Traga-me a cabeça dos racistas

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Por Viviane Pistache

A peça Traga-me a cabeça de Lima Barreto, que encerra temporada o Sesc Pompeia, em São Paulo, é certamente um dos espetáculos mais fundamentais da cena negra atual. Se o texto de Luiz Marfuz transborda pesquisa e poesia, a direção de Fernanda Júlia potencializa a força cênica de Hilton Cobra, que simplesmente reinventa a arte do monólogo. Um trabalho coletivo que ecoa a articulação entre teatro e política, um feito corajoso que tem as marcas de muitas trajetórias comprometidas com o artivismo antirracista, a exemplo de Marcio Meirelles, Jorginho de Carvalho, Jarbas Bittencourt, Zebrinha e Biza Vianna. Mas o pressuposto é violento: Lima Barreto é exumado para exame de suas capacidades literárias, pois a ciência corrente ditava que negritude e literatura eram tão incompatíveis quanto água e óleo, numa regra em que quanto mais negro, maior a degenerescência e a incapacidade de criação. Mas algumas evidências eram assaz inconvenientes, sugerindo que do adubo é que se nasce a flor. Machado de Assis, Lima Barreto, Luís Gama e outros contrariavam as teses predominantes. O jeito foi admitir que com sorte ou por acidente, algum mulato amplificaria as qualidades da herança europeia. Lima Barreto foi esse ponto de discórdia, pois apesar das máculas raciais, sua escrita tinha envergadura. Perturbando o sossego dos eugenistas, Lima Barreto mereceu maiores explicações ou respostas mais refinadas. Como um cérebro tão preto se atreveu a disputar um assento no sisudo clube da escrita? Lima Barreto é comparado a Machado de Assis, mas para ser rebaixado.

Como a falecida cabeça de Lima não tem papas na língua, responde à altura, defendendo uma escrita curtida na cor e na dor, aproximando negro-vida e negro-tema, num singular negro-drama. A tradução da realidade do negro comum, sem o conforto do reconhecimento em vida, tal qual Machado de Assis, o mulato queridinho, escolhido para ser parte da nascente intelectualidade dos trópicos. Viscerais, as ideias de Lima Barreto são regadas à álcool sem temer embriagar-se da realidade do povo preto ordinário. Machado de Assis sim, teve bons lençóis, tapinhas nas costas e chá de camomila para afagar a escrita. Lima Barreto é o escritor marginal que vê o conforto pela vitrine, mas não rifa o irmão negro, e acaba por exaltar-lhe a genialidade. Traga a cabeça de Lima Barreto é também uma releitura de Memórias Póstumas de Brás Cubas, na perspectiva de um alienista da Casa Verde. Assim, entre Lima e Machado há mais pontes que abismos. Bem sensato, já que os tempos advertem a unir forças em detrimento de acentuar diferenças. O século XIX marca a história do pensamento científico brasileiro, fundado numa profusa?o de teorias raciais defendidas por homens de cie?ncia, preocupados em aplainar os terrenos para melhor erguer o futuro do pai?s. A mais flagrante ameac?a era o enorme contingente de negros, que maculava o sangue da nac?a?o. Neste sentido as faculdades de Direito e de Medicina criadas pelo Brasil afora ofereceram seus pre?stimos na busca por soluc?o?es. Assim, em tempos de racismo cienti?fico, as teses eugenistas foram as bulas receitadas para purificar o sangue negro que corria nas veias da nação. Como política de saneamento nacional promoveu-se a imigração europeia para garantir a miscigenação e o milagre do branqueamento. Em 1885, Modesto Broccos ilustrou bem este projeto em A Redenção de Cam, que na definição de Olavo Bilac era o retrato da esperança de um futuro promissor: “Vede a aurora-criança, como sorri e fulgura, no colo da mulata – aurora filha do dilúvio, neta da noite”. O Brasil redimido superaria a nódoa da cor negra.

