Um caminho pelos significados da palavra socioambiental na Floresta Amazônica

Por Duda Menegassi.

A Floresta Amazônica ocupa o imaginário coletivo de todos os brasileiros e possui um acervo próprio de personagens. Essa, entretanto, não é uma história clichê sobre a Amazônia. Todos os elementos clássicos estão presentes, mas o ponto de vista é, minimamente, original. É a floresta vista de baixo e a pé. É o relato de quem trilhou durante cinco dias por dentro da Reserva Extrativista Chico Mendes, no Acre. De quem se viu miúda na sombra de árvores gigantescas, e tristemente exposta ao ver tantas outras no chão, em áreas desmatadas para virar pasto. Ao longo dos seus 90 quilômetros, a recém-inaugurada Trilha Chico Mendes não tenta maquiar a realidade. O percurso mostra a exuberância da floresta, mas também expõe a velocidade com a qual ela está indo abaixo.

trekking, realizado entre os dias 17 e 21 de agosto, fez parte das comemorações de aniversário do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). A coincidência de nomes reflete a importância simbólica da reserva extrativista (resex). Chico Mendes é um herói no Acre, apesar desta ser uma história menos conhecida Brasil afora. Na criação do órgão ambiental, há exatos 10 anos, o seringueiro acreano que se tornou mártir e símbolo da luta pela proteção das florestas e seu povo, foi eternizado. Seu nome pode servir como um lembrete da importância de pensar socioambientalmente, uma missão refletida na divisão de categorias das unidades de conservação (UCs)brasileiras: as de proteção integral e as de uso sustentável – como a resex. A jornada por essa reserva com 970 mil hectares de Floresta Amazônica onde vivem cerca de 2.300 famílias revela um pouco o tamanho do desafio gigantesco que é conciliar interesses sociais e ambientais.

A criação da resex, em 1990, foi pioneira. Na época, não havia ICMBio, tampouco o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC, criado em 2000). Havia apenas o desejo dos moradores da floresta de mantê-la em pé, porque a sobrevivência deles dependia disso. Dependia da seringueira e da extração da borracha; dos animais e da caça para subsistência. Através da luta deles, da qual Chico Mendes se tornou símbolo, surgiu a ideia da primeira área protegida onde a conservação não excluía o extrativismo e a moradia. Hoje, o principal extrativismo na reserva é a castanha, em alta no mercado onde uma única lata vale entre 100 e 150 reais. Em 27 anos, aliás, muita coisa mudou.

Analista ambiental da UC há 9 anos, Fernando Maia acompanhou de perto algumas dessas transformações e aposta no turismo como aliado para combater os recentes avanços da pecuária dentro da unidade. Principal responsável por tirar a Trilha Chico Mendes do papel, Fernando liderou nossa equipe de seis pessoas na caminhada inaugural do percurso. Além dele, a expedição contava com um representante do governo do Acre, um servidor da Secretaria de Turismo e Lazer do Estado (SETUL), um membro do Exército Brasileiro e uma voluntária da unidade – além da jornalista que vos escreve. No apoio logístico de transporte, outro voluntário dava assistência ao grupo.

A primeira etapa da travessia é feita de carro para vencer os 270 quilômetros que separam Rio Branco do início do ramal 89, uma estrada de terra que leva ao interior da Chico Mendes. O traslado desse trecho, que exige veículo apropriado, foi feito com Seu André, um dos moradores da reserva. Na traseira do seu caminhão, cruzamos os 30 quilômetros até o ponto de partida da trilha.

André tem 67 anos. Ele veio do Ceará com os pais quando tinha 17 e é um seringueiro conhecido na região, mas admite que hoje quase não realiza mais o ofício porque “o valor da borracha está baixo, mesmo com os subsídios [do governo do Acre]”. Para substituir a atividade, começou o serviço de transporte e frete com o caminhão. Apesar dos ramais serem completamente irregulares, Seu André garante que eles ficam muito piores na época das chuvas, quando viram um lamaçal. Esse é um dos motivos pelos quais a recomendação será realizar a trilha apenas durante a estação seca, entre maio e outubro quando, em vez da lama, há apenas poeira.

