Transparência e probidade de um plano diretor participativo

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Foto: Cristiano Anunciação/G1

Segunda, 20 de janeiro de 2014

“(O poder público) age como se a aprovação do plano fosse a grande solução para Florianópolis, e a sua não aprovação resultasse no caos. Isso não é verdade. As cidades sobrevivem mesmo sem um plano diretor”, defende o arquiteto e urbanista.

Após um longo processo de discussões, interrompido, retomado e reiniciado já há quase nove anos, o Plano Diretor do município de Florianópolis foi finalmente votado e aprovado em 06 de janeiro de 2014. Sancionado pelo prefeito Cesar Souza Júnior na última sexta-feira, a nova lei entra em vigor a partir de hoje.

Protocolado em setembro do ano passado, a tramitação do Plano pela Câmara foi marcada por grande oposição, que incluiu protestos de vereadores, populares e a intervenção do Ministério Público. As queixas giravam em torno da exclusão da participação social nas etapas derradeiras do processo, da desinformação dos próprios políticos sobre o que era votado e do alto número de alterações e emendas (305 no total).

O fato leva a uma discussão a nível nacional sobre a importância de um Plano Diretor para versar sobre a utilização controlada dos espaços urbanos tendo em vista o aumento cada vez maior das populações nas cidades. Na opinião do arquiteto e urbanista Edson Cattoni, no caso de Florianópolis, “se impôs a concepção distorcida de que é prerrogativa dos prefeitos conceder, ao seu critério, o espaço e o tempo para ocorrer a participação e o controle social na elaboração do plano diretor”. Na verdade, a garantia da participação popular e o direito à informação transparente dos processos são obrigação do poder público.

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Cattoni, que acompanhou de perto desde o início as discussões sobre o Plano Diretor como representante do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB-SC), relata que durante todos os anos de elaboração não houve um acúmulo de conhecimento, mas sim procrastinação. O próprio Núcleo Gestor foi, por duas vezes, afastado das discussões tanto na gestão de Dário Berger (anterior) quanto na do prefeito Cesar Souza Junior (atual). Uma manobra a fim de “tirar os fiscais da partida para poder ‘jogar’ sem árbitros”.

Para o arquiteto, o sentimento de urgência em resolver os problemas na cidade foi usado para atropelar a pactuação de um plano diretor ainda incompleto para Florianópolis. Mais do que isso, tal urgência estaria mais ligada ao cumprimento de promessas eleitoreiras do que uma verdadeira necessidade de garantir o futuro do município. “É como se a aprovação do plano fosse a grande solução para Florianópolis, e a sua não aprovação resultasse no caos. Isso não é verdade. As cidades sobrevivem mesmo sem um plano diretor”, conclui.

Edson Luis Cattoni é graduado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Santa Catarina, atua como arquiteto e urbanista da GeoCidades – Consultoria e Planejamento Territorial e como pesquisador independente no campo do planejamento urbano. Foi presidente do IAB-SC na gestão 2010-2011 e possui experiência na área de planejamento urbano e territorial com enfoque participativo para elaboração de plano diretor municipal.

Confira a entrevista.

Foto: Folha de Coqueiros

IHU On-Line – O que é um plano diretor?

Edson Cattoni – De forma geral, um plano diretor pode ser entendido como um conjunto de regras para orientar as ações de todos que vivem, utilizam e constroem a cidade de acordo com uma visão de desenvolvimento pactuada com sua sociedade. Entre as várias definições existentes, gostaria de destacar uma das mais ignoradas, apesar de estar estampada na Constituição Federal: “O plano diretor é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana”.

É importante lembrá-la devido à indicação das questões e conteúdos que devem ser estabelecidos em um plano diretor para este ser admitido como tal. Assim, sempre que me perguntam se um plano diretor é bom ou não, eu me pergunto primeiro se estou, realmente, diante de um plano diretor. Ele organiza os elementos de uma política municipal de desenvolvimento urbano, buscando efetivá-la? Como ele organiza e ordena a expansão urbana presente e futura no município? Está realmente reconhecendo e buscando evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente (natural e construído)? Indica tanto as áreas seguras, com aptidão para urbanização, quanto as inseguras, que devem ser evitadas pela urbanização devido a condicionantes específicos? Portanto, o aumento ou a diminuição da segurança jurídica e de fato para as ocupações presentes e futuras no território dependerá do grau de rigor e consistência do plano diretor.

