair da sociedade capitalista. É «o direito igual para todos» que continua a reinar, isto é, o direito burguês assente na igualdade dos indivíduos («a cada um segundo o seu trabalho»), mas aplicado à troca entre o trabalhador e a sociedade que suprimiu o capitalista privado como proprietário dos meios de produção. A segunda fase, a fase «superior», que assenta só sobre «as bases específicas do comunismo», e para a qual tende toda a ditadura do proletariado, não poderá começar senão «quando tiverem desaparecido a subordinação escravizante dos indivíduos à divisão do trabalho, e, com ela, a oposição do trabalho manual e do trabalho intelectual; quando o trabalho não for apenas um modo de vida mas se tornar ele próprio a primeira necessidade vital; quando, com o desenvolvimento múltiplo dos indivíduos, as forças produtivas forem elas também aumentadas, e quando todas as fontes da riqueza colectiva brotarem com abundância. Só então o horizonte acanhado do direito burguês poderá ser definitivamente ultrapassado e a sociedade poderá escrever na sua bandeira ‘De cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades’». Assim, pode esboçar-se uma teoria das contradições no processo de passagem para o comunismo.

d) O último período

No último período da sua vida, o trabalho de Marx é constantemente perturbado pela doença. Apesar disso, em colaboração com Engels, mantém-se o conselheiro e o intermediário dos partidos socialistas, preparando a constituição de uma nova Internacional, que só se realizará depois da sua morte. Segue de muito perto a tradução do Livro I do Capital: em particular, a tradução francesa (de J. Roy), publicada em 1875, inteiramente revista por ele. Mas não pode acabar a redação dos livros seguintes: os livros II e III serão publicados por Engels, com base em manuscritos e indicações de Marx, em 1885 e 1894; o livro IV (as «Teorias da mais-valia») por Kautsky, em 1905-1910.

Marx estuda, além da conjuntura e da teoria económicas, as ciências naturais (geologia, química agrícola, agronomia, etc.) em ligação com a teoria da renda fundiária e do desenvolvimento do capitalismo na agricultura, para refutar o maltusianismo e para analisar a história de novas formações sociais capitalistas (como a Rússia, os Estados Unidos).

No plano filosófico, a tendência para o oportunismo na social-democracia é marcada também pelos ataques contra o materialismo e a ideia do «regresso a Kant». Nesta conjuntura, a questão da dialética volta pois explicitamente ao primeiro plano do trabalho de Marx e Engels (que proporá para ela diversas definições nas suas obras, do Anti-Dühring e da Dialética da natureza a Ludwig Feuerbach e o Fim da filosofia clássica alemã, 1888).

O problema das sociedades «pré-capitalistas» e «primitivas» tinha sido estudado por Marx nos anos de 1850-1860, ao mesmo tempo que a colonização capitalista da Ásia.27 É-o de novo neste último período, a partir dos trabalhos do etnólogo e pré-historiador americano L. H. Morgan.28

A partir de 1872 (ano em que O Capital foi traduzido pela primeira vez em russo, por Danielson e Lopatine), Marx mantém contatos estreitos com os revolucionários russos da tendência «Vontade do povo». Aprende russo e estuda a história das relações sociais «comunitárias» na agricultura russa. No prefácio da segunda edição russa do Manifesto do Partido comunista, um dos seus últimos textos (1882), afirma: «Hoje […] a Rússia está na vanguarda do movimento revolucionário da Europa […] Se a revolução russa dá o sinal de uma revolução operária no Ocidente, e se ambas se completam, a propriedade comum atual da Rússia poderá servir de ponto de partida para uma evolução comunista». Os factos, uma vez por exceção, não deviam invalidar totalmente esta previsão.

No dia 14 de Março de 1883, Marx morria em Londres.


NOTAS:

1 – Cf. Louis ALTHUSSER, Réponse à John Lewis, Maspero, 1973.

2 – Segundo a expressão de Lenin, Karl Marx, Obras, tomo XXI, onde iremos buscar várias formulações. Este resumo deve igualmente muito à obra de Jean Bruhat, Karl Marx e Friedrich Engels, Ensaio biográfico, Paris, 1970.

3 – Para compreender esta situação paradoxal e instável, que caracteriza então o trabalho teórico de Marx (e de Engels) reportar-nos-emos, mais do que às «autocríticas» do próprio Marx, por vezes alusivas, a um texto notável de Engels: o prefácio da reedição alemã (1892) da sua Situação da classe trabalhadora na Inglaterra (1845).

4 – Cf. Os Manuscritos economico-políticos de 1844, encontrados e publicados depois de 1920.

5 – Não digamos, pois, que Marx (e Engels) levam a cabo esta transformação porque ela decorreria das suas posições proletárias, da sua tomada de posição em favor do proletariado: digamos antes que, nesta transformação, se constituem e se realizam pela primeira vez na história, sobre uma base material determinada, posições teóricas proletárias, de que eles se tornam na representantes. Anote-se assim que o que faz progredir esta transformação, o que confere ao trabalho de Marx a sua eficácia é, em última análise, a própria natureza do conflito de classes que aí se joga entre a ideologia burguesa e a ideologia proletária, com desenvolvimentos diferentes.

