Tudo que não te contaram sobre a liberação de 131 novos agrotóxicos

Pixabay

Por Vir Moraes Ramos.

O governo Jair Bolsonaro (PSL) já em seu primeiro mês tomou uma medida favorável ao uso de agrotóxicos no Brasil. No dia 10 de janeiro o Ministério da Agricultura autorizou o pedido de registro de 28 agrotóxicos e princípios ativos. No dia 18 de janeiro, foram mais 131 pedidos publicados. O tema é importante e complexo. Nem todo mundo conseguiu entender ainda o que está acontecendo.

Para ajudar, o Plural perguntou aos leitores quais suas principais dúvidas sobre o tema e foi buscar as respostas em dados científicos e na opinião de diferentes profissionais. A ideia é compreender a mudança e atender a uma demanda comum de muitos leitores: como consumir menos agrotóxicos?

Vamos às dúvidas.

Esses 131 agrotóxicos já podem ser comercializados?
Não. Na prática, o que o governo fez foi “desengavetar” os pedidos que estavam parados e dar início ao processo de aprovação. Os registros agora vão passar pela avaliação de três órgãos que estudarão se eles cumprem os requisitos regulatórios para comercialização: Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e Ministério da Agricultura, Pecuária e Meio Ambiente (Mapa).

É usual haver pedidos desse tamanho?
Ao que tudo indica, não. Chama a atenção o fato de que a maior parte destas solicitações foi feita entre outubro e dezembro de 2018, quando o atual cenário político brasileiro já se delineava. Para a professora de nutrição da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e vice-presidente da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA) Islândia Bezerra, a aprovação é fruto de uma articulação da bancada ruralista. “Isso acontecer em três meses é uma estratégia quase de guerra comercial para atender única e exclusivamente os interesses do agronegócio”, fala. Faz sentido. A atual ministra da Agricultura, Tereza Cristina, é conhecida defensora do uso de agrotóxicos. Quando era deputada federal, foi a presidente do Projeto de Lei 6299/02, conhecido como “PL do Veneno”. Sua defesa dos agrotóxicos lhe rendeu o apelido de “musa do veneno”.

Quais impactos isso pode trazer para a sociedade?
Para instituições de meio ambiente, saúde e trabalho, o Brasil está caminhando para uma situação catastrófica. Campanhas assinadas por órgãos como Organização da Nações Unidas, Ministério Público Federal, Anvisa e Ibama apontam que o uso prolongado desses produtos químicos mata a vida do solo e provoca uma “espiral química”. Isto é: quanto mais agrotóxico se usa, mais é necessário usar. Além disso, apontam que o uso de pesticidas não resolveu o problema da fome no país e afirmam que o atual modelo de produção torna a agricultura brasileira dependente de empresas gigantes transnacionais que dominam a produção e venda de agrotóxicos.

Segundo o engenheiro agrônomo e diretor técnico do Instituto Paranaense de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater) Nelson Harger, as normas da Anvisa são rígidas e o produto precisa vencer um processo lento, com diversas etapas de aprovação, antes de poder ser comercializado. “Normalmente, se um agrotóxico é registrado é porque existe uma necessidade, uma demanda de mercado”, fala. Ele avalia que o maior problema não é o pedido do registro em si, e sim o uso que se faz desses produtos “de forma generalizada e muitas vezes sem critério, o que causa danos ambientais”. Para ele, só se deve fazer uso de agrotóxicos quando eles forem estritamente necessários e aliado a outras estratégias de controle de pragas.

A bancada ruralista afirma que alguns dos princípios ativos registrados já fazem parte de composição de outros agrotóxicos, então não existiria motivo para não aprová-los ou nenhum dano maior para a sociedade. Para a nutricionista Islândia Bezerra, esse é um argumento “bom para quem comercializa”, mas não necessariamente bom para a sociedade. Ela lembra que, diferente de outros países, que a cada 3 ou 5 anos submetem os agrotóxicos já aprovados a novos testes de impactos ambientais e na saúde, no Brasil cada produto que é liberado para comercialização nunca mais volta a ser revisado ou revogado. “É uma liberação ad eternum, uma conquista de um mercado muito poderoso”.

