Transgênicos e o novo “Pacto Colonial” na agricultura brasileira

Por Luciano Rezende Moreira e Maria Thereza Pedroso.

“Eu quero um beijo de cinema americano

Fechar os olhos fugir do perigo

Matar bandido, prender ladrão

A minha vida vai virar novela […]”.

Lisbela. Caetano Veloso.

              Assistimos à polarização política em nosso país ganhar contornos trágicos. O maniqueísmo daquelas correntes de pensamento que, de forma rebaixada, insistem em dividir o mundo entre o “eixo do bem” em eterna luta contra o “eixo do mal”, cabe bem em gibis de super-heróis, nos noticiários e nas novelas da Globo ou em tantas letras de músicas românticas.

              E para dar contornos de maior dramaticidade a esse enredo, a narrativa de um mundo dividido entre mocinhos e bandidos propõe um roteiro que, muitas vezes, conta com a participação especial de atores políticos do campo da esquerda. É o que se percebe em vários temas relacionados ao chamado agronegócio brasileiro, setor que mais cresce no país.

              A novela por “Um Brasil livre de transgênicos” é o exemplo clássico dessa lógica binária. Não se trata de negar as contradições existentes no seio da sociedade, entre elas a luta de classes que ocorre no campo. Mas é imperioso identificar o que de fato é contradição, daquilo que, no máximo, não passa de disputa de projetos.

              Nesta celeuma, os Organismos Geneticamente Modificados (OGMs), mais conhecidos como transgênicos, foram eleitos por diversos grupos de interesse como o inimigo a ser combatido. Mais que isso, o símbolo do “famigerado” agronegócio.

              Como alternativa ao melhoramento genético convencional ou à transgenia, várias organizações contrárias aos transgênicos têm pontificado que a solução para nossos agricultores seria a adoção de sementes crioulas, ou seja, variedades desenvolvidas, adaptadas ou produzidas por agricultores familiares, assentados da reforma agrária, quilombolas ou indígenas, com características bem determinadas e reconhecidas pelas respectivas comunidades.

              Guardadas as devidas proporções, seria o mesmo que ONGs ligadas à área da saúde se mobilizassem contrários às pesquisas com células tronco embrionárias como forma de se oporem aos planos de saúde privados.

              A questão dos transgênicos é emblemática ao representar uma das maiores incoerências forjadas nas últimas décadas dentro da questão agrária. Muito semelhante com relação à dicotomia criada entre o agronegócio e a agricultura familiar, situando-as em polos antagônicos. A quem interessa, de fato, insistir nessa divisão?

              Em 2011, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) aprovou para uso dos agricultores brasileiros um feijão transgênico desenvolvido pela Embrapa que é resistente ao chamado “vírus do mosaico dourado”. Muitos hectares de produção de feijão são perdidos todos os anos em função da doença causada por esse vírus que vem ameaçando nossa segurança alimentar. Os agricultores, diante desse problema, têm utilizado quantidades enormes de inseticidas para combater o inseto conhecido popularmente como “mosca branca”, transmissor do vírus. Dessa forma, o feijão transgênico desenvolvido pela Embrapa, um produto genuinamente brasileiro e do povo brasileiro, é capaz de evitar o uso de agroquímicos para combater essa mosca, barateando custo de produção, evitando contaminações e aumentando a produtividade.

              Este exemplo do feijão transgênico da Embrapa contrasta com tantos outros projetos desenvolvidos por algumas empresas privadas transnacionais que direcionam o agricultor a uma arapuca, aprisionando-o a um pacote tecnológico da própria empresa. São aqueles transgênicos nos quais o agricultor se percebe impelido a comprar a semente e o agroquímico da mesma empresa para manter uma alta produtividade e, assim, tentar manter-se no mercado.

              Essa é a questão chave para uma análise racional e coerente: cada transgênico deve ser avaliado “caso a caso”. Generalizações tendem a ser superficiais e, portanto, perigosas, ainda mais quando se trata de tecnologia. É preciso saber a finalidade da pesquisa que tem como objetivo desenvolver um determinado produto transgênico.

