Tom Zé: “ô, meu deus, eu só queria um país normal”

Companheiro de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa, Tom Zé revolucionou a música popular brasileira a partir da década de 1960 / Divulgação

Por Guilherme Henrique e Mayara Paixão

Ícone do Tropicalismo entre 1960 e 1970, Tom Zé possui trajetória que se confunde com a história cultural e política do país. Líder do movimento de contracultura, o baiano traduziu o cenário violento da ditadura militar com inteligência, em álbuns marcantes como “Grande Liquidação” (1968) e “Todos os olhos” (1973).

Se a tentativa de interpretar um dos períodos de maior repressão do país foi eficaz, o álbum que retrata os primeiros anos de abertura democrática no Brasil não haveria de ser menos marcante. “No Jardim da Política”, de 1984, aproveitou a “afrouxada” que a censura já demonstrava, nas palavras de Tom Zé ao Brasil de Fato.

Para além da importância como símbolo de arte e resistência, o álbum do compositor dá nome ao programa que estreou nesta quinta-feira (30) na Rádio Brasil de Fato, e do qual ele fez parte como convidado, ao lado do ex-chanceler Celso Amorim. O programa No Jardim da Política vai ao ar todas as quintas-feiras, às 14h, e recebe convidados especiais para discutir a conjuntura política de olho nas eleições deste ano.

Diferentemente do que tem feito nos últimos tempos, quando não abordou de maneira enfática o conturbado momento pelo qual o Brasil passa, Tom Zé não economizou adjetivos para criticar o governo de Michel Temer. “Nós estamos com o país atravancado por interesses pessoais, então é preciso eleger um governo completamente novo. Temos um presidente da república que, para se manter no poder, distribuiu uma fortuna a deputados para não ser processado”, afirmou.

Durante a conversa, o compositor também falou sobre as influências do tropicalismo na música contemporânea, o papel da juventude na transformação do país e as utopias que ainda tem aos 81 anos. “Todo mundo deveria votar para nos ajudar a tirar toda essa raça viciada no crime que nos dirige e comanda”, disse.

Brasil de Fato: Como surgiu a ideia de fazer o álbum No Jardim da Política, em 1984?

Tom Zé: Foi um momento em que os militares tinham compreendido que era necessário sair do poder, porque o exército sempre teve um cuidado com a sua decência moral. Eles perceberam que a corrupção estava em toda parte, roendo as expectativas e o próprio exército. “No Jardim da Política” surge nesse período.  A música “Classe Operária” é um banho, um “reductio ad absurdum” (do latim, redução ao absurdo). Vou dizer algo tão absurdo que você vai perceber que estou falando ao contrário. ‘Sobe no palco o cantor engajado Tom Zé, que vai falar dos operários, tratar dos operários, mas não há nenhum operário no palco. Mas Tom Zé e seus amigos sabem o que é bom para os operários’. Qualquer pessoa de raciocínio médio vai dizer ‘como esse cara é louco, como a gente é metido besta, pensando que vai resolver o problema dos operários sem consultá-lo’. Pois teve amigo meu engajado politicamente que virou a cara pra mim. E No Jardim da Política tem “Marcha Partido”, “Dólar” e “Vá Tomar”: “Meta sua grandeza no banco da esquina/ Vá tomar no verbo seu filho da letra/ Meta sua moral, regras e regulamentos, escritórios e gravatas, sua sessão solene/ Pegue junte tudo, passe vaselina, enfie só que meta, no tanque de gasolina”. Isso é fazer política ou não é? Era o que nós podíamos falar porque a censura havia afrouxado um pouco.

Ainda que sem intencionalidade, esse álbum reflete o posicionamento esperado pelo público de um artista sobre determinado momento político?

Eu fiz várias canções sobre o cenário que se tinha durante a ditadura. Tem aquela que diz assim: “Todo compositor brasileiro é um complexado, porque então essa mania de falar tão sério, de sorrir tão sério, de trepar tão sério! Ah, meu Deus, vá ser sério assim no inferno”. Essa música está no álbum “Todos os Olhos”, de 1973. Me inspirei no general Ernesto Geisel e na fala dele sobre termos uma ‘democracia relativa’, além de falar sobre a liberdade que buscávamos. “A liberdade é uma graça, todo dia se decifra, todo dia se disfarça…” Era uma informação comprimida, uma bomba comprimida.

Sobre a atualidade, como você tem visto o cenário político do Brasil?

