Um olhar para além da pandemia. Por Evânia Reich.

Imagem de Bellezza87 por Pixabay

Por Evânia Reich, para Desacato.info.

É certo que o momento atual da crise sanitária, pela qual passa o mundo, colocou em holofotes os problemas causados pelo vírus. Problemas decorrentes da crise financeira da grande maioria dos setores econômicos, com pequenos e grandes negócios fechando todos os dias, crise de desemprego, aumento da fome, sobretudo nos países mais pobres, problemas psíquicos no enfrentamento do isolamento social, são alguns exemplos do que o mundo vem enfrentando. Os problemas são tantos que não conseguimos apreendê-los de forma conjunta. É preciso muito esforço intelectual, exegético, e até epistemológico para tentarmos compreender o que estamos passando. Talvez teremos uma ideia mais clara e completa quando tudo isso se tornar o relato de uma experiência que já se encontra no passado. Como escrevia o filósofo alemão Hegel, se referindo à filosofia, “a coruja de minerva só levanta voo ao entardecer”.

Ocorre que para além ou antes mesmo dos problemas ligados à pandemia, os quais afetam alguns em maior proporção e outros em menor, os grandes problemas dos brasileiros que se encontram na pobreza ou em estado de vulnerabilidade não desapareceram, ao contrário, ampliaram-se. No entanto, parece-me plausível afirmar que os sujeitos vulneráveis ficaram ainda mais invisibilizados pelos holofotes da Covid-19.

Na tentativa de democratizar as consequências da Covid-19, afirmando que cada um de nós pode ser vítima do vírus, ficou esquecido, como sempre, que os problemas dos pobres e vulneráveis do Brasil só aumentaram. Aqueles que vivem à margem da sociedade continuam sendo as maiores vítimas de um sistema político e de um projeto de governo que separa os que devem ser protegidos dos que podem ser destruídos. Como enfatiza Edouard Louis, jovem romancista francês, que escreveu entre outros, o livro “Quem matou meu pai”, sem tradução ainda no Brasil, “o mundo é dividido entre corpos que são protegidos e corpos que são destruídos”. A covid-19 não somente ampliou a destruição desses corpos, como de alguma forma normatizou essas perdas.

Quando presenciamos milhares de covas sendo feitas para enterrar milhares de corpos em países como os EUA, e em várias cidades brasileiras, nas cenas chocantes que acompanhamos em nossas telinhas, parece-me que esquecemos, não somente, que muitas dessas covas são designadas aos mais vulneráveis, mas sobretudo que esses já eram enterrados sem que algo fosse feito para evitar. As políticas governamentais sempre esqueceram os corpos dos dominados. Parafraseando mais uma vez o romancista francês, as boas políticas são feitas para o corpo dominante, e as más para o corpo dominado.

É importante uma certa vigilância para não ficarmos cegados por nossa própria desgraça. Se famílias inteiras podem ter sido dilaceradas pela perde de seus entes queridos, milhares de outras são invisibilizadas em seus sofrimentos muito antes da Covid-19. O risco que corremos em invizibilizá-las ainda mais é enorme.

Por isso é imprescindível a exigência de políticas públicas que incluem esses vulneráveis. Sabemos que os programas sociais implantados até hoje por sucessivos governos ainda estão muito aquém do mínimo necessário para suprir as carências materiais de um indivíduo. Por isso é importante apontar a responsabilidade dos sujeitos políticos para a viabilização de programas sociais que coloquem em foco aqueles que saíram de cena há muito tempo.

Na tentativa de democratizar o vírus e suas consequências é preciso destacar que uma grande parcela dos brasileiros que já era invisível entra em cena como igual, embora ela nunca usufruiu de nenhuma igualdade. Portanto, é injusto e perverso compararmos sofrimentos como se todos estivessem no mesmo barco.

Se é injusto esquecer que antes mesmo da pandemia uma parte do povo brasileiro sempre foi negligenciado pelas políticas neoliberais de nossos sucessivos governos, é ainda mais injusto pensarmos que estas mesmas pessoas sofrem igualmente as consequências dessa pandemia.

Injustiças estão sendo causadas diariamente pelo sistema que continua aplicando suas regras mesmo em um momento de exceção como este pelo qual passamos. Processos de despejos de famílias inteiras sendo cumpridos no estrito pé da letra da lei, como se ainda pudéssemos pensar o direito de forma universal, é só um dos exemplos, entre tantos que podemos citar. O momento é de mudança de paradigma. Se os governos não atentarem para a necessidade vital de proteção também dos mais vulneráveis, corremos o risco de nos tornarmos o pior de nós mesmos.

Evânia E. Reich é doutora em Filosofia pela UFSC – Pesquisa do pós-doutorado em Filosofia Política pela UFSC.

A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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