Simón e Artigas

Por Elaine Tavares.

No Uruguai é assim. A gente vai andando pelas cidades, sejam elas grandes ou pequenas e lá está, indefectível, a estátua de José Artigas. Durante muito tempo, logo depois da independência, ele foi enxovalhado pelos dirigentes locais, dado como bandido, renegado, traidor. Mas, como a história sempre acaba vindo à tona, aos poucos a verdade aflorou e Dom José foi sendo conhecido como aquele que fora capaz de tornar o Uruguai uma nação. Com os índios charrua, tapes e minuano, os negros e os pobres ele formou um exército popular. Foi com essa gente valente que ele enfrentou a elite argentina, a cobiça dos ingleses e o desejo dos portugueses de se adonar da banda oriental. Naqueles dias de guerras intensas em que tudo era tão incerto, as gentes se debatiam entre se aliar aos portugueses, aos ingleses ou aos espanhóis. E, Artigas, nascido e criado nas tolderias indígenas, dizia: e por que não sermos livres? Por que não sermos nós mesmos?
Essa sua pergunta radical foi a que fez tanta gente andar com ele pelas planuras da campanha uruguaia. Famílias inteiras o seguiam, na batalha contra os invasores e contra os vende-pátria, sempre tão numerosos. E foi ele, mais a sua gente livre, os que garantiram a liberdade e a independência do Uruguai. Não foi à toa que a elite da época tratou de traí-lo e massacrar os que nele confiavam. Artigas tinha muito poder, andava como um igual entre os seus, era amado. Então, depois de formado o estado uruguaio, ele passou a ser uma ameaça. Queria reforma agrária, terra para os pobres, poder para os “de abajo” e uma pátria grande, unindo todos os povos. Os dirigentes trataram de empurrar Artigas para fora do país, tirá-lo da órbita do seu povo. Ele buscou abrigo no vizinho Paraguai, onde morreu, muitos anos depois, impedido de voltar ao Uruguai. Os que não foram com ele para o exílio tiveram destino pior, como os índios charrua. Atraídos para uma emboscada, foram massacrados em Salsipuedes.
Só mais tarde é que, necessitando criar um espírito nacional, a mesma elite que o repudiu, o trouxe de volta, já como cinza e o incensou como “pai da pátria”. Mas, para as gentes ele nunca deixara de ser o valente blandengue que construíra uma mátria, uma terra-mãe, espaço de povo livre. Por isso Artigas se apresenta em pedra, em cada praça uruguaia, a lembrar de um tempo em que índios, negros e pobres ergueram uma nação.
Dia desses, numa praça de Tranqueras, no departamento de Rivera, um pedacinho de gente chamado Simón Ernesto encontrou com uma dessas estátuas de Artigas. E, depois de subir por aqui e por ali, fixou seu olhar no rosto impávido do velho herói. Com a sensibilidade que só um “niño” pode ter, ele percebeu que o homem de pedra estava estranho:
– Mamãe, por que o Artigas tá com a boca pra baixo?
– Porque ele deve estar triste, meu filho.
– E por que ele tá triste, mamãe?
Paciente, Verônica, a mãe, explicou a história toda. Que, depois de lutar com tudo e todos pela liberdade do Uruguai ele foi obrigado a sair do seu país, indo morar em terra estranha. Também ressaltou que por toda a vida ele fora companheiro dos índios, dos camponeses, dos negros e dos pobres. E que, por isso, até hoje havia quem não gostasse dele. E ele, talvez, ali, fixado em pedra, ainda estivesse triste por tudo isso.
Simón Ernesto ouviu, silente, os olhos pregados no busto de Artigas. Pela cabecinha de menino, mais afeito a brincadeiras e estrepulias, a breve lição sobre seu país poderia ter ficado perdida entre o giro de uma pandorga e o grito de algum moleque na esquina. Mas não. Simón acercou-se da estátua, tomado pela ternura, e a abraçou, enchendo o rosto contrito de muitos beijinhos.
Só depois saiu correndo pela praça. Ele nem viu, mas o rosto de pedra se distendeu e o velho caudilho sorriu.

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