Suicídios de Quiroga

Por Iuri Müller.

O escritor uruguaio Horacio Quiroga tinha exatos quarenta anos quando, em 1918, escreveu o que para alguns críticos foi o primeiro conto de futebol do continente. O relato intitulado Juan Poltihalf-back foi publicado pela Revista Atlántida, de Buenos Aires, onde o contista já vivia, em maio daquele ano. O Juan Polti de Quiroga era um garoto que, depois de impressionar o público uruguaio nas suas atuações por clubes desconhecidos, de quinta categoria, foi parar no Nacional de Montevidéu – um sonho dos mais inalcançáveis no período em que o futebol oriental era possivelmente o melhor do mundo, como avisa o narrador: “chegar da portaria de um tribunal a um ministério é coisa que, razoavelmente, pode tontear; mas dormir forward de um clube desconhecido e acordar half-back do Nacional beira o delírio.”

Horacio Quiroga (1879 – 1937), extraordinário contista, esteve fadado a tragédias durante toda a vida.

Juan Polti destacava-se na linha média do tricolor de Montevidéu por uma característica que, mesmo no rico plantel do Nacional, parecia rara: “suas cabeçadas eram tão eficazes quanto os chutes de todo o time. Tinha três pés: era essa a sua vantagem”. Polti encontrou a glória cedo demais no futebol, e admitia que não saberia como viver sem o desempenho que o levara à idolatraria, ainda na juventude: “no dia em que não estiver mais em forma, me dou um tiro”. Mas mesmo nos torneios de quase um século atrás, e no país em que um par de times passa por cima de todos os demais há décadas, alguns fenômenos universais se repetem; os ciclos futebolísticos destroem jogadores e alavancam outros, até então desconhecidos.

Com o personagem de Horacio Quiroga, não foi diferente. Polti talvez tenha demorado a notar, mas chegou o instante em que “a bola partiu muito para a direita, ou muito para a esquerda; ou alto demais, ou ia com efeito demais. Coisas que não enganavam ninguém quanto à decadência do grande half-back.” Percebeu definitivamente, e não sem espanto, quando a direção do Nacional decidiu que ele sairia da equipe principal. Juan Polti, enfim um suplente, assim mesmo tocou a vida adiante. Certo dia, decidiu ir à casa da família de sua noiva e convencer a todos de que, sim, ele seria um bom marido. Na mesma noite, marcou a data do casamento e contou a boa nova a vários dos companheiros de clube. O half-back se despediu dizendo que pegaria o bonde para o bairro de La Unión, e se foi. Mas a noite teve decisões e disparos imprevisíveis.

O jogador, desesperado pela glória esvaziada, suicidou-se naquela madrugada, no centro do gramado. Com ele, foi encontrado um papel, solto na já frouxa mão esquerda. Nele, se lia: “Querido doutor e presidente: confio-lhe minha velha e minha noiva. O senhor sabe, meu querido doutor, porque faço isto. Viva o Clube Nacional!”; além dos versos: “Que esteja sempre adiante / O clube dos meus anseios / Dou meu sangue por todos os companheiros / Agora e sempre o clube gigante / Viva o Clube Nacional!”. O conto se fecha com a recordação do parágrafo que o abriu: “quando um garoto chega, por a ou por b, e sem preparo prévio, a provar dessa forte bebida que é a glória, perde inevitavelmente a cabeça. Trata-se de um paraíso artificial demais para o seu jovem coração. Às vezes perde algo mais, que depois se encontra na lista de disfunções”.

***

Juan Polti, half-back poderia ser o resultado de uma das vezes em que a tragédia da vida de Quiroga transbordou para a literatura. Porque não foram poucos os acidentes, as enfermidades súbitas e os suicídios que encontraram o caminho do escritor. Horacio não havia completado o seu terceiro ano de vida quando perdeu o pai, morto por um disparo acidental da própria arma durante uma caçada. No primeiro ano do novo século, ocasião em que comemorava o lançamento do primeiro livro (Los arrecifes de coral), viu dois dos seus irmãos falecerem, vítimas da febre tifoide. Ainda em 1901, acabou causando a morte de um de seus melhores amigos – Quiroga arrumava a arma de Federico Ferrando para um duelo no instante em que, outra vez por acidente, uma bala acertou a boca do rapaz. Aos infortúnios, somam-se os suicídios do padrasto e da primeira esposa; todos os fatos, antes de 1918.

Mas a verdade é que Quiroga relatou os passos desgraçados de Juan Polti duas semanas depois que uma tragédia real enlutou Montevidéu, e na qual o contista se espelhou. Não se chamava Juan Polti, mas sim Abdón Porte o jovem que deixou Durazno, no interior do país, para cair, quase que de súbito, nas fileiras titulares do Club Nacional de Fútbol. Abdón defendeu a camiseta de número cinco da equipe por sete anos indiscutíveis, em que, de fato, flertou com a glória. Assim como realmente estava de casamento marcado, justamente para o dia três de março que Quiroga apresenta no conto. A despedida dos colegas e a justificativa de que estava no horário de pegar o bonde para La Unión também consta na versão histórica – que, por fim, não nega que o motivo para o suicídio tenha sido a desilusão futebolística no clube da sua vida.

Abdón Porte (1893 – 1918) atuou mais de duzentas vezes com a camiseta do Nacional de Montevidéu.

Como no conto de Horacio Quiroga, Abdón Porte teria mesmo deixado uma carta na mão esquerda, a que não segurava o revólver, e seriam três os recados. O primeiro, dirigido ao presidente do Nacional na época, o poeta José María Delgado: “Querido Doutor José Maria Delgado. Peço que você e os demais companheiros façam por mim como eu fiz para vocês; façam por minha família e pela minha querida mãe. Adeus, querido amigo da vida”. O segundo, em versos, era uma evidente declaração de amor: “Nacional, mesmo que em pó convertido / e em pó sempre amante / não esquecerei por um instante / o muito que tenho querido / Adeus para sempre.” O terceiro era um pedido – queria ser enterrado no Cemitério de La Teja, ao lado de Bolívar e Carlos Céspedes, dois dos mais destacados nomes da história do Nacional.

O Nacional seguiu sem Abdón Porte, o retrato mais trágico de uma devoção. Hoje, Abdón e o presidente na época do ocorrido, o já mencionado Delgado, emprestam os seus nomes a duas das tribunas do Gran Parque Central, o estádio do clube. Quando o tricolor atua no seu campo, é comum ver uma faixa nas arquibancadas que evoca a memória do meio-campista com a mensagem “por la sangre de Abdón”. Horacio Quiroga viveu dezenove anos a mais que Abdón Porte. Diagnosticado com câncer e abandonado por parte da família, também buscou o suicídio. Mas não optou pelas armas de fogo, que haviam determinado a morte de parte dos seus familiares e personagens. Decidiu-se pelo cianureto e, após um trago fatal, deixou a vida no Hospital de Clínicas de Buenos Aires.

 Nos finais de semana, a torcida do Nacional colore o Gran Parque Central e recorda a morte de Abdón Porte.

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