Truculências de um editor

Por Fernando Evangelista.

Dizem por aí que editor é o sujeito que separa o joio do trigo – e publica o joio. Neste aspecto, sou um jornalista de sorte: trabalhei sempre, ou quase sempre, com editores competentes. Mas carrego um fardo de respeito, um fardão: convivo com um editor terrível, um sádico – meu editor imaginário.

Longe do computador, ele apenas cochicha, palpita discretamente, deixa até escapar fiozinhos de educação e de gentileza. Porém, a coisa desanda quando me aproximo do teclado, aí ele se agita, fica indócil, torna-se histérico e cruel.

Meu editor faz onda de sofisticado, embora pareça mesmo um cowboy aposentado, um magarefe fora da lei. Anda com um chapéu branco, uma bengala preta e um indefectível charuto, de cheiro insuportável. E berra.

Seu primeiro grande surto aconteceu durante uma reportagem sobre uma reintegração de posse, na qual centenas de famílias muito pobres foram expulsas de onde viviam, algumas há várias décadas. Ao ler o primeiro rascunho da minha matéria, em pé na minha frente, ele explodiu:

– Isto aqui está uma porcaria – com a bengala recostada na mesa, apertou com raiva o texto impresso entre mãos, transformando-o numa bolinha de papel. – Vou repetir bem lentamente: por-ca-ri-a. Você e seu texto não têm fio nem meada.

Tinha fio, tinha meada, tinha também o nome dos policiais que espancaram, com a conivência do comandante, um senhor de 70 e poucos anos. A polícia baixou o sarrafo em que ousou resistir e também nos que não queriam briga. Sobrou para todo mundo, inclusive para aquele idoso. O local é propriedade de um banco estrangeiro. Estava tudo isso na matéria que acabara de escrever.

Mas meu editor não gostou e desatou um sermão sem fim sobre o jornalismo e sobre a minha falta de respeito pela hierarquia. Há nele uma nostalgia de palanque, uma carência de plateia – deveria ter sido político, talvez pastor, quem sabe apresentador de tevê. Com sincera curiosidade, pergunto o que está errado, o que falta. Minhas palavras são entendidas como insulto:

– Filho, filhinho, filhote, falta tudo no seu texto. Falta distanciamento, falta respeito pelas instituições, falta um final feliz. Os leitores querem e precisam acreditar que ainda há esperança, você não pode simplesmente escrever desse jeito e estragar o final de semana das pessoas, entendeu?

– Entendi.

– Então corte a primeira parte, o meio e o fim. Assim, como está, parece que a polícia é completamente despreparada e violenta, que o governo não tem, nem nunca teve, uma política pública de moradia e, se não bastasse, fica parecendo que a população pobre é vítima da polícia, do governo e da Justiça.

– Exatamente…

– Mas não é assim – ele gritou. – Esse povo, pode apostar, é vitima de uma coisa só: de agitadores profissionais. Foram esses agitadores que estimularam o protesto. O resto é baderneiro mesmo. E lugar de baderneiro é na cadeia.

Sem jeito, tentei argumentar que eticamente…

– O que, ética? Queridinho, ética é só uma disciplina da Faculdade. Não serve pra mais nada. Hoje em dia, a ética suprema é a ética do anunciante e do marqueteiro. Você é um caso perdido, meu rapaz. Você pensa demais. Você é pago para escrever e não para pensar.

Lembrei-me de um cartaz que vi, há muitos anos, exposto no Sindicato dos Jornalistas de Buenos Aires: “a ditadura me proibia de escrever o que pensava, o pensamento único impede-me de pensar o que escrevo”.

– Você leu o último número da concorrência? ele perguntou.

Eu havia lido e havia achado péssimo, quase um release da Secretaria de Segurança Pública, totalmente complacente com as autoridades, um flerte despudorado com o poder. Ele tinha outra opinião:

– Nosso concorrente fez um trabalho exemplar – disse com tanto rancor que eu pensei que fosse me bater. – Conseguiu uma exclusiva com o governador, outra com o comandante da polícia e, para completar, com o ministro da Justiça. Todos disseram a mesmíssima coisa: não houve nenhum tipo de abuso policial. São três fontes sustentando a mesma versão, portanto é verdadeira.

– Mas eles têm interesses em comum. Obviamente, eles combinaram.

– Diabos, por que você é sempre do contra? Por que é tão ranzinza, tão encrenqueiro?

– É porque eu estava lá – respondo. Eu vi a brutalidade policial e estou escrevendo aquilo que testemunhei, tentando encontrar a melhor versão possível da verdade, como ensinou o Carl Bernstein.

– Como ensinou quem? Você é muito acadêmico. Apenas escreva, mas não se deixe trair pelas vísceras. Meu rapaz – ele disse, mexendo na aba do chapéu – assim como os políticos em campanha e as mulheres tímidas, as vísceras enganam. Três policiais espancando um idoso não significa, necessariamente, que a polícia espancou um idoso. Seja maduro e esqueça o que você viu. Além disso, pare com essa mania de contextualizar tudo.

Deu uma baforada no charuto e sentenciou: – jornalismo de verdade se faz sem contexto.

Iria argumentar que eu já tinha entrevistado todas as autoridades, estava tudo ali escrito, só que o discurso oficial aparecia contraposto ao que de fato aconteceu. Mal tive tempo de terminar a primeira frase, ele foi mais rápido:

– Você ainda ousa discordar? – bateu furiosamente com a bengala no chão. – Meu caro, jornalismo é feito com base nas versões oficiais e os fatos que se danem. É assim que funciona. Olha, serei sincero: desse jeito você nunca chegará a editor. Nunca.

O mais espantoso de tudo isso – preciso confessar – é o fato de eu gostar do meu editor. Ele e eu nos acostumamos com esta convivência conflituosa que, a cada desavença, demarca nossas enormes divergências. A discussão reforça algumas convicções mútuas que, se não forem provocadas de vez em quando, correm o risco de adormecer.

E se um dia eu me esquecer dessas convicções, se um dia cair na armadilha de ignorá-las, se for vencido pelo meu editor, eu jogo a toalha e vou procurar outra coisa para fazer. Enquanto isso, por teimosia, tento separar o joio do trigo, para que o trigo seja publicado.

Nem tudo é conflito, porém. Além de um editor imaginário, tenho também – modéstia à parte – um leitor imaginário, um senhor educado, inteligente e culto. Gosto de imaginá-lo em sua cadeira de balanço, na varanda de uma antiga casa de campo, lendo a minha reportagem.

Um velho senhor, um homem maduro, que viveu muitas mortes e celebrou muita vida, este senhor vai ler o texto, ficará indignado com as injustiças relatadas e, quase cochichando, vai dizer: “Isso não está certo, alguma coisa precisa ser feita”.

E assim, ainda impactado com a história, o velho vai se levantar, vai catar uma amora, ficará observando o ipê amarelo, ali na sua frente, colorido de primavera, e seguirá sua vida – esta sequência de escolhas sem lógica e sem garantia, mas com prazo de validade, entre o joio e o trigo.

*Fernando Evangelista é jornalista, diretor da Doc Dois Filmes. Mantém a coluna Revoltas Cotidianas, publicada toda terça-feira.

Desenho do artista venezuelano Iván Darío Hernández. Outros trabalhos do autor em http://my.opera.com/ivandarioh/albums/

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