Tortura no RS: o que a sociedade precisa saber

2018 começou para os povos indígenas da mesma forma que terminou 2017: com a negação do direito ao seu território tradicional e, em consequência disso, a truculência e a violência para com aqueles e aquelas que saem em busca de um pedaço de chão para viver e dar a vida.

Por Julia Saggioratto, para Desacato.info.

Em Passo Fundo/RS às margens da BR 285, próximo ao trevo que dá acesso ao município de Marau/RS, um grupo de cerca de 80 indígenas da etnia Kaingang ocupou o espaço pertencente ao DNIT no dia 15 de fevereiro para chamar a atenção e pressionar o poder público para que agilize a demarcação de suas terras.

Local onde os indígenas ocuparam. Seus pertences não puderam ser todos recolhidos (Foto: Ivan César Cima)

De acordo com Daniel Carvalho, cacique da comunidade Kaingang Campo do Meio, a comunidade não aguenta mais esperar pelo Estado para demarcar seu território. Com a consolidação do golpe, os direitos dos povos originários foram sendo colocados no jogo da negociação como moeda de troca para aprovação das vontades da elite internacional. Com o parecer 001/2017 da AGU, o Marco Temporal, as demarcações paralisaram, levando inúmeras comunidades indígenas ao extremo desamparo, consolidando o tratamento de extermínio que recebem desde 1500.

Cacique Daniel Carvalho, da comunidade Kaingang Campo do Meio (Foto: Julia Saggioratto)

E falando em extermínio, esse foi o tom da resposta que os Kaingang tiveram ao ocupar o espaço em Passo Fundo/RS. Cerca de 30 policiais da Brigada Militar e do BOE de cercaram os indígenas sem a possibilidade de diálogo, os expulsando do local com balas de borracha, gás lacrimogêneo e cassetetes. Mulheres foram espancadas, crianças vomitaram devido à intoxicação pelo gás, um idoso levou mais de 20 tiros de balas de borracha e um rapaz, ao defender sua esposa grávida, levou um tiro de bala letal. O cacique Daniel ainda ressalta que, quando levavam alguns indígenas com ferimentos para o hospital em Passo Fundo, a polícia os abordou, lhes ameaçando e humilhando com frases racistas, além de pedir que se abraçassem e cantassem.

Segundo o indígena da etnia Kaingang Abrão Carvalho, durante o ataque os indígenas eram ameaçados de morte e as mulheres ainda foram ameaçadas de serem estupradas. Dinheiro e documentos dos indígenas foram retidos pela polícia, alguns de seus pertences foram queimados no local.

O indígena Abrão Carvalho conta que foram ameaçados de morte e seus pertences foram retidos pela polícia (Foto: Julia Saggioratto)

Diante da repercussão do fato o coronel Jair Euclésio Ely, comandante regional da BM, disse em entrevista ao Jornal do Comércio, de Porto Alegre, que o grupo não era de indígenas pois não é reconhecido pela Funai. De acordo com Ivan César Cima, do Conselho Indigenista Missionário regional sul, a convenção 169 da OIT “assegura aos  povos indígenas a autodeterminação. Isso significa dizer que ser Kaingang ou Guarani não depende do consentimento ou da aceitação de terceiros. Se um grupo de pessoas por meio de seus costumes e tradições se reconhece como kaingang não cabe a um brigadiano, à Funai ou outro terceiro reconhecê-los como tal, como Kaingang”, destaca Ivan.

    No artigo Artigo 1o da Convenção 169: 2. A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção.

Ainda na matéria o coronel Euclésio comenta que “a área em questão serve para captação de água pela Corsan”, e que o mais importante da ação foi que conseguiram preservar o abastecimento de água “às 200 mil pessoas da região de Passo Fundo”, o que, possivelmente, não inclui a comunidade indígena. Pois bem, é fato que o grande objetivo das elites nacionais e internacionais, ao retirar os povos indígenas de seu território, é aniquilar seu modo de vida em harmonia com a Terra Mãe, já que não gera lucro algum ao capital. Os expulsando de seu território têm a área livre para a exploração dos recursos naturais.

É o fascismo colonial, muito bem representado pelos Estados Unidos, abrindo suas garras sobre o que restou dos territórios para satisfazer sua sede incessável de lucro. E junto à onda de destruição vem a violência, a tortura, a ameaça, o medo. Será que a melhor opção para preservar fontes de água é expulsando os indígenas do local? Estes que possuem uma relação de respeito com a natureza já desde muito antes de 1500? Outra questão importante diz respeito ao direito originário desses povos ao território. No artigo 231 da Constituição Federal está claro:   

    § 3º – O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.  

 

Os indígenas precisam ser consultados sobre o futuro da área em questão, já que originalmente lhes pertence. Os direitos dos indígenas, por serem originários, são muito mais antigos do que qualquer direito que possa ter sido adquirido posteriormente.

Outro comentário da Brigada Militar na matéria diz respeito à denúncia de abuso de autoridade. Segundo a corporação os indígenas fizeram resistência para sair do local sendo, então, retirados com “uso moderado de força”. De acordo com o Kaingang Adão da Silva Kairu, morador da comunidade Campo do Meio, o grupo pediu alguns minutos para que retirassem suas coisas do local, mas a Brigada negou o pedido, agredindo a comunidade com extrema violência logo em seguida. E o uso moderado da força é, no mínimo, questionável.

De acordo com Adão da Silva Kairu os indígenas pediram um tempo para recolherem seus pertences mas a Brigada Militar negou o pedido (Foto: Julia Saggioratto)

O comandante da Brigada ainda comentou em seu depoimento que o “líder da invasão” foi preso. O líder mencionado pelo comandante é o senhor Querino Carvalho, de 78 anos, que levou mais de 20 tiros e foi levado para a delegacia. O ancião “Seu Querino”, como é conhecido pela comunidade, teve seu ombro deslocado ao ser torcido para obter suas impressões digitais.

O ancião Querino Carvalho levou mais de 20 tiros de bala de borracha (Foto: Julia Saggioratto)

Ainda segundo o comandante foram apreendidas arma de fogo, foices, facões, enxadas e machados pequenos. De acordo com o indígena Mateus Carvalho, os indígenas possuem instrumentos como arco e flecha e lanças, utilizados em momentos de dança e apresentações, característicos da cultura Kaingang. O último comentário que destacamos é de que o uso de bala letal foi descartado pela Brigada Militar, porém, um dos moradores da comunidade precisou fazer pontos em um ferimento profundo de bala na coxa. A série de violência sofrida pela comunidade parece infinita.

Foto do ferimento tirada no dia do ataque (Foto: Daniel Carvalho)
Pontos feitos no ferimento (Foto: Julia Saggioratto)

O Portal Desacato segue atento aos ataques aos direitos e à vida dos povos indígenas de toda a Nossa América.

Confira aqui a matéria completa com os depoimentos dos indígenas em Passo Fundo, veiculados no JTT.

Aqui entrevista com o cacique Daniel Carvalho próximo ao local do ataque.

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