Tateando as coisas que posso te contar

Por Luciane Recieri, para Desacato.info.

Ando tateando as coisas que posso te contar, pois ultimamente não ocorrem coisas da estatura de se contar a quem conta poesia como lê notícia de jornal. Nossa roseira floresceu, mas floresceu tanto que pareceria exagero te contar do tanto que foi. Noutras, foram coisas tristes: um amigo que morreu e despediu só de mim ao deixar a sala de aula numa quarta dessas, daí fiquei presa na comunicação secreta da morte: – Lu, você sabe que vou morrer? Ele me disse se despedindo só com o beijo de longe. Era um sábado o dia definitivo dele e, apesar dos sábados, fui devolver o beijo de longe. Ele estava envolto numa bandeira com estrela e um ar de santo barroco espanhol. Disse-lhe na linguagem entre vivos e mortos ou entre mortos e mortos, aquela que fala da esperança num futuro, num céu que prometi fundar com todas as forças se não existir.

Depois, almocei num boteco, coisa que nunca fiz depois de velório. Digo comer. Nunca mais comia quando morria alguém. Depois de quase morrer, voltava a viver do jeito que dava. Mas, falando em esperança, conto que tenho andado muito por aí, muito de ônibus, de modo que já durmo segurando no cano. Numa noite dessa, um moço, coisa rara, se ofereceu pra segurar minhas tralhas. Adiantei que estava pesada a sacola e ele continuou com a mesma franqueza no sorriso e estendeu as mãos. Então, leve do jeito que fiquei, dormi. Nada havia na minha frente além da saída de emergência, descrita em três idiomas. Sorri por dentro, porque nos guichês, os vendedores de bilhetes me perguntam “qual poltrona?”, digo qualquer uma e me dão a 13 ou, nos aviões, a saída de emergência, melhor lugar! Dá pra esticar as pernas, mas não descanso: é como quando colocam um bebê em seu colo pela primeira vez – endurece o corpo e só os olhos viajam sobre a beleza do que nos confiam -, mas disse que dormi. Era só um quadrado preto quando dormi. Acordei com uma turbulência asfáltica e me deparei com uma esperança! Ela ali, atada às palavras “só rompa o lacre em caso de acidente”. Olhei pra todo mundo, como quem diz “uma esperança!”. Ninguém parecia ter notado, salvo eu e achei bom. Pessoas não sabem o que é esperança e poderiam matá-la. Fiquei atenta. Não dormi mais. Lugares vagaram. Pessoas me olharam como a dizer – pegue a sua sacola pesadíssima, deixe o colo do moço descansar – fiz que não entendi. Precisava proteger toda a esperança, rara, escassa, frágil. A pressão foi tanta uma hora, que me sentei ao lado de um moço. Sentei na beirada como se senta em sofás formais. Logo vagou o banco de trás onde a esperança equilibrava. Sentei-me perto. Cada um que entrava ou saía, acompanhava. Sempre tem um macho muito macho a matar insetos pra impressionar a covardia de alguém e eu pronta a defender com a minha vida a esperança. Chegou a estação de trem, o lugar em que todos descem, o lugar em que desço, não poderia. Tinha que ficar a sós com ela. Sobrou ainda um moço no ônibus. Ele estava absorto ao telefone; eu com um bornalzinho esperando a hora que o ônibus parasse definitivamente na gare, mas, num sinal vermelho mais demorado, consegui capturar todo aquele verde claro que é a sua cor. Ela, medrosa, agarrou-se ao pano. Disse-lhe, na linguagem secreta dos desesperançados que, por mim, ela sempre valeria muito mais que pesa. Caminhei até o tronco de um jerivá e assoprei a esperança por ali. Ela tateou o tronco. Sentiu-se à vontade em algo vivo e que pulsa, olhou pra trás e me sorriu. Continuou subindo. Chorei um pouco e caminhei pra estação. No trem, por falta do que fazer, desenhei sua arquitetura frágil. Eu queria contar pra vocês. Não parece, mas foi tão bonito…

 

Luciane Recieri é cientista social, de Jacareí, SP.

 

 

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