Um exército de hipócritas

chaplin-620x400“Em plena Avenida Paulista, início da última madrugada, um casal foi agredido brutalmente por um grupo de jovens munidos de pedras e pedaços de pau. O grupo, segundo testemunhas, usava camisas, roupas e exibia tatuagens típicas daqueles conhecidos alimentarem discursos de ódio aos reaças. A mulher sofreu fratura no braço esquerdo, enquanto o homem está no hospital em estado grave.”

Ainda não aconteceu, mas chegará o dia em que ouviremos algo assim ser entoado durante um telejornal. O reaça — seja lá o que isto signifique (logo trato deste dilema) — é o novo preto, a nova mulher, um neo-gay, “novo judeu novo” e por aí vai.

Coloco assim mesmo, reaça, sem aspas, que estas não são necessárias. Afinal, desde quando minorias tem direito a amortecedores quando são taxadas de maneira pejorativa?

Não, não estou exagerando. Pergunte a um negro que já sofreu racismo ou sentiu-se oprimido, mesmo um judeu, uma mulher ou homossexual que sofreu discriminação, se a sensação que tem não é a de estar sozinho, contra tudo e todos.

A grande diferença, talvez, esteja no cinismo. Um racista, por cretino e odioso que seja, é sincero. Oprime sem fazer teatro (quando sim, trata-se apenas de não incorrer em crime e acabar atrás das grades). O mesmo acontece com todos os outros comportamentos xenófobos e covardes de maneira geral. O sentimento é límpido, expresso, nem que seja no gesto, francamente.

Já com aqueles que apontam o dedo dizendo “reaça!”, acontece justamente o oposto.

Estes, desde o acordar até a hora de dormir, destilam a superioridade típica dos autoritários. Desde o acordar até a hora de dormir, repito, arrotam um corolário comportamental pseudo-inatacável, politicamente corretíssimo, a polpa do clichê.

Seja ir ao cinema, teatro, comer na rua ou comprar roupa, às vezes até mesmo nos lugares que frequenta, tudo responde à uma cartilha homogênea. E se acaso tiver que fugir desta, por conta de um compromisso inadiável que seja, internamente regozija-se. Acredita mesmo que sua ilustre presença, ali imerecida, abrilhanta uma atmosfera opaca; artificial.

Nada disto deveria me incomodar. A falta de originalidade alheia não é coisa somente nossa. Somos — seja Rio, São Paulo, portanto o Brasil — uma província custosa e sem graça, ideal para proliferação do subdesenvolvimento intelectual, da dificuldade em aceitar o pensamento diferente do senso comum. Mas também em Paris, Nova York ou Londres são possíveis de serem encontrados bolsões de gente assim, fundamentalmente determinadas em ditar a hipocrisia. Apenas que, nestas cidades-miríades, fantásticas por supraheterogêneas, tais nódulos diluem-se facilmente.

Incomoda, porém, já que estes não se contentam em serem como são. Não basta estabelecerem severos tribunais internos. Não, não basta. Desejam, além do mais, impor o que julgam ser o comportamento sociopolítico ideal. E quem não os segue, em todos os sentidos, absolutamente todos, precisa de um selo. Deve ser marcado, insisto, tal qual judeus foram, gays, negros e mulheres são. Quem não se adequa ao sistema deve ser taxado.

O cinismo — diferente de ironia — é óbvio. Afinal, como podem, os paladinos do bom gosto cultural, comportamental, político e o diabo (como diria a outra) ao mesmo tempo serem tão autoritários?

Meses atrás, quando o pau quebrava por aqui, eu estava em Paris. Assim, lá pelas tantas, em um daqueles dias, foi divulgada uma manifestação “de apoio”. Apoio a quem?, pensei. Em condições normais, eu, já um velho acabado, nunca que entraria numa canoa furada deste nível. Mas quando o negócio todo deixou de ser comandado pela esquerda-iphone (falha minha, provavelmente é de bom tom adotar Android, né? Os babaquaras arrogantes mal se dão conta que o Android de hoje é a Apple de amanhã…), fiquei animado. Quando perderam a mão e a classe média multifacetada foi questionar uma série de pontos que não poderiam ser questionados (afinal de contas, quem mesmo está no poder há 13 anos?), achei que poderia ser divertido e acabei indo.

Rapaz, éramos uns 500 brasileiros. Negócio obviamente sem pé nem cabeça, uma garotada fantasiada de sindicalista, com cartolinas rabiscadas; entoando o indefectível corinho “o povo não é bobo, fora Rede Globo”. Uma enorme bobagem.

Fazia frio e já matutava onde seria o ‘vert de rouge’, quando lá pelas tantas se materializam três delícias perto de mim. Realmente bonitas as pequenas. Especialmente uma moreninha, olhos amendoados, côncava e convexa nos lugares certos, uma boca capaz de impacientar monges. Linda, até resolver cantar: “Reaça, vaza desta praça!”

A bela cretina não falava comigo, sequer havia notado a minha presença. Seu alvo era o craque Caco Barcellos enquanto este fazia uma chamada ao vivo. Fiquei indignado da mesma forma.

Agora, dias atrás, uma pessoa destas que a vida afasta, mas da qual você sempre vai gostar, batendo papo à toa via rede social, me pintou como “reaça”, assim, na maior.

Lamentei em ambas as situações. Não com o termo. De verdade. Acharem que sou isto ou aquilo não pode me importar tanto. Um juízo a meu respeito, seja ele qual for, quando muito me faz pensar no que levou o sujeito a enxergar daquele jeito. Às vezes, dependendo de quem vem, uma ofensa até ganha contornos de elogio.

Entretanto faz pensar e formular a pergunta: quais são os parâmetros, afinal?

Ainda tendo os protestos como pano de fundo, quem usa camisa pólo pode ir à rua reclamar?

E cinema americano? É aceitável? Quantos filmes iranianos é de bom tom assistir por ano (ou, cá pra nós, pelo menos dizer que ouviu falar, que é para fazer pose de intelectual)?

Mulher não pinta as unhas nem cabelo e homem segue padrão ‘low profile’ à lá los hermanos, porque vaidade é para os superficiais? Entendo…mas e fazer estilo? Não conta? Não é uma forma de vaidade deixar a barba grande? Não é moda fazer questão de não seguir moda?

Preciso fazer amizade com todos os garçons, taxistas, motoristas de ônibus e por aí vai, pois afinal devo deixar claro que sou contra este abominável modelo capitalista, ou aí já é demais?

Todos estes contextos nada subliminares pouco me fazem, insisto. Me dão pena.

É preciso muito despreparo, infantilidade e falta de profundidade para medir alguém por estes e outros tanto quanto banais preceitos. Mas a arrogância, quando extrapola pelas cordas vocais, esta sim é grave. Esta incomoda.

Se desde sempre o reacionário é visto como alguém elitista, inimigo do povo e da liberdade, a diferença é que os de hoje em dia tem vergonha de assumirem-se no poder.

Fonte: Revista Bula

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