Quanto agrotóxico consumimos?
Segundo a Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), em média o equivalente a quase 8 litros por pessoa por ano. Esse índice faz do Brasil o maior consumidor de agrotóxicos do mundo, posição que nosso país ocupa há mais de dez anos. Além disso, utilizamos muitos agrotóxicos que estão banidos em outros países, e em quantidades maiores. A soja é a principal consumidora de agrotóxicos e a cana-de-açúcar ocupa o segundo lugar. O IBGE aponta ainda que o uso de pesticidas aumentou 155% em dez anos no país sendo que 64% dos venenos aplicados em 2012 foram considerados perigosos e 27% muito perigosos.

Já o Paraná oscila entre o segundo e o terceiro maior consumidor de agrotóxicos no Brasil, com uma média equivalente a 7,5 litros por pessoa por ano, segundo a Abrasco.

Qual o impacto dos agrotóxicos na saúde humana? Existe um limite seguro para consumir agrotóxicos?

Em primeiro lugar, é preciso esclarecer que a medicina aponta dois tipos de intoxicação por agrotóxicos: a aguda e a crônica.

A intoxicação aguda é quando um ser humano é exposto a altos níveis de um produto de uma só vez. Há inúmeros casos no Brasil de trabalhadores rurais que sofreram acidentes, acarretando doenças graves e mortes, e até mesmo dados de suicídios e homicídios utilizando agrotóxicos. Em 2013, crianças e funcionários de uma escola do município de Rio Verde (GO) foram atingidas, literalmente, por uma chuva de veneno despejada por um avião agrícola que pulverizava a região. O resultado foram mais de 90 pessoas hospitalizadas com dores de cabeça, náuseas, vômitos, falta de ar, desmaios, formigamento nos membros e outros sintomas.

Imagens extraídas do livro Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia – Larissa Mies Bombardi, Laboratório de Geografia Agrária da USP.

Mas, além da intoxicação aguda, há outro tipo: a chamada intoxicação crônica, que ocorre pelo contato com pequenas quantidades de agrotóxicos, diversas vezes ao longo da vida, com efeito cumulativo. Considerando os dados sobre agrotóxicos em alimentos no Brasil, podemos supor que praticamente todos nós estamos expostos a essa contaminação.

O Dossiê Abrasco – um gigantesco apanhado de pesquisas e estudos sobre o tema – aponta, entre os efeitos comprovados dos agrotóxicos na saúde, vários tipos de câncer. Além disso, testes realizados em animais e células humanas revelaram correlações com problemas bem assustadores: alterações cromossomiais, problemas hormonais, diminuição da fertilidade, efeitos deletérios sobre os órgãos reprodutores, má-formação de fetos ou perdas fetais, doença de Parkinson, produção de tumores, neurotoxicidade, distúrbios neurocomportamentais… A lista é longa. Estudos também têm comprovado a relação entre agrotóxicos e transgênicos com as chamadas novas doenças alimentares: intolerâncias, alergias e doença celíaca.

Além disso, um mesmo alimento pode conter diferentes resíduos, formando um “coquetel” cujos efeitos a ciência ainda não tem ideia. Um teste realizado em 2017 pelo Greenpeace com diversos alimentos constatou que 36% das amostras continham algum tipo de irregularidade, como agrotóxicos acima do limite máximo permitido por lei, agrotóxicos não permitidos para aquele alimento específico e até um agrotóxico proibido no Brasil.

Para Islândia Bezerra, considerando também o fato de que o organismo não consegue eliminar muitos desses resíduos, não há base cientifica para afirmar com certeza que exista um limite seguro para o consumo de agrotóxicos. Ela lembra ainda que o glifosato, agrotóxico mais utilizado no Brasil, é um dos componentes do “agente laranja”, usado como arma química durante a Guerra do Vietnã em ataques que até hoje estão associados a defeitos congênitos na população. O país exigiu em 2018 que a Monsanto – produtora do veneno – pague indenizações às vítimas do produto tóxico.

