Sobre o protesto em Blumenau, 20/06/13

Por Martin Kreuz.

Não consegui participar do protesto ocorrido em Blumenau desde seu início. As impressões que me ficaram do evento, por isso, são ainda mais parciais do que as impressões de tais movimentos, sempre parciais. Não acompanhei a concentração na Prefeitura, o momento em que as pessoas aos poucos vão se reunindo, o que abre a possibilidade de ler os muitos cartazes já prontos e os ainda em confecção. Só me juntei ao mar de gente por volta das 19h30, na esquina da Rua Floriano Peixoto com a Avenida Presidente Castelo Branco. Àquela altura, os manifestantes já tinham saído da Prefeitura, percorrido a Rua Sete de Setembro, protestado defronte a Câmara de Vereadores e estavam a retornar à Prefeitura. E talvez o fato de encontrá-los na avenida que leva o nome de um ditador não seja só uma coincidência.

Juntei-me à passeata e comecei a analisar as pessoas, os cartazes. Muitos enrolados em bandeiras brasileiras, com narizes de palhaços. Nos cartazes, dizeres genéricos contra a corrupção, o PT, a Dilma e o Lula. Na hora, exclamei em voz alta “Isso aqui está muito Cansei”. Procurei cartazes contra os nossos vereadores cassados que, a despeito de sua condenação, permanecem nos cargos, e não achei. Procurei faixas sobre o Tapete Negro, a maior escândalo político registrado na cidade, e não achei. Procurei cartazes sobre transporte público universal e gratuito, ou o facínora do Feliciano, ou a desmilitarização da polícia, ou a denúncia do latifúndio, do ecocídio e do etnocídio, ou a ampliação de direitos individuais e coletivos… e não os achei. Sei que algumas dessas pautas estavam contempladas na marcha – vi fotos desses cartazes – mas não as enxerguei, ao vivo e a cores. Apenas as queixas de parte da sociedade que, enquanto reclama da corrupção, pensa em formas de sonegar imposto de renda ou escapar das blitz de lei seca. Os mesmos que enxergam a corrupção em apenas um partido – ou então, em todos os políticos. Talvez eu tive azar e vi somente uma parcela dos manifestantes, os alimentados por semanários conservadores.

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Regina Duarte curtiu o #ProtestoBnu (Foto: Jaime Batista)

E o Hino, cantado por jovens e já não tão jovens. O Hino que nos incita a orgulhar-mo-nos de nosso glorioso passado, o dos índios que trucidamos, dos pretos que torturamos, dos pobres que deixamos e fizemos morrer. O Hino que canta sermos melhores que os outros por sermos nascidos no Brasil. Sejamos justos: não é predicado exclusivo nosso – todos os Hinos cantam a mesma, mesmíssima, coisa. Franceses cantavam seu Hino enquanto se dirigiam ao front para matar alemães – ou talvez fossem ao front matar alemães porque cantavam seu Hino. Ingleses cantavam seu Hino enquanto massacravam indianos, chineses, sudaneses. Alemães cantavam seu Hino enquanto conduziam os párias aos fornos. E os blumenauenses cantavam o Hino enquanto desfilavam pela Avenida Castelo Branco, enrolados em bandeiras brasileiras – a mesma bandeira que nos manda à Ordem, e reprime toda divergência. A Ordem que chacina moradores de rua, ambientalistas, sem-terras, sertanejos, os pobres de ontem e hoje. A Ordem do Capital, do Latifúndio, da exclusão social. A Ordem da Barbárie.

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Manifestação patriótica em Blumenau (Não foi ontem – mas bem o pareceu. Foto achada via Google)

Até então, nada imprevisível. A estultice patriótica e o jeito “Cansei” de protestar já estavam anunciados nas redes sociais e em outros protestos Brasil afora. Há alguns dias, perfis no Twitter já criticavam a coxinhização das manifestações. Mas então chegamos novamente à Prefeitura, e a manifestação parou. Alguns jovens, escondidos sob máscaras do Guy Fawkes, subiram na Macuca, ao qual foram ovacionados. Após certo tempo, começaram tímidas vaias a eles. Aos poucos, as vaias se transformaram em berros, ainda indistinguíveis, mas logo cristalizados em uma ordem, cantada por muitos ao som de uma única voz: “Desce do trem” e “Sem violência”. Lenta, muito lentamente, os garotos abandonaram a tal Macuca.

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A Macuca (Foto: Jaime Batista)

E então, uma garota, sozinha, subiu no teto da locomotiva. Não a conhecia: para mim, era apenas uma garota, com calça jeans cinza e camisa cinza. A Garota-de-cinza, como a apelidei, não só subiu na Macuca, mas começou a pular em seu teto. E então, o ódio. As vaias se tornaram mais fortes, e a ordem de “Sem violência” gritada em uníssono contra a Garota-de-cinza, que pulava no teto da Macuca, foi substituída por um coro, repetida e repetidas vezes entoado, de “Desce, vagabunda”. Também ouvi vários “filha da puta”. Mas não foram só palavras as armas usadas contra ela – vi vários manifestantes, enrolados em bandeiras brasileiras ou com as faces pintadas de verde-amarelo, jogarem lixo contra ela: garrafas pets, latinhas de cerveja… Os mesmos que, instantes antes, gritavam “Sem violência” aos seus pulos.

