Sindemia, Fascista, Genocídio, Branquitude e Homem Feminista. 5 Conceitos para começar o ano (pelo menos) pensando. Por Flávio Carvalho.

Foto: Pixabay

Por Flávio Carvalho, para Desacato.info.

“Explique-nos Luanda. E que o Chico Buarque de Holanda nos resgate. Xeque-mate. O que quer? O que pode esta língua?” (Caetano Veloso, Língua).

Karina Falcone é uma amiga pernambucana que estudou aqui em Barcelona. Em 2005, ao ler seu orientador holandês, aprendi a prestar mais atenção nos meus próprios vícios de linguagem. Hoje me sinto melhor assim. Por isso, compartilho o meu sentimento.

Na política, quem domina o discurso, utilizando a linguagem ao seu favor, pre-domina. Nenhuma linguagem é neutra. As palavras que utilizamos quase sem perceber estão carregadas de significados que vão sendo empurrados para dentro de nós durante toda a nossa vida. Compreendendo esse funcionamento, na base do empurrão, nos preparamos para dois gestos importantíssimos: rebater e refazer, ajudando a disseminar a existência do outro lado da história. Aquela que se constroi a cada dia. Aqui apresento cinco exemplos, bem atuais.

Sindemia.

No ano passado, mais da metade do mundo nunca havia escutado a palavra Pandemia. Hoje em dia, no começo do ano 2021, não fale mais em Pandemia, por favor. Comece a falar agora mesmo, sem medo, em Sindemia do coronavírus. Pois já faz muitos anos que o médico e antropólogo estadounidense Merrill Singer convenceu a comunidade científica de que uma Sindemia não é nada mais que a comprovação efetiva de que uma Pandemia, como esta, do Covid-19, não atua de forma igualitária. Há componentes sociais específicos (população mais pobre, por exemplo) que aumenta a incidência deste vírus sobre alguns mais que em outros, acabando aquele mito de que a doença ataca a todos por igual. Incide sobre determinados coletivos mais vulneráveis (melhor dizer vulnerabilizados, por ser uma condição assumida e não naturalizada). Por outro lado, nessa Sindemia, está mais que comprovado que a desigualdade social protege os mais ricos – sempre em detrimento dos mais pobres. Quando o de cima sobe, o de baixo desce, já cantava Francisco.

Fascista.

Sim, eu também hesitei em chamar Bolsonaro de Fascista, anos atrás. Agora, isso acabou. Basta de referir-se a Bolsonaro como ultradireita! Esse conceito, ultradireita, mais leve e mais assumível pelos grandes meios de comunicação, já foi mais que superado por ele mesmo, pelo próprio presidente fascista. Você acha leve o que está acontecendo com o Brasil? Não esqueçamos que a ultradireita segue existindo e até é tolerada dentro de instituiçoes políticas mundiais. E não é que todo bolsonarista seja fascista, banalizando a expressão. Ele, sim! A linha que separa um político de ultradireita de um fascista (assumido ou não) foi ultrapassada por ele mesmo, pelo Presidente, e não por você. Entao porque não o chamas logo de fascista como boa parte do mundo já passou a fazer? Lembra de quando a história explica que Hitler deixou de ser ultradireita, protegido por um mandato eleitoral, e concentrou a maioria do Mundo contra ele, nazista? Isso aconteceu depois de quantas vidas ele já havia assassinado?

Genocídio.

Um Genocídio é a caracterização bem fundamentada de quando se começa a perceber que os mortos aparentam-se: algo os une; em algo as milhares de mortes se parecem. “E porque morrem mais esses do que aqueles?”, o povo se pergunta. A diferença é que os mortos não simplesmente morreram; foram assassinados. Em outras palavras, poderiam ser salvos – e não foram. Com que cara quem poderia os haver salvado acordaria um belo dia, admitindo sua (ir)responsabilidade? Um assassinato pode ser culposo (involuntário) ou doloso (intencional, deliberado, conscientemente planejado). Quando o Mundo inteiro, não somente a maioria da população brasileira, começa a perceber que o Presidente da República decide não fazer nada para evitar a morte de milhares da sua própria população, cai a máscara da involuntariedade. Pode um Presidente decidir não fazer nada e assistir de camarote a morte do seu povo? Até quando o não fazer nada pode igualar-se a matar? Nenhum Genocídio, em toda a história da humanidade foi assim declarado, como “um Genocídio”, por toda a Comunidade Internacional, a tempo de ser evitado. Então, nós estamos mesmo esperando o quê? Estamos esperando por quem?

Branquitude.

