Sem saída em Beirute

Por Fernando Evangelista.

Bastidores das reportagens de guerra – Parte 1.

O som das explosões ficava cada vez mais intenso. Jogadas por aviões israelenses, as bombas caiam em intervalos curtos, de 30 em 30 segundos. Naquele momento, trancado sozinho no elevador, eu tive certeza de que iria morrer.

Era 2006 e eu estava em Beirute, capital do Líbano, cobrindo para a revista Caros Amigos a guerra entre o Exército israelense e o Hezbollah, organização política e militar xiita. Fui com o italiano Matt Corner, fotógrafo competente, aguerrido e totalmente destrambelhado. Nós havíamos feito a cobertura da Operação Escudo Defensivo na Palestina em 2002, e a cobertura da guerra do Iraque em 2003.

Quando chegamos a Beirute, as notícias eram confusas e contraditórias. No tabuleiro político, estavam em jogo as decisões de Israel e os avisos do Hezbollah, a postura da ONU e a posição da Síria, as acusações dos Estados Unidos e as ameaças do Irã – uma sequência de versões oficiais e subsequentes desmentidos.

Para entrar no ritmo daquele caos e conversar com alguém do governo, Matt e eu fomos ao Ministério da Informação. Parecia uma típica repartição pública, com móveis velhos e luzes frias, paredes mofadas, um relógio estragado – marcando três horas –, uma máquina de café sem café e, no meio da sala, uma imponente mesa de madeira.

Os jornalistas internacionais, com celulares, computadores, coletes, capacetes, mapas e bússolas, conseguiam fazer mais barulho e serem mais histéricos dos que os corretores da Bovespa. Num canto, à direita, uma televisão ligada na Al-Jazeera e, na frente dela, com o nariz quase tocando a tela, um homem corpulento, hirsuto, de queixo duplo e assustadores mamilos aparentes sob a dishdash cinza.

Eu não consegui conversar com nenhum figurão. O ministro estava viajando, o primeiro secretário tinha sumido e o segundo secretário pedira demissão. Decidi ler algumas coisas na internet e esbarrei com a seguinte notícia: “Israel ameaça bombardear prédios estatais no Líbano”.

Nós estávamos num prédio estatal! A notícia parecia inverossímil, um blefe ingênuo, mas depois que a mostrei para o Matt e ele se lembrou de uma foto que fizera de uma criança brincando sobre os escombros do Ministério da Informação, em Bagdá, três anos antes, resolvemos dar o fora dali.

Ele foi pela escada – estávamos no quarto andar – e eu tive a má lembrança de pegar o elevador. Era, provavelmente, um dos mais velhos elevadores do Oriente e um dos menores, a ponto de eu precisar tirar a mochila das costas para entrar. Parecia uma urna funerária.

Fechei a porta pantográfica, o elevador desceu uns metros e, de repente, tudo ficou escuro. O elevador não se mexia. Nada se mexia. Havia faltado luz em Beirute. É sempre muito ruim ficar preso em elevador, mas naquelas condições, sentindo a proximidade dos aviões e das bombas, tendo lido aquela notícia sobre os planos de Israel, parecia ainda pior.

Então, vieram as perguntas de sempre: o que eu estou fazendo aqui? Por que vim fazer esta reportagem? Por que diabos escolhi o jornalismo? Por que peguei esta porcaria de elevador? Eu estava 100% ferrado.

“Toda preguiça será castigada”, pensei, parafraseando Nelson Rodrigues. O prédio será bombardeado, todos vão morrer, inclusive o Matt, quase tudo vai virar pó, menos o elevador, devido a proteção de aço, e eu vou definhar aos poucos. Medo e pessimismo andam de mãos dadas.

Eu iria morrer bem devagar, arrependido de ter lido todos aqueles livros de guerra que te fazem acreditar em “moral da história”, em um final feliz, no qual a carnificina faz sentido, os heróis existem de fato e as vítimas são recompensadas. A guerra ao vivo, guerra real, é bem diferente do que se escreve por aí.

Muitas vezes, o relato é tão fascinante, tão heroico e grandioso, que a dor, a morte, as mutilações, as cicatrizes, as desgraças todas, parecem lindas, românticas até, e você fica achando que na guerra tudo acaba bem, mesmo sabendo que não acaba.

Quase uma hora depois, aconteceu o inesperado. Com ajuda do homem dos mamilos assustadores, Matt abriu o elevador com uma espécie de pé de cabra – nunca soube onde ele conseguiu aquilo. Saí exausto e decidido a não fazer mais esse tipo de reportagem. Eu iria dar um jeito na minha vida.

Entretanto, teria de pensar nisso em outro momento porque o sujeito dos mamilos assustadores, tipo simpático e solícito, era o braço direito de Foaud Siniora, ninguém menos do que o primeiro-ministro libanês. Ele simpatizou muito com o Matt, se compadeceu do meu suplício e nos prometeu uma exclusiva com o homem. Bingo! Eu estava com sorte.

Jornalismo, às vezes, é a melhor profissão do mundo.

 

Fernando Evangelista é jornalista, mantém a coluna Revoltas Cotidianas, publicada toda terça-feira. Atualmente, é diretor da produtora  Doc Dois Filmes. Co-dirigiu, em parceria com a jornalista Juliana Kroeger, o documentário Fibra, exibido ontem no FAM – Festival Audiovisual Mercosul. Veja o trailer: http://vimeo.com/35545111.

Fotos: Matt Corner (http://mattcorner.photoshelter.com/gallery-list)

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