Chegamos na casa dele no final da tarde, uma construção toda feita de madeira, simplicidade e aconchego. Depois de um farto jantar, nos preparamos para deitar e a família me oferece uma cama, para que eu não precise dormir na rede. É como frisou Leandro, amazonense de nascimento e acreano de coração, “o resto eu não sei, mas uma coisa eu garanto com certeza: a hospitalidade do acreano”. Uma afirmação que eu iria entender cada vez mais ao longo da jornada uma vez que todos os pernoites são feitos em casas de moradores. Uma das possíveis fontes de renda que surgem com a criação da Trilha Chico Mendes.

O começo da caminhada pela floresta

Antes das 8h, já estávamos com o pé na trilha, de olho na marca registrada do percurso: uma pegada amarela estilizada com o corte característico da seringueira. A sinalização, entretanto, não irá dispensar a obrigatoriedade do guia no trajeto. De acordo com Fernando, a pegada servirá como ferramenta de institucionalização e reconhecimento do atrativo.

Estamos dentro da maior floresta tropical do mundo e no meio da manhã, a umidade se converte em chuva sobre nossas cabeças, como um batismo amazônico. Com a câmera fotográfica guardada, somente os olhos e a memória puderam registrar esse trecho e como o cenário se transforma regado pelos céus. O cheiro de chuva, a terra úmida, as folhas molhadas e a neblina.

Na trilha, passamos por árvores gigantes, como a sumaúma (Ceiba pentranda), mas também por áreas recém-desmatadas. Os pastos fazem uma triste fronteira com a floresta. Fernando lamenta que a paisagem de desmatamento seja inevitável, mas pontua que “não queremos esconder a realidade da reserva, nem criar visitantes alienados sobre a o que está acontecendo aqui. A pastagem é para fazer com que as pessoas pensem no que a reserva está se transformando e o que será dela se não fizermos algo”.

A Resex Chico Mendes aparece em 10º lugar no triste ranking feito pelo Imazon das 50 UCs mais desmatadas da Amazônia Legal entre 2012 e 2015. Nesse período, a unidade perdeu 4.790 hectares, o equivalente a 0,49% da sua área total. E a taxa de desmatamento não parece ter diminuído desde então.

Ao longo dos quase 17 quilômetros de caminhada do dia, foi inevitável me preocupar com o futuro da Amazônia enquanto me encantava cada vez mais com ela. Quando chegamos na Colocação Boa Vista, por volta das 16h, esses pensamentos ainda me acompanhavam quando fui apresentada ao Seu Anacleto, sua mulher e seus filhos. O nome “colocação” foi herdado da época em que cada seringueiro era “colocado” em um terreno para explorar a seringa. Hoje, como no passado, cada família habita uma colocação.

Depois do jantar,  sob a luz de uma única lâmpada incandescente, permanecemos à mesa para ouvir Anacleto contar histórias da luta dos seringueiros na região, da qual faz parte desde os 11 anos. No sindicato, conheceu e conviveu com Chico Mendes. Poeta e repentista, declamou um poema que compôs sobre o dia em que anunciaram a morte do companheiro de resistência. Entre os versos, lamenta a perda do herói, mas lembra que a luta continuou em seu nome, “o sangue jorrou no chão, a carne a terra comeu, nós choramos tanto, mas ninguém esmoreceu. Que dali por diante, muita coisa aconteceu. As reservas extrativistas, os projetos de assentamento, onde o homem lavra a terra e dela tira o sustento”.

Conhecer as histórias do movimento socioambiental pela voz direta de seus protagonistas que, não raro, estão apenas no plano de fundo da narrativa oficial, transforma a Trilha Chico Mendes em algo a mais do que “só” uma caminhada pela Amazônia, é também um mergulho na história de uma região, de um povo e de uma luta.

O segundo dia

Antes de sairmos para caminhada, tomamos um café-da-manhã com direito a uma iguaria local: o leite de jatobá, tão doce que recebeu o apelido de “Nescau da floresta”. A surpresa do dia, entretanto, foi um atrativo extra apresentado por Seu Anacleto: um apuí imenso e milenar, com raízes espalhadas por um diâmetro de, no mínimo, 300 metros – pelo que ele próprio mediu. A árvore está localizada a cerca de 800 metros de sua propriedade e o desvio vale a pena para conhecer esse gigante da natureza.