              A China, por exemplo, tem clareza sobre esse assunto. Vem desenvolvendo inúmeros transgênicos com características similares ao do feijão transgênico da Embrapa. Seu objetivo, enquanto nação autônoma, é garantir suas soberanias alimentar e tecnológica, atendendo seus agricultores com grande aporte de financiamento público. Até mesmo o setor público dos Estados Unidos faz o mesmo. Recentemente, desenvolveu e disponibilizou para os agricultores havaianos, um mamão papaya livre de vírus que também evita o uso de inseticidas para se combater o vetor da doença que estava ameaçando a produção dessa fruta. Hoje, o Havaí fornece mamão papaya para o restante do país, o Canadá e o Japão. Ou seja, o mamão papaya transgênico foi, literalmente, a salvação da lavoura.

              Mas, o “Havaí não é aqui”. E os nossos agricultores estão, cada vez mais, acorrentados aos pacotes tecnológicos das transnacionais de insumos. Além de serem sempre acusados de “inimigos da natureza” por muitas dessas ONGs.

“Farms here, forests there” (ou o novo Pacto Colonial).

“Num planto capim-guiné

Pra boi abaná rabo

Eu tô virado do Diabo, eu tô retado cum você

Tá vendo tudo e fica aí parado

Com cara de veado que viu caxinguelê”.

Capim Guiné. Raul Seixas.

              O subtítulo acima, em inglês, pode ser traduzido literalmente como “produção agrícola aqui (nos Estados Unidos) e florestas lá (no Brasil)”. Trata-se de um documento de 48 páginas, patrocinado pela National Farmers Union (Associação Nacional de Fazendeiros dos Estados Unidos) e pela organização não-governamental Avoided Deforestation Partners (Parceiros contra o Desmatamento, em tradução livre) que, basicamente, defende um salvo-conduto aos agropecuaristas estadunidenses avançarem seus cultivos e criações sobre áreas ainda não ocupadas, destinando, ao Brasil, a tarefa de ser uma “floresta” do mundo.

              Esse é o novo reordenamento geopolítico que a pretensa metrópole (EUA) quer impor ao Brasil, como se fôssemos uma de suas colônias. É a proposta de um novo Pacto Colonial.

              O Pacto Colonial, em terras brasileiras, iniciou-se com o extrativismo do pau-brasil, declarado por Dom Sebastião como monopólio de Portugal. Todos os demais ciclos econômicos em que a agropecuária foi o vetor de desenvolvimento (cana-de-açúcar, látex, café, cacau, entre outras commodities) teve a orientação determinada pelo mercado externo que, em última instância, agia de acordo com os interesses das metrópoles de ontem (e de hoje).

              Importante destacar que o beneficiamento de todos esses produtos, quando acontecia, era o mais rudimentar e primário possível, com pouca ou quase nenhuma técnica empregada. Quase tudo era movido pela força humana e animal. Foi assim nos engenhos movidos por juntas de bois ou braço escravo, no café secado nos terreiros expostos às intempéries climáticas ou no cacau despolpado pelos pés calejados dos sertanejos.

              O Pacto Colonial português, portanto, iniciou-se na extração do pau-brasil e terminou formalmente com a chegada da família real portuguesa no Brasil, em 1808. Durante todo esse período, um conjunto de leis e normas era imposto ao nosso país. Assim, vivemos por muitos anos com severas restrições para desenvolver autonomamente uma série de atividades econômicas, políticas e militares. Ao resgatar esse período histórico, pode-se supor ter havido algum estudo português, na época, do tipo “Manufaturas aqui (em Portugal), extrativismo lá (no Brasil).”.

              Também é possível supor que o Pacto Colonial contribuiu para esse sentimento de inferioridade claramente identificado em nossa sociedade, atingindo profundamente a nacionalidade brasileira, tocando fundo a alma do povo – não é demais lembrar que até décadas atrás era emblemática a figura do Jeca Tatu – e formando uma classe dominante marcadamente subserviente aos interesses dos países ricos.

              Exemplos, em nossa história, abundam. Mas destaquemos um deles: A indústria brasileira foi impedida de se desenvolver por todo esse longo período. De acordo com Furtado (1976), “o processo de industrialização começou no Brasil concomitantemente em quase todas as regiões. Foi no Nordeste que se instalaram, após a reforma tarifária de 1844, as primeiras manufaturas têxteis modernas e, ainda em 1910, o número de operários têxteis dessa região se assemelhava ao de São Paulo[…]”.