Quais os impactos do uso de agrotóxicos na agricultura familiar e no trabalhador do campo?
Segundo registros do Instituto Nacional de Câncer (INCA), regiões com alto uso de agrotóxicos apresentam incidência de câncer bem acima da média nacional e mundial. De acordo com um estudo conduzido pela pesquisadora e professora da USP, Larissa Bombardi, entre 2007 e 2014, o Paraná registrou mais de 3,7 mil casos de intoxicação por agrotóxicos. No Brasil, foram mais de 25 mil pessoas intoxicadas nesse período – entre elas, 2.181 crianças.

Agricultores e suas famílias estão entre a população mais exposta. Por exemplo, uma pesquisa de 2017 realizada pela UFPR nos municípios de Francisco Beltrão e Cascavel apontou uma associação entre malformações congênitas e a utilização de agrotóxicos em monoculturas. Já no Rio Grande do Sul, uma “epidemia” de câncer entre agricultores gaúchos parece estar diretamente ligada ao uso de pesticidas na região – o estado está entre os que mais usam agrotóxicos no país.

Também vale ressaltar que agrotóxicos e fertilizantes se infiltram no solo, atingem lençóis freáticos e são carregados pelo vento, o que faz com que moradores e lavouras do entorno das áreas de aplicação estejam expostos, bem como a fauna e flora locais. O seu uso, portanto, não se limita às áreas onde são aplicados.

Além disso, dados apontam para uma imensa subnotificação nos casos de contaminação. Uma pesquisa da Fiocruz estima que, para cada caso registrado de contaminação nos hospitais públicos, 50 não foram notificados. O Dossiê Abrasco atribui essa subnotificação a fatores diversos, “que vão desde a falta de acesso aos serviços de saúde pela população do campo, as dificuldades enfrentadas pelos médicos em identificar esse tipo de intoxicação e até o medo dos profissionais da saúde de assumir tal notificação, haja vista o poder dos grandes fazendeiros do agronegócio nesses territórios”.

O engenheiro agrônomo Nelson Harger explica que é preciso respeitar períodos de carência, doses e registros dos agrotóxicos, e lembra que todo agricultor deve seguir as normas de segurança existentes e se proteger conforme a legislação. Em nota oficial distribuída para a imprensa, o Ministério da Agricultura afirmou que os produtos não trazem riscos se usados corretamente. “Desde que utilizado de acordo com as recomendações da bula, dentro das boas práticas agrícolas e com o equipamento de proteção individual (EPI), a utilização é completamente segura”.

Mas, para Islândia Bezerra, essa é uma falácia que delega para o agricultor a culpa pelas contaminações e tenta retirar das empresas a responsabilização pela composição tóxica e pelo desenvolvimento desses produtos.

Porque orgânicos são tão caros?
Por um lado, o setor dos agrotóxicos goza de políticas públicas de incentivo – por exemplo isenções fiscais e tributárias. Na produção e comercialização, as empresas estão isentas de ICMS, IPI, Cofins e PIS/Pasep. Uma imensa vantagem comercial concedida por legislações como a Lei Kandir. Por outro lado, o “orgânico” passou a ser um nicho de mercado e, a certificação, um item que valoriza o produto.

Mas existem alternativas, aponta Islândia Bezerra. A agroecologia é um modelo de produção que vem crescendo mundo afora. Essa técnica une a produção de alimentos sem agrotóxicos com a preservação do meio ambiente e a distribuição de renda justa para camponeses. No Brasil, o modelo vem sendo adotado por pequenos agricultores e assentamentos de reforma agrária. “Temos que fortalecer a comercialização direta, levar alimentos saudáveis a todo lugar, estimular espaços de convivência entre quem produz e quem consome e mostrar para a população que ela tem esse direito. Por que investir em sacolões que vendem o refugo dos produtos, quando temos assentamentos modelo em produção sem veneno e que não têm como escoar?”.

Hoje, a agricultura familiar é responsável por cerca de 70% do alimento que chega à mesa dos brasileiros. O movimento agroecológico afirma que, com políticas públicas, incentivo e formação, todos esses agricultores poderiam produzir sem venenos ou fertilizantes, o que tornaria o país menos dependente dos grandes latifúndios.