Note-se bem, portanto: reduzir, como se faz multas vezes, este processo ao trabalho da «reflexão», da «tomada de consciência» ou ao «génio» dos grandes homens que adivinham o curso da história, ou estão «avançados» relativamente a ele, é compreendê-lo não do ponto de vista da ideologia proletária, a que Marx e Engels chegaram finalmente, mas do ponto de vista da ideologia burguesa, donde provinham e que abandonam tendencialmente. Mas então, do ponto de vista da ideologia proletária, que renuncia a estas explicações idealistas, um tal processo deve aparecer-nos necessária e intrinsecamente inacabadoininterrupto: a história do marxismo não está acabada no próprio momento em que começa.

6 – Sobre os acontecimentos de 1848, é preciso ler o livro de Engels, inicialmente publicado sob a assinatura de Marx: Revolução e contra-revolução na Alemanha, 1851-1852 (em La Révolution démocratique bourgeoise en Allemagne, Paris, Editions sociales). Engels faz uma análise da conjuntura histórica (relações de forças das classes sociais e sua evolução nos diferentes países) que é um modelo do género. Aí se encontra em particular a demonstração da necessidade do papel dirigente da classe operária na sua aliança com a pequena burguesia, e uma sistematização das «regras» da insurreição de que Lenin e Marx desenvolvem ás lições.

7 – Cf. Trabalho assalariado e Capital, publicado em 1849, a partir de conferências feitas em 1847 em Bruxelas.

8 – A ideia de «revolução permanente», abandonada por Marx depois de 1848-1850, foi retomada e generalizada bastante mais tarde por Trotsky contra a teoria leninista do imperialismo e a política de «construção do socialismo num só país» na URSS.

Uma tradição que ressurge periodicamente, por vezes «à esquerda» e por vezes «à direita» (notoriamente em Bemstein, o pai do «revisionismo»), faz da «ditadura do proletariado» uma noção «blanquista». O próprio Marx escrevia em As lutas de classes em França (1848-1850): «O proletariado agrupa-se cada vez mais em volta do socialismo revolucionário, em volta do comunismo para o qual a própria burguesia inventou o nome de Blanqui. O socialismo é a declaração permanente da revolução, a ditadura de classe do proletariado, como ponto de transição necessário para chegar à supressão das diferenças de classes em geral […].»

9 – Na Mensagem inaugural da AIT (1864), Marx sublinha «dois grandes factos» que dai resultam: a obtenção da lei das dez horas, limitando o dia de trabalho, e o desenvolvimento das cooperativas operárias.

10 – Carta de Pieper a Engels, 1851.

11 – Littérature d’exilés, 1874.

12 – Mensagem da AIT à National Labor Union dos Estados Unidos.

13 – Carta a Kugelmann, 9 de Outubro de 1866.

14 – Salário, Preço e Lucro, relatório apresentado em 1865 ao Conselho geral, contra as teses do owenlsta inglês J. Weston.

15 – Circular de 9 de Março de 1869.

16 – Cf. Bruhat, Dautry, Tersen. La Commune de 1871. Editions Sociale3, 2a edição, 1970.

17 – Sobre a posição de Marx a propósito do «campo que é necessário escolher», do ponto de vista dos interesses históricos do proletariado, nas guerras entre burguesias nacionais (no século XIX), é preciso ler o artigo fundamental de Lenin: «Sous un pavillon étranger» (1915), Oeuvres complètes, t. XXI, p. 135 e seg., e também a brochura La Socialisme et la Guerre (1915), O. C., tome XXI, p. 305 e seg.

18 – Lenin, artigo Karl Marx.

19 – Cf. III Mensagem da Internacional, A Guerra Civil em França.

20 – Prefácio à tradução russa das Cartas de Marx a Kugelmann, 1907.

21 – «Na história, este aspecto da luta inscreve-se muito raramente na ordem do dia: em compensação, a sua importância e consequências inscrevem-se em dezenas de anos. Os dias em que se pode e se deve inscrever o programa de tais métodos de luta equivalem a vintenas de anos doutras épocas históricas.» Lenin, A falência da II Internacional, O. C., tomo XXI, p. 260.

22 – A Guerra Civil em França, op. Cit.

23 – Engels, prefácio à reedição de A Guerra Civil em França, 1891.

24 – Cf. Bakunin, Estatismo e Anarquia (1873), que Marx anota em pormenor.

25 – Artigo 7 a acrescentado aos estatutos da A.I.T.

26 – Lenin, artigo Karl Marx.

27 – Cf. a recolha dos Textos sobre o colonialismo de Marx e Engels, Edições em línguas estrangeiras, Moscovo.

28 – Ver o livro de Engels, A Origem da família, da propriedade privada e do Estado.

Fonte: Lavra Palavra.

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