Tensão e exploração indígena no Equador: Huasipungo

Por Gustavo Henrique Siqueira.

ICAZA, Jorge. Huasipungo. Caracas, Venezuela: Fundación Imprenta del Ministerio de la Cultura, 2006.

A questão indígena, além de ser um problema vivo nos debates latinoamericanos, sempre foi tema de discussão no âmbito humanitário ou laboral desde o século XVI com a contenda de Las Casas e Sepúlveda (NETO, 2003). No início do século XX, ainda que a exploração ao indígena siga sendo prática comum, muitos autores e pensadores do continente relatam as condições em que vivem os nativos americanos, chamando aos leitores, geralmente, para o pensamento crítico. É o caso de autores como Ciro Alegria, no Peru, Alcides Arguedas, na Bolívia e Jorge Icaza.

Jorge Icaza (1906-1978) foi um importante escritor indigenista da história equatoriana. Escreveu dezenas de novelas e peças teatrais entre 1931 e 1972, mas sua crítica ao governo na obra El Dictador (1933) resultou em pouca audiência, que o autor logrou recuperar no ano de 1934 com Huasipungo, garantindo-lhe repercursão internacional com a tradução para diversas línguas (VÁZQUEZ, 2006).

A trama Huasipungo (“Huasi” = casa e “Pungo” = porta. Pedaço de terra onde o índio levanta sua vivenda e faz pequenos cultivos) ocorre num povoado chamado Cuchitambo, no Equador. Tem como protagonistas o índio Andrés e o proprietário de terras Alfonso Pereira. Andrés é uma figura conhecida entre os índios do campo laboral e os huasipungos, personagem utilizado por Icaza nos principais episódios que envolvem aos indígenas. E do outro lado, Alfonso Pereira é um homem branco e patrão dos índios do povoado.

O personagem Alfonso Pereira vive um dilema pois precisa manter-se a si mesmo e a sua família, além disso, sofre com a cobrança das dívidas que contraiu dos impostos fiscais. No entanto, ainda que estas dividas sejam motivo de preocupação para Alfonso, há uma outra ainda maior que mudará a sua vida. Seu tio Julio Pereira, um homem poderoso que tem dinheiro à receber de Alfonso, o faz aceitar viver na selva com a sua família para trabalhar na extração de madeira. As tarefas designadas por Julio são de caráter capitalista, ligadas ao interesse do personagem Mr. Chapy, um estadunidense dono de uma reconhecida empresa de extração de madeira. Os objetivos do trabalho são a abertura de uma estrada que dê acesso ao povoado, a compra dos bosques vizinhos e a limpeza dos huasipungos das margens do rio.

Quando Alfonso chega à sua nova morada e começa a trabalhar nos objetivos que lhe foram ordenados, têm uma boa relação com os indíos que já viviam ali. Realizando ao seu ofício ao lado de sua família não lhe incomoda e eventualmente presenteia aos nativos com aguardente e galos de rinha para recreação, além de uma ajuda todo o fim de ano que é paga com milho ou dinheiro. No entanto, quando se ve pressionado pelos prazos de entrega da obra e sua família resolve voltar para a capital, Alfonso começa a impor regimes de trabalho mais severos que custam a vida dos índios.

O domínio espiritual é uma das armas usadas pelo terratenente. A igreja auxilia no processo de amenização da condição de revolta que começa a surgir nos índios devido às suas péssimas condições de trabalho e a frequente perda de familiares no campo de trabalho. O arcebispo que ali vivia nunca deixava de abençoar aos índios e lhe fazer promessas atribuídas pela providência, que traria a redenção pelo trabalho.

A gota d’água para os indígenas aconteceu com uma nova decisão de Alfonso, sedento de mais lucros. Ao fim do ano, ao invés de pagar o milho prometido aos nativos, ele decide comercializá-lo com um povoado vizinho e com isso instaura o caos em Cuchitambo. Com a alimentação mais escassa a cada dia, os índios começam a roubar uns aos outros e ao próprio patrão, que reage a tudo com violentas repressões. Apesar das condições desumanas de sobrevivência, a fé e o medo asseguram os índios no trabalho, que foi concluído em pouco tempo após as revoltas. Uma vez pronto o trabalho dos índios, Mr. Chapy leva ao povoado todo o maquinário necessário para a extração e manipulação da madeira, que foi muito bem recebido pelo povoado de Cuchitambo – era o progresso chegando aos indígenas – que aclamou os estrangeiros desde a entrada de seus huasipungos.

O que não esperavam os pobres da região, era que a primeira ordem do patrão estadunidense seria a remoção das vivendas dos indígenas para que se pudessem estabelecer novas casas aos ricos. A ordem desagradou profundamente aos índios que, capitaneados por Andrés, levantam-se contra os patrões. O primeiro confronto é vencido pelos índios que assassinam a um grupo de capangas de Alfonso, mas o terratenente ordena à militares para que terminem com a rebelião e, por fim, os índios (que os combatiam desarmados) acabam por ser todos mortos.

O final trágico da trama traduz o contexto de banalização da mão-de-obra nativa. Por outro lado, a atenção que Icaza atribui aos costumes indígenas em sua narrativa (a medicina, os rituais, as crenças, as festividades e etc.) são de grande estima. Vale ressaltar que no ano em que a obra é escrita – 1934 – o autor referia-se a uma real conjuntura econômica para além da ficção; a importância do investimento de capital estrangeiro na América do Sul também é resultado do interesse no petróleo que ali havia (que não passou despercebido por Icaza na trama). Portanto, a obra revela-se um verdadeiro clássico no que traduz em inícios do século XX uma realidade que ainda assola os povos latino-americanos. Além disso, põe em xeque o currículo educacional firmado na convicção de que a escravidão é um passado distante, quando, na verdade, faz parte de um sistema complexo de produção imperialista, hoje travestido de outros mecanismos que resultam na mesma velha exploração, pois, nas palavras de Eduardo Galeano, a América Latina

“Continúa existiendo al servicio de las necesidades ajenas, como fuente y reserva del petróleo y el hierro, el cobre y la carne, las frutas y el café, mas materias primas y los alimentos con destino a los paises ricos que ganan, consumiéndolos, mucho más de lo que América Latina gana produciéndolos.” (GALEANO, 2010)

Bibliografia:

GALEANO, Eduardo. Las Venas Abiertas de América Latina. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2010.

ICAZA, Jorge. Huasipungo. Caracas, Venezuela: Fundación Imprenta del Ministerio de la Cultura, 2006.

NETO, José Alves de Freitas. Bartolomé de Las Casas: a narrativa trágica, o amor cristão e a memória americana. São Paulo, SP: Annablume, 2003.

VÁZQUEZ, M.A., La Exploración del Mundo Indigena: Jorge Icaza. In: Revista Ómnibus, nº 10, año II, julio, 2006.

Imagem: Óleo de Luis Wallpher.

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