O Brasil é comandado por grupos que têm interesses particulares. É por isso que não se pode eleger ninguém que está na Câmara dos Deputados ou no Senado. Temos que eleger outras pessoas e tentar algo diferente. Nós estamos com o país atravancado por interesses pessoais, então é preciso eleger um governo completamente novo. Temos um presidente da república que, para se manter no poder, distribuiu uma fortuna a deputados para não ser processado. Hoje estou com 81 anos, mas um dia tive 17, e tive que procurar esperança na música, no livro, na escola. Os meninos de hoje podem procurar esperança em algum lugar? Os professores foram degradados, tornados pobres miseráveis, incapazes de ensinar e estudar; as escolas são invadidas por bandidos, por drogas. São 14 milhões de desempregados. O que essas pessoas podem fazer? Não há escola, não há proteção, nada. O mínimo que se pode esperar é violência, basta ver o que está acontecendo no Rio de Janeiro.

Você chegou em São Paulo para formar o tropicalismo dialogando com as artes plásticas do Hélio Oiticica, a poesia concreta, o teatro Oficina e outras manifestações culturais da época. Nós ainda temos essa capacidade de articulação ou isso foi fruto de uma época?

Os tropicalistas foram privilegiados em uma coisa que quase não há hoje à disposição: educação. Todos tinham uma educação finíssima. Quando cursamos a educação ginasial em Salvador, a Bahia fervilhava em arte. Glauber Rocha (cineasta, autor de “Terra em Transe” e “Deus e o Diabo na Terra do Sol”) era novinho, mas já ajudava atrizes no cinema de lá. O reitor da Universidade Federal da Bahia à época, Edgar Santos, mantinha uma escola de música e dança de primeiro nível. Havia o Teatro dos Novos, dirigido por João Augusto. Perceba, havia um investimento cultural que não era dedicado ao tropicalismo, mas quando Gil, Caetano, eu e outras pessoas chegamos ao colégio, aquilo tudo fervilhava. Quando a pessoa ouvia “sobre a cabeça os aviões, sobre os meus pés os caminhões, aponta contra os chapadões meu nariz” (“Tropicália”, de Caetano Veloso) era como se ela tivesse em mãos um “fuzil semiótico”, e começava a tentar fazer coisas semelhantes. Se o Tropicalismo está presente hoje? Um dos vocalistas do Baiana System disse recentemente: “cada vez que o meu braço pega uma caneta e se dirige para o papel, quem está guiando esse braço é a aventura do tropicalismo”.

Todos vocês eram muito jovens nesse período, inclusive quando vocês se envolveram com o Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE). Qual o papel da juventude no momento que vivemos?

Hoje, as pessoas entendidas dizem que o CPC era uma visão do mundo que queria ensinar as coisas politicamente e que isso não dá resultado. Eu acredito nessa tese. Mas viver aquilo foi muito importante, como aprendizado, exercício de trabalho. Eu, José Carlos Capinam e Geraldo Sarno éramos diretores de música. Quando havia uma greve, morávamos nos sindicatos fazendo musicais, canções políticas. Era uma vida com sentimento de participação, uma excitação por estar em contato com as classes empregadas e seus problemas. Em Salvador, havia na nossa juventude um sentimento de liberdade, graças ao reitor da UFBA.

Recentemente houve uma polêmica com uma propaganda que você fez para a Coca-Cola nas redes sociais. Muitas pessoas o criticaram, você apagou sua página no Facebook. Como tem sido sua relação com o público nas redes sociais?

Mesmo com todos os contratempos que advém das redes sociais, essa palavra dada a todo mundo tem benefícios, porque a periferia, por exemplo, não teria aprendido o que ela sabe hoje.

Eu fiz uma série de músicas acompanhando os atos políticos que aconteciam no Brasil. Um belo dia, fui avisado de que iam me atacar nas redes sociais e eles são uma organização poderosa. Se falarem “ataquem tal setor”, aparece um milhão de e-mails, xingando você de coisas que não posso dizer agora. Minha companheira (Neusa) encontrou isso no computador e ficou muito abalada. Eu, que sou covarde, falei para apagarmos tudo e nunca mais eu quis saber disso.

Tom Zé, você ainda possui alguma utopia?

Olha, aos 81 anos as pessoas geralmente já fizeram o que tinham que fazer. Agora, eu tenho esperança que os pobres e periféricos, que têm a mínima informação e descobrem a capacidade de raciocinar, possam aproveitar essa disposição que há. As eleições têm uma imensa importância, e o voto de quem diz que não está ligando para isso é fundamental e uma perda inestimável. Todo mundo deveria votar para nos ajudar a tirar toda essa raça viciada no crime que nos dirige e comanda. Deus abençoe eles, que vão gozar de suas fortunas em outro lugar, que passe meia dúzia de anos na prisão, mas nós precisamos de outra espécie governando a gente. Ô, meu deus, minha utopia é que nós pudéssemos ter um país normal, com algum governo.

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