Um ano de Brumadinho: por que os acidentes ocorrem?

Bombeiro trabalha na área atingida pela Vale em Brumadinho (MG) (Foto: Douglas Magno | AFP)

Por Brunno M. Dallossi, para Desacato.info.

Passado um ano do maior acidente de trabalho em número de mortes e uma das maiores catástrofes ambientais do país voltamos a nos perguntar o que ocasionou o acidente e o que poderia ser feito para prevenir não somente outra catástrofe semelhante, mas também para acabar com a epidemia de acidentes de trabalho em curso no país. Ocupamos atualmente as primeiras posições no ranking mundial de trabalhadores mortos em acidentes de trabalho. Além dos mortos, estamos gerando uma legião de mutilados e adoecidos pelo trabalho. As doenças e os acidentes juntos representaram um prejuízo de 26 bilhões de reais para a Previdência Social entre 2012 e 2017, segundo dados do Ministério Público do Trabalho, mas não houve uma palavra sequer sobre esta epidemia durante a tramitação da reforma da previdência no ano passado.

Mas por que os acidentes de trabalho ocorrem?

Ainda não foram concluídas todas as investigações e sabemos que um acidente de grandes proporções como este envolve, em geral, não somente um, mas vários fatores causais que, combinados, resultam nos acidentes. A investigação é, portanto, sempre complexa, mas isto não nos impede de problematizar a questão dos acidentes de trabalho de uma forma mais ampla e estrutural.

Auditores-fiscais do trabalho do extinto Ministério do Trabalho realizaram investigação minuciosa sobre o acidente de trabalho ocorrido em 2015, em Mariana-MG, que envolveu a mesma empresa, e apontaram diversos fatores causais: ausência de projeto técnico, ausência de monitoramento adequado da estabilidade da barragem, não atendimento às recomendações técnicas, entre outros. Com ênfase, ressaltaram que o método escolhido pela empresa para realizar a barragem (alteamento a montante) era o mais inseguro, não indicado para aquela situação, apesar de permitido legalmente. Este era também o método mais “econômico” e é nessa economia que poderemos encontrar o ponto de partida estrutural para se entender a epidemia de acidentes de trabalho.

Especialistas no tema, os franceses Michel Llory e René Montmayeul demonstram na obra “O Acidente e a Organização” que a gênese dos acidentes de trabalho não se situa no comportamento individual dos trabalhadores (como, por exemplo em uma distração, um esquecimento, um “ato inseguro”, etc.), mas sim na organização da produção e no desenho das condições de trabalho levadas a cabo pelos gestores das empresas. É ali onde se criam as condições latentes de acidentalidade que ficam incubadas no sistema à espera de algum gatilho para que a energia seja liberada ocasionando o acidente. É nesse momento de organização/desenho das condições de trabalho que a pressão por produção e a economia de materiais – de forma a maximizar lucros – atuam quase sempre de forma contrária à segurança dos trabalhadores. Apontam Llory e Montmayeul que as decisões destinadas ao aumento da lucratividade estiveram na gênese de alguns dos mais conhecidos acidentes de grandes proporções no mundo, como a catástrofe na refinaria BP de Texas City em 2005, a colisão de trens em Paddington (Londres) em 1999 e o acidente com a nave espacial Columbia da NASA em 2003. Aliás, o programa da NASA à época se chamava “faster, betterandcheaper” (mais rápido, melhor e mais barato), deixando clara a racionalidade predominante no desenvolvimento do projeto e do acidente: a da acumulação.

A racionalidade empresarial está – independentemente de qualquer julgamento moral – fundamentada na lucratividade. É o lucro o fator a orientar as decisões empresariais, especialmente em sociedades de capital aberto, onde a direção deve buscar atender aos interesses financeiros dos acionistas.  Os riscos de acidentes são incorporados nesta racionalidade como cálculo, tão somente. É como no jogo da bolsa de valores: o risco de rompimento de uma barragem é maior utilizando uma técnica menos segura de construção, mas o rendimento financeiro é maior por ela ser mais barata. A utilização de técnicas mais seguras e mais caras seria o equivalente àquilo que os operadores do mercado financeiros chamam de investimento “conservador”: reduz o lucro mas o retorno financeiro sem maiores contratempos fica assegurado. Essas metáforas do mercado financeiro servem como uma luva para explicar estruturalmente a gênese dos acidentes no capitalismo contemporâneo. O maior problema, entretanto, é que elas não somente servem como uma luva, mas também são a própria mão. A mão invisível e difusa do capital financeiro que se move pelo mundo conforme a mesma racionalidade da acumulação, determinando condições de trabalho e de acidentalidade.