IHU On-Line – Qual é a efetividade e a importância deste conjunto de normas para o desenvolvimento de uma cidade?

Edson Cattoni – Sua importância está na possibilidade de garantir uma melhoria do bem-estar de seus habitantes (presentes e futuros) através de um adequado planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo. Para isso, não basta que o plano apresente regras e parâmetros para construção, tornando-se necessário que tais regras sejam consistentes com a efetivação dos objetivos coletivamente pactuados.

A efetividade de um plano diretor pode se correlacionar com o grau de comprometimento da sociedade em acompanhar e controlar sua execução. Tal credibilidade e comprometimento com um plano não acontecem gratuitamente, são conquistados desde os primeiros passos de sua elaboração, com transparência, respeito e com respostas aos cidadãos interessados.

Para se entender a efetividade de um plano diretor, considere que todas as regras do plano foram cumpridas. Então, perguntaria: que tipo de cidade foi construída? Quais caminhos foram percorridos para alcançar os objetivos pactuados? Por quem realmente foram apropriadas as melhorias alcançadas nesta cidade? Quem ainda estaria excluído do direito à cidade?

IHU On-Line – Qual é a maior dificuldade de implantar um plano diretor efetivamente participativo?

Edson Cattoni – Justamente a intenção de ser um plano participativo é de diminuir as dificuldades na implantação do plano. Logo, as dificuldades estão em elaborar um plano autenticamente participativo, sem manipulações e ingerências que podem comprometer a credibilidade do plano e com apoio e comprometimento necessário da sociedade. Uma participação efetiva é no mínimo uma participação informada. Sendo assim, é necessário apresentar informações, mapear e tornar o mais claro possível os assuntos a serem enfrentados e decididos. Isso revela uma contradição crucial com os interesses dos prefeitos e vereadores, os quais se elegeram com promessas e com a suposição de ter as“questões certas” e as “respostas certas” para resolver as necessidades e aspirações da população.

Então, o foco dos eleitos passa a ser o cumprimento de promessas, e não investir o tempo e os recursos “de sua gestão” para restabelecer prioridades de forma participativa com as comunidades ou seguir algo planejado anteriormente em outra gestão. Quebrar esse tipo de círculo vicioso é um dos maiores desafios, é uma mudança cultural que a sociedade deverá desenvolver para conquistar efetivos processos de participação informada e evoluir no exercício da democracia direta que está previsto em nossa Constituição Federal.

IHU On-Line – E o processo em Florianópolis? Durante quanto tempo o plano diretor do município vem sendo elaborado até chegar a essa versão que foi protocolada em setembro?

Edson Cattoni – Oficialmente conta-se o início em 2006, mas, como todo plano diretor, tem alguns conteúdos mínimos e a discussão de um destes iniciou realmente em 2005, por deliberação na 2ª Conferência das Cidades. Prefiro respeitar este marco, pois resultou em uma minuta de proposta de projeto de lei para constituição do Conselho da Cidade. Inacreditavelmente, este conteúdo elaborado de forma participativa sempre foi ignorado. Além do mais, a suposta duração do processo é apenas aparente, pois de fato o processo sofreu várias interrupções causadas pelos próprios gestores públicos. O imbróglio foi tanto que tornou o plano diretor de Florianópolis o mote da última campanha eleitoral e assunto recorrente no discurso do atual prefeito, como nesta sua fala: “(…) quero agradecer aqueles que nos últimos nove anos têm se dedicado ao plano diretor da cidade, que foram literalmente enrolados pela administração anterior, que não deu consequência ao plano, que fez o processo para não funcionar…” (Prefeito Cesar Souza Jr. na abertura do “I SEMINÁRIO DA CIDADE DE FLORIANÓPOLIS”, na UFSC em 25.03.2013).

Assim, tomou-se carona no sentimento de urgência para resolver os graves problemas que se acumulam na cidade, justificando a aprovação acelerada de uma proposta chamada “o plano diretor possível”, a qual, no meu ponto de vista, está repleta de impropriedades técnicas.