O que acontecera naqueles poucos minutos, entre a ovação aos mascarados e os xingamentos à Garota-de-cinza? Certamente não foi a percepção de um risco à integridade da Macuca. Afinal, qual o dano que aquele corpo de 50, 60 quilos, poderia causar ao ferro da locomotiva? Ouvi de uma garota que passava por mim um trecho da conversa mantida com quem lhe acompanhava: “Mas é só um trem!”. Não, naquele momento, a Macuca deixou de ser uma mera locomotiva, posta diante da Prefeitura. Naquele momento, o dano possível era de outra ordem, simbólica: os blumenauenses perceberam que a Macuca era um monumento, uma narrativa sobre o progresso, a civilização, a riqueza. E a essa narrativa era preciso proteger da profanação manifesta pelos pulos da Garota-de-cinza. Seus pulos berravam “Abaixo o progresso, que matou e mata em seu nome”, “Abaixo a civilização, que trucidou e trucida os indígenas no Vale”, “Abaixo o capitalismo, que produz pobreza para gerar riqueza”. A Garota-de-cinza era, naquele momento, o Messias que vem para redimir o passado de que nos falara Benjamin, o Messias que vem para despertar as centelhas de esperança do passado. Sua profanação significava, naquele momento, um estado de exceção àquele estado de exceção permanente convertido em ordem. Mas os blumenauenses que marcharam pela Avenida Presidente Castelo Branco, marcharam pelo Progresso e pela Ordem. E essa Ordem era preciso proteger dos pulos que gritavam aos ouvidos dos manifestantes. A ousadia e a coragem da Garota-de-cinza, que desnudara o rio de merda no qual nos banhamos dioturnamente, precisavam ser caladas. E calaram, a vaias, xingamentos e lixo arremessado. Como o pintor de paredes que tapou buracos, falhas e fendas com um balde de tinta, os manifestantes salvaram o monumento. Talvez somente até a próxima chuva, mas o salvaram. A Garota-de-cinza, sozinha, desfraldara o retrato que esconde nossa sujeira, nossa avareza e tirania, que permite assim nos mirarmos no espelho e enxergar apenas a beleza. Mas a sujeira oculta era por demais suja e fétida para a encararmos. E por isso a Garota-de-cinza foi odiada. E por isso a Garota-de-cinza foi silenciada. E a sujeira, novamente encoberta. Encoberta também com o lixo arremessado na direção daquela corajosa.

Ao contrário de outras passeatas e manifestações, que sempre liberaram em mim a satisfação e felicidade, fui para casa tomado por Tânatos. Segui rumo a um ponto de ônibus, pela Rua Sete de Setembro, triste e cabisbaixo como nunca estivera após uma manifestação. Remoía a experiência quando me vi defronte o shopping: blumenauenses ainda enrolados em suas bandeiras nacionais, talvez os mesmos que bradaram anteriormente “Sem violência” e depois liberaram seu ódio, dirigiam-se ao interior daquele estabelecimento; a Ordem estava, novamente, estabelecida e segura.

P.S. 1: será mera coincidência que o dia em que os blumenauenses saíram às ruas para protestar foi também o dia em que manifestações em vários lugares do Brasil registraram atos de fascismo? Relatos aqui, aqui, aqui e aqui.

P.S. 2: talvez “É proibido proibir”, executada, sob vaias, por Caetano no Festival Internacional da Canção de 1968, nunca tenha sido tão atual como nesse pós-20-de-junho. Música e discurso, mais uma vez atuais e urgentes: tocarão, dessa vez, aqueles que vaiam?

 

REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: ______. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985.

BRECHT, Bertolt. Canção do pintor. In: ______. Poemas 1913-1956. São Paulo: Brasiliense, 1987.

COSTA, Viegas Fernandes da. Impressões do Vale. In: ______. De espantalhos e poemas também se faz um poema. Blumenau: Cultura em Movimento, 2008.

WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray. São Paulo: Abril Cultural, 1980

Fonte: http://filosofiadebutequim.wordpress.com/2013/06/21/sobre-o-protesto-em-blumenau-200613/

1 COMENTÁRIO

  1. Bem, eu estava lá e não sou exemplo de manifestante. Principalmente porque posso ser considerado “conservador” e de “direita”, mas estava lá e o que a “Garota-de-cinza” e seus pulos berravam não eram e nem foram o que diz o texto. Era simples vandalismo, era simples “quero aparecer”, “quero causar”. Qualquer um no meio da manifestação, se tivesse um motivo comum a alguns poucos, poderia criar um grito, chamar a atenção e se fazer ouvido, reunir ao redor de si um grupo e liderar para o que quisesse. Era um multidão com motivos diversos e com um único ponto em comum: “Desejo de mudança”. As coisas não podem permanecer como estão. Transformar a manifestação em um movimento de “esquerda” ou de “direita” é diminuir a força, a abrangência, a intensidade e as possibilidades do protesto. A esquerda não vai consertar as coisas e a direita não vai melhorá-las. Nós, povo brasileiro, vamos mudá-las, se continuarmos caminhando juntos.

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