Mas a ironia do espetáculo é justamente dissecar o cérebro dos eugenistas, revelando uma ciência devotada à crença na suposta inferioridade negra. Nomes como Afrânio Peixoto, Fernando Azevedo e Renato Kehl são desnudados em sua prepotência eugênica, apesar de se proclamarem vanguardistas da infante República. Quem assina o Movimento da Educação Nova em 32, o Estatuto da USP em 34, é também quem funda a Sociedade Eugênica de São Paulo em 1918, pioneira em protocolar a condenação da herança negra. Os fatores sociais das chagas que acometiam o povo preto eram preteridos, no sentido de provar a inferioridade genética. Assim, o alcoolismo de Lima Barreto e sua internação no hospício a um só tempo beneficia a argumentação eugenista, bem como suscita questionamento sobre os condenados na terra brasilis. A língua viva de Lima Barreto implode o tempo histórico para que possamos chorar e rir de desgraças de ontem e de hoje.

É nesta encruzilhada que Hilton Cobra encontra Lima Barreto, no desvelar das condições históricas que ensejam a dor e a poesia de ser negro neste país. Lima Barreto se ocupou da vida negra ordinária e Hilton Cobra fundou a Companhia dos Comuns. Entre Lima e Cobra certamente há o Teatro Experimental do Negro e todo compromisso com o drama negro, de fazer o negro protagonista de sua história, de trazer para a arena o debate político de nossos infortúnios. Hilton Cobra encarna em cena a luta e os anseios de Lima Barreto, Machado de Assis, Luís Gama, Abdias do Nascimento, Bando de Teatro Oludum, Os Crespos, Leda Maria Martins, Fernando Azevedo, Lélia Gonzales, Luiza Bairros. Como bem definiu o malungo Sidney Santiago, “Ele [Hilton Cobra] conseguiu articular através de uma rede os 26 estados da federação. Fez o país reconhecer as distintas estéticas negras da cena contemporânea. Ele pariu o Fórum da Performance Negra. Um combatente nato pleiteou, articulou e implementou políticas de ações afirmativas nas artes do país”.

Hilton Cobra é homem de articulação. Performa as dores de Lima Barreto nos fazendo chorar a dissecação da alma de Saartjie Baartman, mulher negra dilacerada pelo racismo científico cujo drama foi dolorosamente contado no filme Vênus Negra de Abdellatif Kechiche em 2011. Hilton Cobra traz o mar para os palcos numa potente corrente diaspórica. Como Omulú ou o barqueiro Caronte, nos conduz na passagem entre a vida e a morte, reinventado o teatro negro como cena de descolonização. O teatro negro como o anjo da história, empurrado para o futuro como testemunha da história, na própria captura da história.

Ao trazer a cabeça de Lima Barreto, Hilton faz desse escritor um emblema, um signo da injustiça, da ausência do devido reconhecimento. Tem-se aqui o teatro na lida com fantasmas, pois onde há história, há escombros e pesadelos. A cabeça de Lima Barreto narra mortes matadas e morridas, a necropolítica que explicita a lógica da exceção, dos corpos em excesso que não cabem na partilha, que esvaem como líquido, corpo líquido que a escravidão jogou no fundo do oceano, ou que foi moído como cana ou café, que foi expropriado como petróleo. Trazer a cabeça/cabaça de Lima Barreto para a cena política atual é um necessário chamado para cuidarmos do nosso Ori, tendo em vista a loucura que não descansa nunca e que vê em cabeça negra um troféu do triunfo do racismo. Sem elaborar a experiência dos mortos devidamente, a experiência sempre se repetirá como tragédia. Em cena, Hilton Cobra traz a esperança de antídotos artesanalmente destilados fora dos palcos também. O espetáculo fica em cartaz somente até este domingo, dia 5 de agosto no Sesc Pompeia, em São Paulo. Gostaria de encerrar trazendo o Sidney Santiago mais uma vez pra prosa: “Tudo isso para dizer que é uma oportunidade única conhecer o trabalho deste homem. Dizer que é admirável ter esta trajetória viva e com fé em nossos palcos. Dizer que as novas gerações precisam saber dos feitos deste operário da arte. Dizer que é muito cruel viver em uma sociedade que invisibiliza trajetórias tão solares e exemplares como esta. Hilton Cobra é um aguerrido soldado afetivo. Um praça pelico do amor.”

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