IHU On-Line – A criação de um plano diretor para Florianópolis vem sendo ensaiada há vários anos desde então e foi finalmente votada neste final de 2013 sob muita polêmica. O que levou a essa demora para a aprovação do texto final?

Edson Cattoni – O texto final foi aprovado em 06-01-2014. A suposta demora ocorreu devido à incapacidade de lidar com a transparência exigível desde a contratação de serviços e informações produzidas até a definição dos mecanismos para a tomada de decisões com a sociedade. Todas as gestões enfrentaram pressões por um grau de participação e transparência mais efetivo; entretanto, foram capazes de sustentá-la apenas no discurso. Assim, no momento em que os novos projetos e intervenções urbanas da atual gestão puderam ser apresentados na mídia, esta passou a “esquecer” seu discurso sobre a “enrolação” sofrida pela sociedade. Logo, não havia mais lacunas a serem retrabalhadas no processo, nem mesmo um processo a ser resgatado ou reconduzido, pois, como foi dito, “a cidade não pode mais esperar”.

Mesmo de forma contraditória, o discurso oficial passou a contabilizar todo o tempo passado como um período de discussão e amadurecimento legítimo e válido. Para quem vivenciou ou tem documentado este processo é difícil aceitar a alegação de que “houve uma discussão exaustiva nestes sete anos”, tampouco que “a cidade não pode mais esperar”. É como se a aprovação do plano fosse a grande solução para Florianópolis e a sua não aprovação resultasse no caos. Isso não é verdade. As cidades sobrevivem mesmo sem um plano diretor. Tais afirmações apenas contribuem para esconder a burla ao processo participativo e a fragilidade técnica de uma proposta reajustada em não mais que três meses buscando atender uma data de aprovação preestabelecida, pondo em jogo algo muito mais importante que uma promessa de campanha, o desenvolvimento equilibrado de uma cidade.

IHU On-Line – Você acredita que o plano diretor de Florianópolis contou efetivamente com a participação da população e dos setores interessados? Qual costuma ser o espaço para esta participação em âmbito nacional?

Edson Cattoni – No caso de Florianópolis se impôs a concepção distorcida de que é prerrogativa dos prefeitos conceder, ao seu critério, o espaço e o tempo para ocorrer a participação e o controle social na elaboração do plano diretor. Na verdade é sua obrigação garantir a participação no processo de elaboração do plano diretor, usando de sua prerrogativa para editar, reeditar e revogar os decretos necessários. Contudo, a coordenação do processo participativo de elaboração do Plano Diretor deve ser compartilhada por representantes do poder público e da sociedade civil em todas as etapas do processo, desde a elaboração até a definição dos mecanismos para a tomada de decisões. Logo, a coordenação deve ser participativa para legitimar um plano efetivamente participativo. Mesmo que isso seja um direito, de fato, constitui um exercício de desconcentração de poder que, não raro, encontra obstrução de prefeitos e vereadores em qualquer cidade.

Como lidar com um colegiado de representantes da sociedade que acompanha, fiscaliza e coordena o processo da elaboração da lei mais importante do município? Estes podem exigir metodologias claras, estudos tecnicamente fundamentados, mapeamentos legíveis, cronogramas condizentes, orçamentos abertos, contratos e relatórios auditáveis, definir agenda de reuniões e audiências públicas, etc. Não é difícil imaginar que, do ponto de vista de um gestor eleito, tal grau de autonomia e exigências por mais transparência e probidade pode interferir facilmente com a agilização de seus planos originais.

No caso de Florianópolis, por duas vezes os prefeitos executaram manobras injustificadas para afastar esta coordenação compartilhada, aqui denominada de Núcleo Gestor. Ou seja, tirar os fiscais da partida para poder “jogar” sem árbitros. Assim, um avanço efetivo no exercício da gestão democrática na cidade (democracia direta) tem enfrentado um padrão de resistência por parte de prefeitos e vereadores (democracia representativa) desde 2001, quando o Estatuto da Cidade estabeleceu que o processo de revisão ou alteração do plano diretor deve ser participativo. Não é por menos que Florianópolis foi a última capital do país a revisar seu plano diretor à luz do Estatuto da Cidade.

