Sirvam-se, por favor. Por Claudia Weinman.

Foto: Claudia Weinman.

Por Claudia Weinman, para Desacato. info.

A máquina parou e fui logo estender a roupa, pensando se deixava fora ou dentro. Hoje tem sol e chuva, não sei bem como proceder. A música cubana toca na casa da frente e algumas vozes ressoantes lembram a vitória importante aqui do país vizinho, com a aprovação no Senado da legalização do aborto na Argentina. Uma conquista política, porém, uma conversa que precisa de muita atenção e diálogo.

Enquanto sinto o tempo, as pessoas no geral, despedem-se de 2020, ao mesmo braço em que tenciono a renovação da rebeldia e atento para um ciclo que não se encerra irrefletidamente.

Vivemos um lapso de tempo que, cortante, copia o vento de inverno deste Sul do Brasil. Lembram daquele frio que nem mesmo a água mais quentinha do chimarrão consegue aquecer o corpo? É essa sensação que sinto neste momento, distante dos que quero tão bem. Percebo que nos mantemos recuados da vida corrente, afetiva, legítima e palpável, com raras exceções para as andanças de urgências que foram inescusáveis.

As mãos estão irritadas para escrever hoje. Teimosas, colocam-se em posição de dizer algumas palavras para seus próximos. Rebenta o peito um sentimento de ensandecer. A gente empenha-se em conversar com essa inquietude e pede silêncio para os seres da casa, pois a dor é uma sensibilidade que a consciência trabalha para nos fazer teimosos e corajosos para os enfrentamentos. É preciso ouvir sem esconder, o que a dor deseja narrar.

Busquei ler outras coisas depois de organizar as roupas que me lembram o caminhar. Então planejei algumas horas com Adeodato e o tal homem que fugiu do inferno* para não esquecer o genocídio do Contestado, que se para o Brasil tem um significado gigante, embora seja recusado, é basicamente uma tarefa dos catarinenses compreenderem a história nascente de muito estupro e rios banhados de sangue caboclo.  Pensei que seria uma leitura, mas transformou-se em intranquilidade. Gritei: que história desgraçada é essa que vivemos?

Então vamos tentar novamente. Deixei baixinho tocar o CD do Ney Matogrosso e a letra me trouxe a “minha vida, meus mortos, meus caminhos tortos, meu Sangue Latino”. Então pensei que não queria mais os seres da casa em silêncio como havia planejado para ouvir com segurança a dor. Não existem caminhos fáceis para quem opta pela vida coletiva. Livros e canções serão sempre mentores de uma estrada custosa.

Eu já estava esquecendo-me de um sentimento que também é dirigente de todo desconforto. Chama-se: esperança. Não deveriam fazer uso dessa palavra para preencher os murais da meia noite bem no local onde derrubam bebidas e reduzem sua importância. Esperança significa nossos andares na direção vívida da diversidade, nos caminhos de abraços que não se prendem a uma noite em comum. Deveríamos nós, estabelecer a aplicação da esperança como alimento da consciência. Uma consciência política, ardente, amorosa, comprometida, envolvida, que abraça sem medo, que dorme e desperta vigilante.

A única certeza que tenho é que chegará uma noite escura e longa, para aos que cedo forem se deitar. Preciso deixar nosso carinho, em palavras de bem-querer para quem, ao recebê-las, lembre-se que ali, logo adiante, a gente vai se encontrar para as grandes lutas. Por enquanto, vamos acariciando essa saudade sem-vergonha, para que ela também desperte a esperança dessa vida em resistência. Estamos com dificuldade de descansar, então resolvemos convocar as palavras para esses minutos de leitura, entregando a cada uma e cada um, essa porção de carícia. Sirvam-se, por favor.

Eu vou chorar um pouquinho, pois me custa a hipocrisia desses tempos. Se em 2020 acusadas fomos de antifascismo, me preocupa o que reserva 2021.

 

*Livro escrito pelo professor Nilson Cesar Fraga – Adeodato – o homem que fugiu do inferno.

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Claudia Weinman é jornalista, vice-presidenta da Cooperativa Comunicacional Sul. Militante do coletivo da Pastoral da Juventude do Meio Popular (PJMP) e Pastoral da Juventude Rural (PJR).

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