Tradições, contradições

Por Walter da Silva.

A renúncia de um papa é prerrogativa prevista no direito canônico. O que não se prevê é quem será a próxima vítima. A história da igreja católica, a única agremiação cristã original com bilhões de sócios, registra estranhas ocorrências. De um poder milenar tradicional e tradicionalista, porque conservador, ela se dá o direito de propor moções imanentes. Uma delas, dentre as mais recentes é a assunção da mãe de J. Cristo que subiu aos céus material e espiritualmente. Pois bem. Há outras façanhas da liturgia, como exemplo a da transubstanciação. Assisti muitas, inúmeras vezes a esse rito, posto que a mim era dado um inexplicável prazer de ler o evangelho do púlpito, em voz alta. A uma antiga companheira de subúrbio cabia ler a epístola. Em geral, lembro-me bem, os fiéis gostavam muito de ouvir os textos atribuídos a Paulo, antes Saulo, última testemunha do messias, sem jamais tê-lo visto. O novo testamento trata-o com subida reverência, já que renunciara a seu provável agnosticismo, para aderir à nova filosofia. É uma tênue metamorfose, da água para o vinho, de oito para oitenta. Aliás, Paulo ficou tão famoso que no Vaticano é venerado em imagens e outros totens próprios duma religião que sobrevive até agora. Só não conseguiu ser Papa porque a turma já havia decidido que Pedro seria o primeiro gestor. A hierarquia católica é peculiaríssima. É tão representativa e tão levada a sério, que no início da carreira, um professor universitário, obriga-se a difundir e inseri-la no programa de Introdução à Administração, como factual exemplo do fenômeno que denominamos linha/staff. Em miúdos: a cada linha hierárquica corresponde um poder de cima para baixo, considerando as posições de assessoramento numa estrutura organizacional, num organograma. Foi dessa particularidade que surgiu a noção de unidade de comando: dois não devem mandar em um.

Qualquer estudante do primeiro período sabe disso de olho fechado. Quando lecionava (ou lesionava?) esse fundamento, aceito e consensado pelos pares acadêmicos, fazia-o em nome da ciência e não da importância eclesial. Eu já era agnóstico, mas me portava profissionalmente, segundo o figurino científico. Diga-se por justiça que toda a história e os primórdios da administração contemporânea, jamais se constrangeram de comparar a hierarquização organizacional com a estrutura de cargos na Igreja Católica. Todos sabem que quanto mais poderosa uma corporação, mais crédito se lhe dão os adeptos. Não sei exatamente se por medo e extrema reverência, ou simplesmente por desconhecimento do que seja a verdade organizacional. E o que é a verdade? Corra ao narrador João e saberá.* Saiamos do campo das abstrações e vamos botar de novo o pé no chão. Se no mundo organizacional, corporativo, as empresas seguem regras específicas, na Igreja Católica também são cumpridas estamentos milenares, dogmáticos, que entre seus “investidores”, devem ser acolhidos. Afora os detalhes canônicos que por si só impõem obediência e cumprimento compulsório inquestionável. Se numa empresa moderna ocidental, o CEO é alguém escolhido por um colegiado com prazos e tarefas decididas consensualmente, na Igreja Católica, instituição regida não somente pelos homens, mas inspiradas no sobrenatural, direitos e deveres são inegociáveis. A rigor, quem assumir o cargo máximo votado em conclave – que significa “a portas fechadas” – na eleição para pontífice, estará sujeito às mesmas normas para desobrigar-se dessa função.

Por determinação colegiada, a assunção do principal administrador, ocorre de forma secreta, como na maçonaria, por exemplo. Com o atenuante de que a articulação política para a eleição de um Papa varia de acordo com as características de uma época. Chefe de si mesmo, o Pontífice, desde que em condições físico-mentais adequadas, prosseguirá ou não sua agenda, usufruindo o direito de esquivar-se diante de algum sério dano pessoal, renunciando ao mandato. Durante esses tantos séculos de papado e de hegemonia católica, sabe-se apenas que a renúncia de se deu em pouquíssimas vezes. A última foi no século quinze. O atual mandatário, homem que se diferencia do anterior por seu perfil de erudito e de intelectual produtivo, já não corresponde humanamente às demandas pontuais do cargo que ocupa. É portador de artrose crônica e este mal o impossibilita de habilitá-lo ao trato administrativo e pastoral. Alguns especialistas atribuem a renúncia do Papa ao atual cenário da imagem negativa da Igreja, com os casos de acusação de pedofilia por seus membros em alguns locais do planeta. Outros acreditam que a fórmula de angariar mais prosélitos, já atingiu seu estertor de difícil reversibilidade. Sem contar com a perda progressiva deles para as igrejas protestantes, ávidas em arregimentar mais ovelhas para seus rebanhos.

Hoje, distante dos ritos e do cerimonial idealista da pregação religiosa, me pergunto se vale a pena toda essa algaravia midiática, num mundo em que o sobrenatural perde cada vez mais terreno para o avanço inexorável da pesquisa científica e sua contribuição à sustentabilidade humana.

*João 14/6

Camaragibe-PE, 11/02/2013

 

Foto: creiaemjesus.com.br

 Fonte: Geleia General

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