Sobre o sono, a máquina capitalista e os vizinhos

Por Maria Bitarello.

Give a man a reputation as an early riser
and he can sleep ’til noon.”

(“Um homem com a reputação de cedo madrugar
pode dormir até o meio-dia”)
(Mark Twain)

Dizem que se você não tem um vizinho chato, o vizinho chato é você. E eu não quero ser a vizinha chata, mas essa é a enésima vez que ouço esse barulho no teto. Como se tivesse uma moeda ou bolinha rolando no chão. Sempre de manhã. Será que é um cachorro ou um gato brincando com uma bola de gude?, o pensamento me ocorre quando sou acordada, logo depois da impaciência se instalar. Mas aí para. E eu volto a dormir. Deixo pra lá. Hoje, no entanto, resolvi agir. São 8h44 quando chamo na portaria do prédio; há 400 apartamentos aqui e um clima de apart hotel. Ninguém se conhece. A Tatiane disse que iria mandar alguém lá pra ver o que era. Deito novamente, e o barulho para. Sinto um alívio que começa a virar sonho. Delírio.

Mas dura pouco. Outros ruídos surgem, muito piores. Passos fortes pra lá e pra cá. Depois um móvel sendo arrastado. De novo os passos. Saltos, quem sabe. O vizinho ficou puto e resolveu se vingar, penso comigo. Um som de coisas sendo despejadas anuncia o que estava mesmo por vir: uma maleta de ferramentas foi aberta, ouço-as cair. E logo, na sequência, o que parecem ser marteladas no chão, vulgo meu teto. É, o cara tá puto mesmo. Imagino um cara bufando, suado, empenhado em me atormentar. Pondero, de olhos fechados, como será meu futuro nesse prédio, com um maníaco morando logo acima. Será que me mudo?

Começo a ensaiar, mentalmente, uma subida ao nono andar pra convidar o tal vizinho pra um café com pão-de-queijo, pra amolecer sua ira com mineiridade. Mas não agora. Ele pode arremessar o martelo em mim. Melhor depois, quando se acalmar. TUM TUM TUM TUM TUM. Não há calma a julgar por seu ritmo e constância. Os sons ficam cada vez mais altos. Estou tão exausta que mal consigo me mover, mas pego meu celular, ergo o braço em direção ao teto e gravo a sinfonia de porradas. Preciso de provas contra o alucinado do martelo. Será que toco lá direto, na campainha, ou chamo pelo interfone?

Começo a pensar também na minha fala enquanto o mau humor se multiplica. Oi, então, sou sua vizinha de baixo. É, eu sei que não tá tão cedo. É verdade, hora de estar de pé, operante e trabalhando. É que eu trabalho até de noitão, sabe, e eu durmo tarde. Não acordo cedo. Escrevo, trabalho no teatro. Ontem fui dormir depois das 4h. Mas não te acordei, né? Cada um tem seu ritmo. Imagino que você durma cedo. Escuta, queria te dizer que esse barulho no chão, não sei o que é, me acorda. Vamos ser amigos, por favor?

Essa conversa ingênua e fantasiosa, ainda bem, só aconteceu na minha imaginação perturbada pela privação de sono. Desesperançada com a humanidade, levanto mais uma vez e retorno a chamada à portaria pra alertar a Tatiane de que, caso eu não aparecesse hoje, era porque o vizinho de cima tinha me picotado com o martelo cego dele. Ela interrompeu meu lamento… A gente foi lá ver o que era, mas o apartamento de cima está desocupado. O que você tá ouvindo agora é a instalação do piso, que começou hoje. Estão reformando. Mas mais cedo não tinha ninguém.

Agradeci e desliguei, estupefata. Ninguém? Há cinco meses lapido essa narrativa da bolinha de gude; não podia acreditar nos fatos. De pijama e chinelos, subi lá e bati na porta. Do outro lado, dois pedreiros me olharam sem expressão. O apartamento não tinha pia, nem piso, nem nada. Completamente vazio. E eles, marreta na mão, arrancavam lascas do concreto onde instalariam o piso. Eram os marreteiros de Javé, pra roubar a expressão do Antonio Prata. Mas e a bolinha de gude?, perguntei com olhos aflitos e submersos em olheiras. Tem bolinha aqui não, moça.

Derrotada, voltei pra preparar um café e questionar minha sanidade. Começo a escrever essas linhas ainda nesse torpor de insônia, desorientação sonora e potencial mal-assombramento. Mas quem se apiedará de mim? Dizem que deus ajuda quem cedo madruga. E não só deus, todo mundo. Enquanto isso, nós, que operamos fora do horário comercial, somos desdenhados pelos céus e pela máquina capitalista cotidiana. Não somos bons cristãos, nem consumidores. Não é de se espantar, portanto, que a noite seja preferida pelos artistas. Afinal, ninguém te importuna essa hora. Não tem obra no andar de cima, ligação da NET, compras a serem feitas.

Segundo uma pesquisa sobre os hábitos de sono dos escritores, os madrugadores ganham mais prêmios e os vespertinos produzem mais. Mas em ambos os casos, repare, a preferência é pelas ditas horas mortas – quem não dorme tarde, acorda cedíssimo. A madrugada tem algo de mágico. É terra fértil. Uma suspensão no tempo, entre ontem e amanhã, um misto de sono com vigília, uma coragem pra se empapar no inconsciente. De dia é muito mais difícil ficar à mercê da criação, pois há muito o que fazer – dizem. Mas não às duas da manhã. Não às quatro. Não há muito o que fazer nem com que se distrair. Daqui da minha janela, vejo muitas outras janelas. À noite, elas vão se apagando à medida que as horas avançam. Uma ou outra fica acesa. Pisca. São meus amigos, vagalumes urbanos.

Acho quase inacreditável e, às vezes, até invejável que haja pessoas que se sintam descansadas com 6 horas de sono, que não se importem em ser acordadas, que durmam tarde e acordem cedo. Eu não sou uma delas. Dormir é um dos maiores prazeres da vida, pra mim. Na dúvida entre comer e dormir, durmo sem pestanejar, literalmente. O sono zera meu dia, sana minha vida, cura minha alma. E a falta dele é o que mais me tira do sério. Preciso de muitas horas de repouso pra me sentir renovada. Lutar contra minha natureza só me traz desamor, desespero, mau humor, espinhas, gripes, dores inexplicáveis e uma incapacidade cognitiva de altíssimo grau. E de que adianta? Depois passo o dia tentando acordar e a noite tentando aquietar.

Amanhã, aleluia, é sábado e não tem obra. Dormirei até tarde. E essa noite, admito, sinto um certo alívio em saber que não tenho um vizinho chato no andar de cima. Mas, sim, uma bola de gude mal-assombrada.

Fonte: Outras Palavras. 

Foto de Capa:  Imagem: Alexei Jawlensky, Mulher Adormecida (1910).

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