Antes de tudo, é importantíssimo entender a profunda diferença entre culpa, em relação ao passado (imanente, inevitável, inerente), e responsabilidade, como uma atitude presente (transcendente, que pode ser superada). Se você ainda não percebeu, lamento informar que o Brasil está chegando – atrasado, como sempre – à conclusão de que a escravidão não foi um acidente de percurso na nossa história, perdida no meio do mito das três raças maravilhosamente miscigenadas, com a benção do brasileiro cordial. A escravidão é O Elemento PRINCIPAL na construção do nosso injusto projeto de país. E portanto, infelizmente, está mais presente na nossa sociedade e cultura do que nós imaginávamos a um, dez ou vinte anos atrás. Não é algo novo, sempre esteve presente; até hoje (e isso todos sabíamos). A diferença é uma transformadora nova percepção. Antes tarde do que nunca. Agora, o futuro do país passa por um novo olhar sobre tudo o que não é passado, na escravidão no Brasil. E isso também tem um outro lado. A Branquitude é a atitude dos que dominam (em contraposição a um velho conceito de Negritude, oprimida). E que precisam(os), esses dominantes, acordarem (acordarmos) para a realidade. Antes de tudo (como eu mesmo e, portanto, sempre é hora de assumir nossos privilégios, como única forma possível de começar a transformá-los), sermos conscientes, nós, os não-pretos, de que tudo o que pensávamos que havíamos feito, já servia. Lamento informar que não. Já não basta dizer que é antiracista ou denunciar os racismos presentes: há que lutar, em todos os diversos sentidos dessa expressão “lutar”, para acabar com esse mal. É pra ontem, sim. Desconstrua-se! Isso é só o começo. Ao seu favor, você agora tem uma excelente vantagem, como oportunidade: aí do seu ladinho, mais perto do que você imagina, há uma preta superdisposta, com quem você pode e deve aprender. É hora de perceber. É hora de perceber-se.

Homem Feminista.

Um paradoxo (ou um oxímoro, sua máxima expressão), ocorre principalmente para revelar as contradições da vida. Camões, por exemplo, referiu-se ao amor como um contentamento descontente, lembra? Depois de décadas de lutas acumuladas, o feminismo ganhou, felizmente, visibilidade nunca antes alcançada, traduzindo em ações cotidianas um novo relato sobre a construção social e cultural, hegemônica (maioritária, predominante) do que sempre conhecemos como Relações de Gênero. Inclusive questionando a equação binária (reducionista, somente “ou isso ou aquilo”) de classificação ou categorização do que é ser (e principalmente o que se espera de) um homem ou de uma mulher. Compartilho hoje o resumo de que aquela velha classificação, categórica, do que é ser homem deu-me (sempre!) o privilégio de fazer parte de um mundo onde quando um ganha (o homem) a outra perde (a mulher). Não é um jogo igualitário, nem equilibrado. Nunca foi. Portanto, se você ainda está iludido somente pelo mito da “igualdade”, lamento informar que ele caducou e vai fazer cem anos; até chegarmos na merda onde ainda estamos. É preciso querer mais. Ou tudo vai continuar como está. Pois há quem queira que continue assim. E você, sem querer querendo (eis o paradoxo!), pode estar interessado em que isso siga como é. De fato, nunca se esqueça que, no fundo, no seu inconsciente ou no seu subconsciente, você pode estar querendo que tudo continue como está, mesmo sem perceber ou admitir. E tem até explicação, que não justifica. É o medo: quanto a isso, todos temos, pode ficar tranquilo; e assumir só fará o nosso bem (acredite!). Quanto ao resto, não dá mais pra ficar só no medo: é preciso enfrentá-lo pois será sempre um impedimento de felicidade. Vamos juntas? A má notícia para os meus amigos homens que se dizem feministas é que a mera percepção ou compreensão do que antes afirmei é um passo fundamental a ser dado, porém absolutamente insuficiente. Mesmo não deixando de “ser homem”, ou seja lá o que isso signifique, e conhecendo, compreendendo e apoiando as lutas feministas, a melhor contribuição que eu posso dar a esse processo é não pretender NENHUM protagonismo. Começando por calar e escutar; e bastando assumir algumas “velhas novas tarefas”. Principalmente as quais nunca antes estivemos acostumados: porque adivinha quem as assumia… Daí a situação paradoxal de que o “querer ser feminista” como atitude motivadora e, portanto, não paralisante, é mais importante que o já sentir-se feminista – que ameaçaria todo o processo de desconstrução que qualquer um de nós pode e deve praticar a cada dia. Esse querer é poderoso. Pode chamar-se utopia: sonho possível de realizar-se, mesmo que pareça que nunca se realiza ou que isso não seja o mais importante (o realizar-se). E remove montanhas. Bote fé.

Minha mensagem de ano novo, neste janeiro: eu quero é querer.

Nessa SINDEMIA, contra o FASCISTA, parar o GENOCÍDIO, assumindo a BRANQUITUDE: venha para a nossa luta. Comece assumindo-se (como eu) como uma racista em desconstrução, como um machista em desconstrução. A minha luta anticapitalista (re)começa por aqui. E a sua?

Bem-vindos. A linguagem muda o mundo.

PS.: Quando um homem se refere a si mesmo como “nós, juntAs”, no feminino, só está chamando a atenção para algo que não é novo. Uma vez, o educador Paulo Freire esteve numa assembleia do Sindicato dos Professores, diante de uma plateia composta por 90% de professorAs. Referiu-se a si mesmo sempre no feminino. Um professor, “pobre homem”, incomodado, protestou, estranhando. Freire respondeu que, mesmo sendo a imensa maioria, ELAS nunca reclamaram que a placa lá fora, na frente do sindicato estava escrita “dos Professores”. Porque será? Faça como eu: não tenha medo nem perca seu tempo de ficar o tempo todo falando para eles e elas, senhoras e senhoras, professoras e professores… Use somente o feminino! Se sempre foi “inclusivo” para uns, porque não pode, nem que seja “experimentalmente”, ser “inclusivo” também para outras? Incomodemos quem não deveria se incomodar.

Catalunha, Janeiro de 2020.

Flávio Carvalho é sociólogo e escritor, participante da FIBRA e do Coletivo Brasil Catalunya. @1flaviocarvalho. @quixotemacunaima Siga-me, por favor.

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