Um silêncio que vale por mais de mil palavras

Por Rita Coitinho, para Desacato.info.

O processo de entrega da EMBRAER à Boeing, em um pacote que inclui tecnologia de uso militar não preocupou o ministério da Defesa, conforme “informam” os grandes jornais. Tampouco se viu alguma manifestação dos comandos militares, dos generais da ativa ou, mesmo, de certos oficiais twitteiros, da ativa e da reserva. O mesmo pode-se dizer das operações envolvendo vendas, a preços irrisórios, de campos de petróleo e até plataformas da Petrobrás, a despeito dos protestos e manifestações de grupos altamente qualificados para tratar do tema, como as associações de engenheiros da área.

A venda da Embraer à multinacional estadunidense está em pé de igualdade em descalabro nacional com o desmonte do programa nuclear brasileiro, ocorrido em lances rápidos que envolveram a ação coordenada do judiciário e da “inteligência” estadunidense e que levou à prisão, pouco esclarecida e baseada em vagas acusações de corrupção, do pai do programa nuclear brasileiro, o Almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva. É da mesma gravidade das notícias recentes de que avança o entendimento do Brasil com os EUA para cessão do uso da Base de Alcântara (conforme abordamos em artigo anterior http://desacato.info/a-america-do-sul-no-mapa-das-guerras-do-futuro/).

O caso dos aviões envolve, da mesma maneira que o do submarino nuclear, o sequestro de tecnologia. Lembremos os debates acalorados em torno da compra dos aviões Gripen NG, durante o governo de Dilma. O Brasil recusou a compra de aviões estadunidenses porque a venda não incluía transferência de tecnologia e optou pelas aeronaves suecas, numa decisão de Estado que gerou protestos dos estadunidenses e ensaios de setores do Ministério Público de questionar a decisão da chefe do poder executivo, tomada em conjunto com o Ministério da Defesa e o comando da Aeronáutica. As aeronaves (F-39) de tecnologia sueca seriam fabricadas pela Embraer, com a transferência da tecnologia desenvolvida pela empresa nórdica. Agora, num lance rápido, o governo de Temer entrega a empresa e a tecnologia ao país que perdeu a concorrência. Coincidência? Não. Mais um passo adiante na consolidação do objetivo do golpe de Estado: submeter o Brasil e fazê-lo retornar à condição da qual não deveria ter ousado sair: a de país dependente, tecnologicamente atrasado e politicamente alinhado aos interesses do capital internacional.

Em política, certos silêncios são eloquentes. Já passou o tempo em que o profissionalismo, o zelo pela função e a discrição poderiam ser alegados por quem desejasse sair em defesa dos comandos militares. Desde que uma porção deles tem feito uso de redes sociais para expressar suas não solicitadas opiniões sobre a vida civil, passou a ser esperado que se pronunciem sobre as questões que, de fato, afetam sua função: a defesa da soberania nacional. Mas não. Preferem usar as redes sociais para opinar sobre política e questões morais, como se viu, uma vez mais, neste domingo, quando o general da reserva, Paulo Chagas, utilizou-se do twitter para investir contra o desembargador Rogério Favreto. De maneira mais sutil, o próprio comandante do exército, General Villas Boas, já utilizara o twitter para pressionar o STF na véspera da sessão que decidiu sobre o pedido de habeas corpus para Lula, em abril deste ano. Com platitudes sobre “moralidade”, “respeito à paz social” e “atenção à missão institucional do exército”, o comandante externou sua posição, favorável à prisão de Lula já em segunda instância, quando se sabe que não lhe cabe opinar sobre questões que estejam sob a apreciação do poder judiciário.

A julgar pelos oficiais twitteiros, a preocupação de uma parcela considerável – e poderosa – dos militares está centrada na “moralidade”, o velho mantra imortalizado pelo Brigadeiro Eduardo Gomes, o ex-tenentista que, em 1945 e 1950, foi o candidato (derrotado) da UDN à presidência da república, tendo também participado ativamente do Golpe de Estado de 1964. Com a internacionalização da formação teórica das forças armadas, a partir da criação da Escola das Américas (1946), sediada no Panamá e coordenada pelos EUA, o moralismo uniu-se ao discurso anticomunista da Guerra Fria e foi instrumentalizado na perseguição às esquerdas do subcontinente latino-americano. Hoje a escola já não funciona no Panamá, e toda sua estrutura foi transferida para as instalações do Estado da Geórgia, nos EUA (Fort Benning), onde os cursos de formação para militares latino-americanos seguem a todo vapor. Muitos dos militares brasileiros que chegam ao topo da carreira passaram por algum desses cursos. Ao que tudo indica, embora o Livro Branco da Defesa do Brasil aponte para o entendimento de que hoje a maior ameaça à segurança nacional vem de uma “potência” estrangeira, o pensamento hegemônico das forças armadas segue na velha cartilha da Escola das Américas, segundo a qual a principal ameaça é o “inimigo interno”, que parece ser, até hoje, o mesmo do período da guerra fria: as organizações de esquerda e movimentos populares.

Não importa que justamente os governos desses partidos de esquerda que tanto combatem tenham dado sustentação ao programa nuclear brasileiro; que tenham garantido a soberania do país sobre seu território recusando-se a seguir adiante nas tratativas de cessão da Base de Alcântara (como ocorreu no governo de FHC); que tenham tido coragem de decidir contra as pressões estadunidenses por aquisição de tecnologia militar; que tenham reequipado as forças armadas, que estavam à míngua ao final do governo de FHC, e ampliado seu orçamento. Nada disso é tão importante, ao que parece, quanto a cruzada moral em que se empenham os oficiais twiteiros.

A não ser que demonstrem o contrário – e passem a utilizar-se das redes sociais para questões pertinentes à sua missão institucional -, desde que teve início o processo político que redundou na situação em que nos encontramos no dia de hoje, as manifestações públicas das Forças Armadas, na medida em que se atêm ao velho moralismo udenista e silenciam frente aos reiterados ataques à soberania nacional, têm expressado lealdade às forças de desestabilização da sociedade brasileira e de desmonte da soberania nacional, articuladas aos interesses das grandes corporações internacionais, num processo que já caracterizamos, em artigos anteriores, como “guerra híbrida”. Calam-se diante da entrega das estatais brasileiras e dos recursos naturais, do desmonte da ciência e tecnologia nacionais, ao mesmo tempo em que emprestam prestígio à prática de lawfare do judiciário brasileiro, cujo único objetivo é impedir que, nas eleições de 2018, Lula seja reeleito e retome o projeto político soberano que esteve em curso entre 2003 e 2016.

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[avatar user=”Rita Coitinho” size=”thumbnail” align=”left” link=”attachment” target=”_blank” /]Rita Coitinho é socióloga, Dra. em Geografia e membro do Conselho Consultivo do Cebrapaz.