Sputnik

Foto: Pexels

Por Luciane Recieri, para Desacato.info.

Eu não sei. Eu não sei escrever pro vazio. Preciso conversar muito comigo antes de escrever e ando muito calada. Preciso conversar comigo sem me enganar ou com alguém que entenda o sentido confuso das minhas palavras que vão e vêm e se soltam em muitas direções.

Estamos vivendo um tempo de muita solidão e sabemos disso, só que não alcançamos o outro ou não queremos ouvir o ruído do outro. Ouço o ruído dos satélites, das antenas – das formigas -, hoje, do meu corpo que range feito embarcação, feito casa de madeira, feito árvore mesmo, apertada na lata, querendo o chão.

Tudo que eu sentir vontade de dizer, vou desenhar e é por essas que resolvi apresentar um projeto pra criançada. Passei no sebo e comprei meia dúzia de revistinhas e, apesar de estar com asco do Maurício de Sousa, essas eram as mais em conta e saí de lá com o Maurício de Sousa, mas não vou deixar barato. Se as crianças deixarem eu contar, vou contar que o Maurício fez uma revistinha exaltando o militarismo nas últimas eleições. Sei lá se é uma boa ideia nesses tempos, porque as crianças da minha escola pensam que a ditadura militar não existiu ou só apanhou quem mereceu. Viu? Estou conversando comigo. É o que tenho dito pra mim há meses: em que canto foi que a gente se perdeu? Quando minha professora Yara dizia “cuidado com os comunistas”, achava ridículo… Isso lá em 1985… Que comunistas, professora? Mas não podia questionar e cresci achando bonito ser comunista porque, pra mim, era o contrário de todo aquele lixo que foi o período militar.

Todos os dias passo em frente à casa em que ela viveu até fevereiro passado e penso em seu fantasma gordo usando óculos a la Pinochet e agora sabendo que sua aluna mais querida era “comunista”. É, dona Yara, a senhora não me convenceu de que o “regime” matou pouco. Cresci sendo uma “porra louca” que pretende mesmo é trabalhar em muitas ocupações por esse Brasil.

Viu? Já saí do foco que era estar calada comigo e minha proposta de projeto com as crianças do sexto ano. Nem pedi licença, peguei um texto de uma escritora aqui de São Paulo, a Zi Nunes. Ela ainda não sabe que é escritora nem que seu personagem está rodando a escola, mas puxa! Como ela é grande! Então… Ela fala muito sozinha e às vezes, fala sozinha comigo quando nos esbarramos no caminho virtual e, como operárias, tocamos nas antenas uma da outra.

Zi me disse do cachorro Sputnik que sua vó socorreu lá em 1957. Ele teve a barriga aberta por um atropelamento de carroça. A vó, com todo carinho e rudeza, costurou Sputnik como quem costura um bicho de pelúcia e ele viveu

18 anos com ela ou o resto que ele tinha de anos, nem ele não lembrava. Trazia os tios “bêbo” que não sabia voltar pra casa. Cachorro bom foi ele e a Zi, retoricamente, questiona Deus, o que rendeu uma discussão brava na sala, porque lá todo mundo é obrigado a crer em Deus e no WhatsApp  e não crer nos sapos, na água do rio, na professora que ganha doze pilas por aula, na vó que não vai poder se aposentar, nos livros, no regime que matou e deu cabo de muita gente.

Sei dizer que quando a gente consegue causar esse alvoroço na criançada, a vida vale mais que um prato feito de treze contos quando se está com muita fome e o PF vira um banquete de deuses.

Disse deuses um dia desses…

– Tem mais de um, professora?

Muitas novidades para os pequenos.

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Luciane Recieri é cientista social e escritora, em Jacareí /SP

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