              A chamada “industrialização tardia” no Brasil foi ainda mais retardatária que os demais países caracterizados pelo atraso no desenvolvimento de suas forças produtivas, tais como a Alemanha, o Japão e a Rússia. Nosso atraso no setor industrial, comparado com outros países, muito provavelmente, colaborou para a formação de um caldo de cultura de extrema dependência em muitos sentidos e em diversas áreas.

              A ressurreição do novo Pacto Colonial (produção agrícola nos EUA e florestas no Brasil), disfarçada de preocupação ambiental, quer limitar a atividades econômicas do Brasil, fundamentalmente na área em que dispomos de maior dinamismo que é a agropecuária. Justamente esse setor reconhecido mundialmente pela sua eficiência e sustentabilidade, referendado por cifras espetaculares.

            A agricultura brasileira produziu ano passado (2017) aproximadamente 240,5 milhões de toneladas de grãos e, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), devemos atingir a marca de 226,1 milhões de toneladas este ano (2018), sendo a segunda maior estimativa da série histórica do órgão – iniciada em 1975.  Menos de cinco décadas atrás o país produzia apenas 20 milhões de toneladas para uma população de 80 milhões de habitantes. Isto equivalia a uma proporção de apenas 250 kg de grãos por habitante por ano, ou seja, menos de um quarto da relação de hoje (1100 kg/habitante/ano).

            E embora a produção total tenha crescido sete vezes, a área de plantio cresceu apenas três vezes, ou seja, em 1965 se utilizava uma área de 21 milhões de hectares e hoje temos uma área cultivada estimada em aproximadamente 60 milhões de hectares.

            Esses números podem estar incomodando nossos competidores do mercado internacional de produção de alimentos.

O fato é que, em nome da justa preservação do meio ambiente, dos agricultores familiares, assentados da reforma agrária, quilombolas e indígenas, algumas ONGs e alguns desavisados ingênuos promovem uma cruzada com duas bandeiras principais: a luta contra o agronegócio brasileiro e contra toda e qualquer inovação tecnológica capaz de incrementar a produtividade na agricultura, como os transgênicos.

            Dessa forma, o título do documento acima, também poderia ser “transgênicos aqui (nos EUA) e sementes crioulas lá (no Brasil).”.

Uma revolução verde (e amarela)

“Quando Pero Vaz de Caminha escreveu

Que aqui se plantando tudo dá,

Na Europa muita gente até deu

Vontade de se mudar pra cá”.           

Salada Tupiniquim. Eliezer Setton.

            A modernização da agricultura brasileira, ainda que conservadora, se deu baseada na forma intensiva de produção, aumentando enormemente a produtividade, pois foi ancorada na pesquisa de ponta. Em outras palavras, uma gigantesca revolução levada a cabo pelo capitalismo no campo que, pela primeira vez na história, criou a possibilidade de a grande produção agrícola elevar os níveis de produtividade a patamares antes inimagináveis.

            Além do mais, ocorreu a incorporação de novas regiões que, até então, eram pouco utilizadas para a produção de alimentos. Tudo isso foi fruto de um conjunto de ações, tais como a fundação da Embrapa, a implantação das empresas de assistência técnica e extensão (Emater’s), o investimento nas universidades, a criação de cursos de pós-graduação em ciências agrárias, a concessão de crédito agrícola, etc.

            Um dos exemplos mais impressionantes desse desenvolvimento técnico e científico ocorre com cultura da soja, uma leguminosa asiática, trazida dos Estados Unidos no século 19, basicamente usada para alimentação do gado, e que a partir do seu melhoramento genético, adaptando-se às nossas condições, saltou de um milhão de tonelada produzida em 1979 para quase cem milhões de toneladas em 2017.

              Coincidência ou não, justamente essa espécie que foi domesticada há cerca de 1100 anos A.C., uma das plantas mais importantes do mundo, foi eleita por muitas ONGs como símbolo dos transgênicos e da agricultura intensiva dependente de insumos químicos. O investimento na modernização da nossa agricultura não foi apenas importante para quem está no campo, mas em especial para toda a população. Um exemplo é a tropicalização da cenoura, ocorrida na década de 80. Antes, a cenoura era plantada apenas no inverno e seu preço era muito variado ao longo do ano. Até que a cenoura foi melhorada geneticamente para o plantio no verão. Hoje, esse alimento importantíssimo para a saúde da população é cultivado durante todo o ano. Aumentou a oferta, baixou o custo para o consumidor e tornou-se um alimento popular.