A floresta é linda, cheia de vida, de cheiros e, principalmente, de sons. A densidade da vegetação impede enxergar claramente e é com os ouvidos que percebemos a abundância e riqueza da Amazônia. Em meio ao canto dos cricriós (Lipaugus vociferans), que são chamados de seringueiros, ouvimos o som desafinado do bugio-vermelho (Alouatta seniculus). Aqui ele é chamado de capelão, por razões que, quem já ouviu um desses macacos “cantar” pode entender bem. Também nos deram as boas-vindas araras, beija-flores e pica-paus. Diante do barulho do nosso grupo, a fauna se esconde. Quando damos sorte, conseguimos flagrar o vulto de uma cutia ou de um quatipuru (Sciurus igniventris). Menos assustados diante da presença humana, talvez pela proximidade familiar, conseguimos admirar um bando de macacos-prego.

Se a exuberância da natureza poderia ser motivo suficiente para perder o fôlego, no caminho também existem vários trechos de subida, desafiando a ideia de que a Amazônia é uma grande planície. Os desníveis não passam da faixa de 300 metros, é verdade, mas ainda assim, subir e descer ao longo dos 16 quilômetros de trilha exigem dos caminhantes um bom condicionamento físico.

Almoçamos na Colocação São Domingos, onde provamos outra iguaria amazônica: o suco de açaí. Colhido diretamente da palmeira para mesa e bem diferente da versão consumida no resto do país. Aqui, toma-se açaí com açúcar e farinha. A energia do fruto ditou o ritmo do resto da caminhada e chegamos no nosso local de pernoite, a Colocação Paraíso, por volta das 16h30.

O terceiro dia de trilha

O terceiro dia começou em um varadouro, ramal menor e mais fechado, até entrar, de fato, na floresta. Na trilha, passamos em meio a um tabocal, equivalente a um bambuzal, porém com uma espécie nativa do Acre, a taboca (Guadua weberbaueri). O percurso foi sinalizado recentemente no mutirão voluntário feito na semana anterior à inauguração, ainda assim, algumas das marcações já haviam sido vandalizadas, arrancadas com facão. “Isso é gente que não quer que ninguém veja o que está acontecendo na propriedade dele. Ou seja, está fazendo coisa errada”, diz Fernando.

Suas palavras não tardaram a se mostrar verdadeiras. Nos deparamos com um trecho desmatado e, mais adiante, uma área queimada. Sair da floresta tão verde e pisar naquele descampado coberto de cinzas foi avassalador. Sob o chão queimado, a espinha de uma cobra que não escapou ao fogo parecia fazer gritar ainda mais o tamanho do crime ambiental que é deixar a Amazônia queimar.

Quando chegamos na Colocação Alto Alegre, depois de quase 23 quilômetros de caminhada, o sol já estava prestes a se pôr. Pernoitamos na casa do Seu Lacerda, um contador de histórias nato que adora relatar seus encontros com onças, antas e queixadas, e que anuncia com orgulho a velocidade com que é capaz de subir em árvore – “pode ser a árvore mais lisa que for, se precisar eu subo num pulo”. Durante sua vida na reserva já viveu todo tipo de aventura. Para nosso jantar, foi preparada a carne de um veado caçado na véspera que ainda iria alimentar ele, sua mulher e seus 5 filhos por uns 20 dias, conforme ele calculou.

O quarto dia

O começo do quarto dia refaz os últimos 4 quilômetros da véspera. No futuro, a ideia é mudar o traçado, abrindo uma trilha alternativa para evitar que o caminhante passe duas vezes pelo mesmo lugar. A floresta, entretanto, nunca é a mesma e na volta tivemos a surpresa de encontrar uma cobra vermelha e roxa que se assemelhava a uma salamanta (Epicrates cenchria). Quando paramos para observá-la, ela “correu” floresta adentro em uma velocidade impressionante.

Não tão rápidos quanto a cobra, seguimos nosso caminho com passo ligeiro já que estávamos ainda a cerca de 18 quilômetros do nosso destino. Já de forma quase rotineira, passamos por uma grande área de derrubada. O choque, porém, quando saíamos de dentro da floresta e dávamos de cara com o desmatamento ou com um pasto, continuava inevitável. Tanto o visual quanto o térmico. Sem a proteção da copa das árvores, o sol brilhava impiedoso, como se castigasse a terra por ter perdido sua cobertura florestal, sem saber que a culpa era do homem, e não do solo.

