Sueli Carneiro: filósofa, educadora e porta-voz de uma geração

Foto: Marcus Steinmayer

Por Beatriz Mazzei.

Sueli Carneiro é uma das personalidades que tem muito a nos dizer sobre a vivência da mulher negra brasileira e como o feminismo antirracista do Brasil pode contribuir para as lutas feministas do mundo inteiro.

Ganhadora do Prêmio Itaú Cultural em 2017 como uma das 10 pessoas ou coletivos que atuaram significativamente na vida cultural e social do país, Sueli Carneiro é reconhecida no campo da militância de raça e gênero.

Nascida em 1950 e criada na Zona Norte de São Paulo, entre a Lapa, Vila Bonilha e Pirituba, Sueli é a mais velha de sete filhos de uma costureira e um ferroviário. Quando criança foi alertada por seus pais sobre o racismo que viria a sentir quando entrou na escola, onde costuma ser o primeiro espaço em que as pessoas negras sentem o racismo de forma mais explícita e estruturada. Foi ali, pequena, que começou a entender o que depois veio a postular sobre o racismo brasileiro: ele é o mais perverso do mundo.

Desde então, Sueli passou de uma criança negra que precisava entender porque o mundo era dividido em cores e oportunidades para uma mulher negra consciente e politizada, que têm a militância antirracista como um propósito de vida.

Carreira

Foi a partir desse propósito que Sueli tornou-se filósofa, doutora em educação pela Universidade de São Paulo (USP), escritora e ativista do Movimento Feminista e do Movimento Negro do Brasil. Além de autora de artigos sobre gênero, raça e direitos humanos em publicações nacionais e internacionais, Sueli abraçou o propósito das cotas raciais nas universidades brasileiras e defendeu sua constitucionalidade em audiência pública que o Supremo Tribunal Federal (STF) realizou em 2010, sendo uma peça fundamental no processo de defesa da medida.

Buscando dar conta da questão ‘ser mulher negra no Brasil’, uma das contribuições mais expressivas da carreira de Sueli está na fundação do Geledés – Instituto da Mulher Negra em 1988, momento em que as pautas feministas eram vistas majoritariamente pela ótica das mulheres brancas, sem espaço para o contexto negro.

O nome Geledés foi escolhido justamente para dar força e demarcar raízes: Geledé é uma sociedade secreta feminina de caráter religioso existente nas sociedades tradicionais iorubás. Ela expressa o poder feminino sobre a fertilidade da terra, sendo uma forma de culto ao poder feminino.

“Eu sempre disse que, inspirada nas nossas matrizes religiosas, nós (mulheres negras) somos filhas de deusas que permanecem vivas no imaginário popular”, diz Sueli em entrevista à revista CULT.

Entre as razões que levaram Sueli a fundar o Geledés está a injustiça a qual as pessoas negras são submetidas na sociedade racista, principalmente as mulheres negras, que são a síntese de duas opressões: de raça e gênero.

Mobilizada pela injustiça e a indignação, a vida de Sueli foi marcada pelo desejo de mudar uma realidade brasileira, onde “a história é sempre escrita pelos vencedores, sendo masculina e branca”, conforme diz a filósofa.

O legado para as novas gerações

Mesmo com tantos feitos e atuações, Sueli é uma mulher discreta, que hoje em dia dá poucas entrevistas e não gosta muito de aparecer na mídia. Diz que todo seu pensamento formulado já está escrito e, com modéstia, conta que não sabe se sua geração ainda tem como contribuir nesse momento, mas que a nova leva de mulheres negras está dando conta do recado.

No momento atual, a filósofa que já foi uma criança negra sofrendo racismo na escola, hoje tem a oportunidade de ver sua filha Luanda seguindo os passos da mãe na filosofia e nos discursos de igualdade. Quando fala sobre Luanda, Sueli sempre relata o dia em que o pai foi registrá-la. O pai, branco, levou a filha ao cartório, preencheu o registro, e no campo destinado à cor, viu que escrivão a declarou como branca. Tentando corrigi-lo, o pai explicou que a mãe de Luanda era negra, então o escrivão se desculpou e de prontidão corrigiu o dado, marcando outra cor: parda. O pai insistiu em dizer que a menina é negra, e o escrivão retrucou “Mas ela não puxou nem um pouquinho ao senhor?”.

Segundo Sueli, esse episódio marca a ideia da superioridade branca, onde é melhor e mais aceitável ser branco, onde o sistema faz o possível para embranquecer os negros e dificultam seus processos de autodeclaração, desqualificando a identidade dos negros de pele clara.

Para que essa e outras realidades mudem, a mãe de Luanda, filósofa e ativista, sabe a importância da continuidade dos movimentos feministas e antirracistas, e é por isso que humildemente aproveita todas as oportunidades que têm para agradecer às mulheres que estão bebendo em sua fonte de conhecimento.

“Obrigada por aceitar esse bastão, por assumir a responsabilidade histórica de continuar essa luta, por reconhecer as que lutaram antes e nos manter com vocês nas lutas futuras”, diz Sueli em vídeo produzido pelo Itaú.

Ao falar dessas mulheres que se posicionam na linha de largada, prontas para segurar seu bastão e continuar à maratona, Sueli cita diversos nomes em entrevista dada à revista Cult em maio de 2017, entre elas Larissa Santiago, coordenadora do Blogueiras Negras.

Para Larissa, a Sueli é uma “referência bibliográfica andante”, cuja teoria é de suma importância para a construção da prática feminista. Sobre o fato de ser sido referenciada por Sueli, Larissa conta que além da vaidade que isso acaba gerando, a sensação que se fortalece é a de responsabilidade.

“Significa que ela deposita a confiança de uma construção política nova e inteira, uma construção que tem o legado das mulheres que nos antecederam”, diz.

Sueli se alegra ao falar da nova geração de mulheres negras, dizendo que por conta delas a cena ficou muito bonita e colorida: “Nós estamos aqui. A elite intelectual desse país, no começo do século 20, só tinha uma preocupação: quanto tempo levaria para a mancha negra ser extinta. Nós somos sobreviventes. Vivemos e viveremos”, sentencia a filha de deusas africanas.

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