A Vale é uma empresa de capital aberto controlada por grupos financeiros e bancos, nacionais e internacionais. Nesse tipo de controle se acirra a racionalidade da acumulação: os acionistas querem o retorno financeiro do capital investido e é muito provável que os conselheiros sequer sabiam que a empresa tinha uma mina na cidade de Brumadinho no interior do Brasil. Os gestores e técnicos locais, denunciados agora pelo Ministério Público, provavelmente só conseguiram estes cargos por terem conseguido se integrar muito bem como elos na corrente que transmite a pressão por lucratividade aos degraus mais baixos do sistema, extraindo o máximo de trabalho dos empregados e de retorno financeiro com menos gasto possível. Pode ser que fossem demitidos se adotassem outra postura. Milhares de outros profissionais desempregados, formados em cursos superiores onde se ensina a mesma racionalidade, certamente estariam dispostos a assumir os cargos sem maiores problemas.

A abstração no controle das atividades produtivas também se aprofunda nas empresas de capital aberto (e no capitalismo contemporâneo de forma geral). Quando auditores-fiscais do trabalho realizam auditorias nas empresas, é comum que profissionais dos setores de saúde e segurança do trabalho (de forma idêntica ao que se passa com os profissionais que lidam com o meio ambiente) lhes exponham que tentaram melhorar algumas condições de trabalho de modo a afastar riscos de acidentes, mas que estas mudanças foram travadas pelos setores financeiros das empresas. Imaginem agora que os setores financeiros, detentores da decisão final das empresas, não mais se situam na porta ao lado, mas na Austrália, como no caso da Vale. E que as decisões que devem tomar estão representadas tão somente por cálculos financeiros apartados dascondições concretas de trabalho que ensejarão (e das vidas que afetarão). Eis aí a atual e mais perversa fase do capitalismo: o capitalismo financeiro neoliberal. As decisões que estão determinando o futuro do planeta não estão baseadas na saúde, segurança, sonhos e desejos das pessoas, mas em cálculos de retorno financeiro que beneficia menos de 0,1% da população planetária.

Posto o diagnóstico, é preciso apontar para a medicina. Os relatórios dos auditores-fiscais e peritos dos órgãos oficiais vão relacionar uma série de fatores causais na gênese deste e de tantos outros acidentes de trabalho do Brasil. Se checarmos um por um, veremos em quase todos eles o mesmo que viu Llory e Montmayeul nos mais famosos acidentes do mundo: a pressão por produção que imprime velocidade incompatível com a saúde e segurança dos trabalhadores e a economia de recursos com saúde e segurança no trabalho, ambas destinadas a incrementar a lucratividade, que é a racionalidade fundante da estrutura econômica mundial.  O fim da epidemia de acidentes passa, portanto, necessariamente pela criação de mecanismos de controle decisório dos trabalhadores sobre suas próprias condições de trabalho, impedindo que empresários possam sujeitar seus corpos a situações inseguras, degradantes ou insalubres. Passa por reverter o atual processo de desmantelamento e esvaziamento da democracia e das instituições democráticas que regulam a economia e o trabalho, reforçando e não revogando as normas sobre saúde e segurança no trabalho e colocando estas instituições sob o controle direto das pessoas impactadas por suas políticas. Passa pelo reforço do princípio da solidariedade tão atacado pela reforma trabalhista e pela reforma da previdência. Passa pela resistência contra as novas reformas que estão por vir e aprofundam a racionalidade de acumulação em todos os âmbitos da vida. Passa por direcionar os passos para um outro tipo de economia, baseada em recursos e não na especulação financeira; controlada pelas pessoas e não por agiotas internacionais; e voltada para o comum e o bem-viver e não para a acumulação de riquezas e a destruição do planeta. O Acidente de Brumadinho é, acima de tudo, o sintoma de um mundo profundamente doente.

Brunno M. Dallossi

Auditor-Fiscal do Trabalho

Mestre em Estudos Avançados em Trabalho e Emprego pela Universidade Complutense de Madri.

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