No começo da tarde, o céu aberto se transformou em nuvens carregadas e nos abrigamos para esperar a chuva e o vento diminuírem. O maior risco nesses casos é a força do vento derrubar galhos em quem estiver embaixo.

Nesse trecho, a sinalização ainda está inconsistente. Um problema não tão grande, uma vez que a presença de um guia será obrigatória. Nosso grupo, entretanto, caminha sem guia e, como ninguém conhece essa parte do percurso, vivemos a adrenalina de, em plena selva amazônica e com menos de duas horas de luz, não sabermos qual o caminho correto. Salvos pelo GPS, conseguimos alcançar a Colocação Zé Costa, local do nosso último pernoite. Exaustos depois de mais de 21 quilômetros de caminhada, estendemos nossas redes e sacos de dormir para recuperar nossas energias para o dia final de caminhada.

O último dia de trilha

Saímos bem cedo e fomos recompensados com a movimentação intensa dos animais, desde aves até micos. De repente, entretanto, ouvimos o barulho de bicho grande na mata. Paramos e silenciamos. A floresta nos devolveu o silêncio. Recomeçamos a caminhada, quietos, e menos de dez passos depois, ouvimos um pesado farfalhar de asas. Não é exagero quando eu digo que a primeira coisa que pensei diante do som foi um helicóptero. A poucos metros de nós, consegui enxergar o vulto de uma única – e enorme – asa. Apesar de ninguém ter conseguido uma identificação visual que permitisse ter certeza, diante de tamanha envergadura, força e peso daquela ave, nossos palpites foram unânimes: era uma harpia (Harpia harpyja) ou gavião-real.

Esse último trecho, com cerca de 12 quilômetros, ainda não foi sinalizado porque o trajeto, de acordo com Fernando, pode sofrer alterações. A trilha, entretanto, está bem marcada no chão e é amplamente utilizada pelos moradores. O caminho segue o rio Xapuri e quando a floresta abre uma janela por entre as folhas, apreciamos a beleza do vasto curso d’água rodeado de verde.

Quando saímos da trilha para o ramal 59, entramos na reta final e, em alguns minutos, enxergamos a linha de chegada: a ponte sobre o rio Xapuri. A caminhada de cinco dias estava concluída com êxito, após 90 quilômetros onde vimos e vivemos de tudo um pouco. A bagagem, para além da mochila cargueira que, com alívio tirei dos ombros, era imensa. Recheada desde vivências mais simples como descobrir o trabalho que dá extrair a castanha; provar frutos como o ingá, o açaí e o jatobá; tomar banho de balde no igarapé; ver e escutar diversos animais; acordar na rede com um coro de bugios. Até as experiências que vão demorar a serem processadas como entender a dimensão e velocidade do desmatamento insaciável.

Nesse sentido, o turismo é uma esperança para reforçar o quão valiosa a floresta é em pé. Além da geração de renda e de benefícios indiretos aos moradores da resex, como a melhoria dos ramais, Fernando acredita que os visitantes poderão ser aliados que irão cobrar do poder público que se cumpra o que está previsto no plano de utilização da reserva. “Hoje quem faz essa cobrança é apenas o ICMBio e somos uma voz gritando sozinha. Em coro, quem sabe não conseguimos ser ouvidos para não apenas barrar as ilegalidades, mas também reverter os estragos causados”. O analista sentencia ainda que essa pode ser uma forma de “resgatar o sentimento de pertencimento à Reserva Chico Mendes. Porque a ‘pecuarização’ não acaba apenas com a floresta, destrói também a identidade de um povo”.

A identidade que personagens como Seu Anacleto ainda exibem com orgulho. Como declama o poeta seringueiro “A natureza é grande, planeja, produz, retrata, pega, puxa, prende, solta, pega e solta, junta e cata, cresce, manda, forma, gira, gera forma, cria e mata. A castanheira e a seringueira, são as rainhas da mata”.

Trilha Chico MendesOnde: Reserva Extrativista Chico Mendes (AC)Distância: 90 quilômetros

Pernoite? Sim. Os pernoites são feitos nas casas das famílias que moram dentro da Resex.

Para realizar a travessia é necessário contratar um guia local.


*Duda Menegassi é jornalista de ((o))eco e a convite do ICMBio está acompanhando as dez travessias em unidades de conservação que a serem completadas em 2017, em comemoração aos dez anos do órgão ambiental.

Fonte: Ecologia dos Saberes.

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