IHU On-Line – Esta foi inclusive uma das dificuldades de identificar as alterações no Plano Diretor de Florianópolis. Os críticos da votação alegaram que os vereadores votaram às cegas, recebendo as alterações instantes antes de votar. Como encara este processo?

Edson Cattoni – Com a manobra de afastar qualquer efetivo controle social sobre o processo foi possível manter a falta de transparência, manipular convenientemente a programação dos eventos e audiências, executar uma participação simplesmente para salvar as aparências e cooptar alguns setores com seus interesses isolados. Isso acelerou muito o processo, possibilitando, até mesmo, apresentar uma proposta improvisada e repleta de impropriedades técnicas e jurídicas, inclusive driblando a necessidade de ter a aprovação do plano diretor em uma conferência final.

Mesmo assim, esta proposta seguiu sendo remendada e apresentada sem publicizar os documentos e informações produzidos para embasá-la tecnicamente. Além do mais, a sucessão de versões produzidas e mal divulgadas, bem como a enxurrada de emendas ao projeto, potencializou a confusão e tornou dificílimo o devido acompanhamento ao processo, até mesmo para os vereadores interessados. O fato é que uma proposta de lei com 327 artigos não precisaria receber 658 emendas, caso estivesse tecnicamente embasada e minimamente pactuada com a sociedade. Logicamente, também não seria possível promover tal atropelo sem angariar a cumplicidade de uma maioria acrítica na Câmara de Vereadores.

IHU On-Line – Na hora da votação, os vereadores catarinenses alteraram muito o documento, desequilibrando um projeto longamente planejado. Como equalizar a elaboração de um plano diretor participativo com os interesses políticos?

Edson Cattoni – Como já mencionei, é um engodo acreditar que tal projeto de lei seja fruto de longo planejamento ou participação efetiva. Ao contrário, o plano já nasceu desequilibrado a tal ponto que seus responsáveis tiveram de contratar, de última hora, consultorias profissionais de renome nacional e internacional para ajustar o que fosse possível. Sabe-se lá a que custo.

Casos em que planos diretores se arrastam por tanto tempo são, muitas vezes, exemplos de sucessivas manobras para evitar o enfrentamento de problemas complexos da realidade. Por exemplo, a apresentação pública de um mapeamento de condicionantes ambientais, segundo a legislação vigente, possibilita dimensionar a verdadeira extensão da (in)segurança jurídica pertinente, mas tende a contrariar as expectativas de valorização de terras (de grandes e pequenos proprietários). A contrariedade destes interesses tem um grande potencial para alterar a opinião pública de forma inconveniente aos “planos” dos governantes. Além disso, o caso do plano diretor de Florianópolis também pode ser visto como um exemplo de extrema “eficiência” em criar manobras para “agilizar” um plano diretor até a sua aprovação final.

Assim, a maior dificuldade não reside na aprovação final, mas no enfrentamento de um processo intrinsecamente conflituoso de constituir gradativamente um pacto de desenvolvimento com inclusão e alinhamento entre os diferentes interesses de forma consistente em relação às prioridades e valores da sociedade local, na leitura da realidade produzida com saberes técnico e comunitário, bem como coerente com as diretrizes gerais contidas no Estatuto da Cidade.

IHU On-Line – Quais são as consequências da inexistência de um plano diretor atualizado em vigor nas cidades?

Edson Cattoni – Da mesma forma que não é correto criar falsas esperanças de que a simples aprovação de uma lei doplano diretor possa mudar as condições de desenvolvimento de uma cidade, também é muito difícil de acreditar que, na atualidade, um padrão coerente e justo de qualificação da cidade possa ocorrer espontaneamente sem algumas mudanças estruturais, significativas e continuadas para além dos mandatos dos governantes. Um plano verdadeiramente da cidade não pode deixar de contar com credibilidade e o necessário envolvimento e comprometimento da sociedade local para sua implantação, o que ocorre a longo prazo.

(Por Andriolli Costa)

 

Fonte: entrevista publicada pela IHU On-Line do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, 20-01-2014.

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