Existe algum procedimento para minimizar a quantidade de agrotóxicos nos alimentos, como lavar ou deixar de molho?
Infelizmente, não. Não há nenhum procedimento que comprovadamente retire os resíduos de agrotóxicos dos alimentos. A lavagem com bicarbonato de sódio, por exemplo, minimiza a quantidade de resíduos externos, mas o agrotóxico tem uma função sistêmica, ou seja, mesmo que você o retire da casca das frutas, seu efeito é a nível da célula, que é onde os resíduos se armazenam. Por isso, é impossível retirá-lo uma vez que o alimento já foi contaminado. A única saída mesmo é investir em estratégias de produção sem agrotóxicos e, mais que isso, no acesso democrático a esses alimentos.

E o que podemos fazer para evitar agrotóxicos?
Agrotóxicos não estão apenas na comida – e quando usamos a palavra “comida” estamos nos referindo a tudo, desde carnes, leite, ovos até bebidas, pães, macarrão, etc. Agrotóxicos estão na água, no solo, nas roupas, nos produtos de limpeza e – segundo pesquisadores – até mesmo no leite materno. Partindo desse raciocínio, como podemos ter menos agrotóxicos no nosso dia a dia?

A boa notícia é que quase tudo que consumimos pode ser comprado sem agrotóxicos – e não necessariamente a preços assustadores. Vale procurar feiras de alimentos orgânicos e agroecológicos em sua cidade, onde os valores praticados costumam ser mais viáveis, já que são vendidos diretamente pelos camponeses que produzem. Um aplicativo desenvolvido pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC) disponível no site https://feirasorganicas.org.br permite consultar feiras em todo o Brasil. A reportagem do Plural encontrou hortaliças sem agrotóxicos sendo vendidas a aproximadamente R$ 2,50 menos do que hortaliças convencionais em supermercados.

Para evitar agrotóxicos, é importante evitar transgênicos e alimentos ultraprocessados, como biscoitos, salgadinhos, cereais matinais, refrigerantes, lasanhas, entre outros que têm como ingrediente o trigo, o milho e a soja. Esses alimentos contêm alta quantidade de agrotóxicos.

Lembre-se: na natureza, uma fruta, legume ou verdura não nasce o ano inteiro. Se o produto estiver fora de época, provavelmente maior quantidade de agrotóxicos e fertilizantes químicos foi utilizada para viabilizar seu crescimento. Dê preferência a produtos da época e locais, buscando conhecer de onde vem o alimento, quem o produz e como.

Cozinhe. Aquela velha máxima “descasque mais, desembale menos” é um mantra para quem deseja menos agrotóxicos na vida. Segundo a nutricionista Islândia Bezerra, o mercado foi muito bem-sucedido em difundir os alimentos congelados e processados como aliados da nossa rotina. Mas, com pequenas mudanças de hábito, é possível incluir uma alimentação mais saudável e variada no dia a dia e perceber que “a verdadeira fast food é aquela que a terra nos dá pronta”.

Também existe um movimento em torno das chamadas PANCs – Plantas Alimentícias Não Convencionais, espécies comestíveis de plantas, raízes, flores, frutos e tubérculos que não atingiram uma produção de larga escala e não têm valor comercial. O movimento resgata práticas tradicionais de consumo e valoriza essa grande variedade de alimentos baratos e nutritivos, que muitas vezes são descartados como “matos”. Alguns exemplos de PANCs: azedinha, taioba, cará, caruru, serralha, dente de leão, bertalha, capuchinha, hibisco, ora-pró-nobis, almeirão, mangarito. Mas pesquise bem. Nunca é uma boa ideia sair comendo plantas que você não conhece.

REFERÊNCIAS E LINKS ÚTEIS:

Dossiê Abrasco: https://www.abrasco.org.br/site/publicacoes/24127/24127/

Portal de dados abertos sobre agrotóxicos: http://dados.contraosagrotoxicos.org/

Geografia do uso de agrotóxicos no Brasil e conexões com a UE: https://www.larissabombardi.blog.br/atlas2017

Greenpeace – Segura esse abacaxi: https://www.greenpeace.org.br/hubfs/Greenpeace_SeguraEsseAbacaxi.pdf

Mapa de feiras orgânicas – aplicativo do Idec: https://feirasorganicas.org.br

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