            De acordo com o renomado químico e cientista alemão Liebig, em “A química aplicada à agricultura e à fisiologia”, citado por Karl Kautsky, em “A Questão Agrária”, a “população só poderia manter seu nível populacional, mantendo também inalterável o modo atual de exploração agrícola, sob as duas condições seguintes: 1) Se por um milagre divino os campos recuperassem a fertilidade que a burrice e a ignorância lhes roubaram; 2) Se se descobrissem depósitos de esterco ou de guano de extensão comparável às das minas de hulha da Inglaterra”.  E termina com a seguinte mensagem: “ora, nenhum ser raciocinante, considera provável ou possível a realização destas condições”.

            Infelizmente, após quase 160 anos da comprovação científica das suas teses, ainda há hoje quem acredite que a agricultura pode ser sustentável e produtiva abrindo-se mão dos insumos químicos e da técnica moderna.

            Até mesmo José Graziano da Silva, Diretor Geral da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), reconhecido por sua militância em favor dos pequenos agricultores, em artigo intitulado “Lições de uma década singular”, expõe a centralidade do grande negócio agrícola que, segundo ele, “veio para ficar, ocupa papel estratégico na geração de divisas de países em desenvolvimento e é imprescindível no abastecimento mundial”.

            O caráter atrasado e reacionário que configura a grande propriedade agrícola no Brasil não pode ser confundido com a técnica avançada usada na produção agrícola moderna e muito menos com seu aspecto burguês conservador e como ela se organiza política e economicamente dentro do país.

            Ao contrário do apregoado pelo senso comum, tanto da direita como da esquerda, o “pacto colonial” entre metrópole e colônias africanas, por exemplo, não vitimou povos por seus avanços agronômicos, mas por ter tornado quase todo um continente refém da tecnologia produzida fora, estabelecendo-se e aprofundando-se uma dependência científica.

            Ciência é poder, ainda mais no advento da chamada Quarta Revolução Tecnológica (ou Revolução 4.0) que vivemos hoje. E talvez seja esse o maior de todos os apartheids vivenciados na contemporaneidade: de um lado um seleto grupo de países que desenvolvem ciência de ponta e, de outro, uma imensa maioria de países que no máximo consegue comprar alguma tecnologia pronta e acabada.

            A Revolução Verde, que teve como referência o desenvolvimento de vários insumos químicos, sementes melhoradas, máquinas e implementos agrícolas e uma série de novas práticas agrícolas visando o aumento da produção agropecuária partir das décadas de 1960 em todo o mundo, aqui no Brasil incorporou as demais cores de nossa bandeira com pesquisas locais.

            Entretanto, o novo “pacto colonial”, que se tenta restabelecer em nosso país, tem como marca a profunda desnacionalização de nossa economia, o que pode ser presenciado em vários setores da agricultura nacional, por meio da presença de várias empresas transnacionais de produtos químicos, de máquinas agrícolas, de sementes, etc. Além da presença agressiva (em termos econômicos) dessas empresas, é visível a presença de ONGS (muitas delas financiadas pelos países sedes dessas multinacionais) contrárias ao desenvolvimento autônomo da agricultura brasileira.

            Romper com essa dependência, sem abrir mão do legítimo direito em usufruir das inúmeras conquistas tecnológicas alcançadas pelo nosso povo é desafio que se impõe a todos os democratas, nacionalistas e desenvolvimentistas de nosso país.

Referências consultadas:

FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 14ª ed., 1976: 238.

LENIN, Vladimir Ilich. El problema agrario y los criticos de Marx / Lenin. Moscou: Editora Progreso Moscu, 1979, p. 106 (Tomo 5).

VAVILOV, Nikolai Ivanovich.  The origin, variation, immunity and breeding of cultivated plants. Trans. from the Russian by K. Starr Chester. Waltham, Mass.: Chronica Botanica. New York: Stechert-Hafner, 1951.

Luziano Rezende Moreira é engenheiro agrônomo, mestre em entomologia e doutor em Fitotecnia. Professor do Instituto Federal Fluminense, campus Bom Jesus.

 
Maria Thereza Pedroso é engenheira agrônoma, mestre em desenvolvimento sustentável e doutora em ciências sociais.

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