“Sem discutir gênero, não vamos conseguir prevenir a violência sexual”

Cada uma das 400 crianças participantes do encontro recebeu um exemplar do livro Pipo e Fifi. Foto:Thais Silveira.

Por Fernanda Almeida, Ednubia Ghisi e Nyky Rodrigues.

Entre os 66 mil casos de violência sexual registrados em 2018, 54% das vítimas tinham até 13 anos, de acordo com o 13º Anuário de Segurança Pública, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Quase 90% dos casos deste tipo de violência contra crianças e adolescentes são registrados no ambiente familiar. Como forma de avançar na prevenção do problema, o tema fez parte da programação do XIII Encontro Estadual das Crianças Sem Terrinha do Paraná, realizado entre dos dias 16 e 18 de outubro. “Entendemos que esse debate é fundamental para que nossas crianças cresçam em um ambiente seguro e saudável, uma educação emancipatória só é possível se levarmos em conta todas as dimensões do ser humano. Por vez debates como esse são negados, ou seja, deixamos de ajudar crianças e adolescentes a tornarem-se adultos saudáveis e construtores de uma nova sociedade”, explica Jeizi Back, integrante do Setor de Educação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) do Paraná. Ela explica que Setor tem buscado formar um coletivo de educadores e educadoras para estudar, debater e construir processos formativos referentes temas sobre corpo, gênero e sexualidade. “Estamos sempre atentos(as) para combater esse mal, tanto dentro do movimento como na sociedade em geral”.

No Encontro das Crianças Sem Terrinha, o assunto foi trabalhado pela pedagoga e escritora Caroline Arcari, autora da obra “Pipo e Fifi”, lançada em 2012 e já traduzida para quatro idiomas. “Os personagens são dois monstrinhos que falam para as crianças o que são as partes íntimas, qual a diferença entre um toque saudável, que simboliza afeto, amor, e um toque que pode ser abusivo”, explica a autora.

Cada uma das 400 crianças participantes do encontro recebeu um exemplar da obra. A autora também disponibilizou aos educadores e educadoras das crianças Sem Terrinha um curso online sobre prevenção da violência sexual. O livro está disponível na íntegra na internet, assim como jogos e um vídeo com a contação da história especialmente para as crianças.

“É uma grande honra estar aqui no Encontro dos Sem Terrinha, até porque esse Movimento dá voz às crianças, e isso é algo que como pedagoga me chamou muito a atenção e que me encanta muito”, disse a autora, durante o evento.

Confira a entrevista com a autora:

Qual o objetivo e a característica da obra “Pipo e Fifi”?

Caroline Arcari – A obra “Pipo e Fifi” vem atender à necessidade de orientação, porque viemos de uma geração pautada na ditadura do silêncio, nós não tivemos educação sexual e a gente não sabe como fazer isso com as crianças. Os personagens são dois monstrinhos que falam para as crianças o que são as partes íntimas, qual a diferença entre um toque saudável, que simboliza afeto, amor, e um toque que pode ser abusivo. Eles [os monstrinhos] vêm, de forma lúdica, falar de forma descomplicada e honesta o que é violência sexual e como encontrar caminhos para pedir ajuda. É uma forma de mostrar um grande respeito pela criança, pela capacidade que elas e eles têm de absorver este conteúdo, de identificar no seu entorno e na sua vivência se isto está acontecendo e de buscar ajuda, de buscar uma pessoa de confiança para buscar ajudar, e também todos os serviços que podem auxiliá-la.

“Pipa e Fifa” já está desde 2012 na estrada, já traduzimos para outros quatro idiomas, já foi para outros países. É sempre um arquivo aberto. Apesar de ter o livro para venda, a nossa opção como editora foi deixar esse conteúdo para qualquer pessoa consumir, para fazer reprodução do livro, para ver em vídeo. Temos no YouTube e no Instagram. Também proporcionamos aos municípios a oportunidade de multiplicar esse conhecimento de forma bastante barata também e democrática para que chegue a todas as crianças. É com grande alegria que a gente sabe que “Pipo e Fifi” teve grande aceitação até em grupos conservadores que não sabiam como falar sobre isso e acabaram percebendo que a informação é que leva à prevenção da violência sexual.

Qual a importância desse debate em um espaço como o das crianças Sem Terrinha? 

Caroline Arcari – A violência sexual é mais comum do que a gente imagina. A estimativa é que de 27% dos meninos e 36% das meninas até os 12 anos de idade já passaram, estão passando ou passarão por alguma situação de violência sexual. E há agravantes. Claro, acontece em todas as classes sociais, todas as etnias, mas a gente tem a questão de gênero, raça, que também são agravantes. As meninas negras, por exemplo, são as mais atingidas. Então nós precisamos de espaços que falem sobre isso. É uma grande honra estar aqui no Encontro dos Sem Terrinha, até porque esse movimento dá voz às crianças, e isso é algo que como pedagoga me chamou muito a atenção e que me encanta muito.

A autoproteção, o trabalho que eu faço, está muito vinculado a essa visão de que a criança tem o potencial de compreender o mundo, de compreender a nossa fala e também de se autoproteger, de identificar situações de perigo que possam estar acontecendo no dia a dia.  Essas discussões sobre sexualidade, gênero, autoproteção, violência sexual precisam acontecer em todos os espaços. Aproveitar um encontro como esses em que as crianças, que elas têm voz, clamam por seus direitos, também é um espaço para se fala sobre isso, sobre o direito a proteger o seu próprio corpo, a ter a sua infância protegida, poder brincar e ter um desenvolvimento com qualidade.

Recentemente, uma pesquisa mostrou o aumento dos índices de violência sexual contra crianças e adolescentes. Como você avalia isso? 

Caroline Arcari – Nós temos uma boa notícia com relação a esses dados. A violência sexual sempre aconteceu, e o que está aumentando é o número de denúncias. Esse aumento vem pelas políticas públicas, como o Disque 100. Há também as políticas de proteção aos direitos da criança, houve o fortalecimento de todas as instância como a rede de proteção. Isso fez com a temática viesse à tona, estamos falando mais sobre isso, estamos orientando mais as crianças.

A mídia também tem mostrado essa problemática. Então, esses números mostram que as denúncias estão sendo feitas, porém, a gente ainda tem a estimativa de que apenas um em cada 10 casos estão sendo denunciados, apesar de ter aumentado. O que aumentou realmente foi as buscas pelos serviços, as denúncias, pelo desenvolvimento de maior qualidade do Disque 100. Agora nós temos a oportunidade de entender esses números aqui no Brasil e melhorar nosso serviço, principalmente a articulação da Rede de proteção. Então todos os profissionais precisam ter a mesma linguagem, estar capacitados, desde a escola, assistentes sociais, conselheiros tutelares, todo o âmbito educativo, profissionais da saúde, também profissionais da segurança pública e do âmbito judiciário.

Há uma ofensiva por parte do governo federal e de setores da sociedade que tenta proibir os debates de sexualidade nas escolas. Como você avalia essa postura? 

Caroline Arcari – É um grande retrocesso que coloca nossas crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade. É a informação que protege, e a discussão de gênero tem tudo a ver com a prevenção da violência sexual. A maioria dos abusadores são homens heterossexuais, a maioria das vítimas são meninas. Meninos também são abusados, e pelo mesmo discurso machista eles têm vergonha de denunciar, e isso é uma questão de gênero. Meninos não denunciam porque eles têm vergonha quando são abusados por homens. Nós somos um país homofóbico, um dos países que mais mata população LGBT no mundo. Quando um menino é abusado, ele entende que foi um contato homossexual, apesar de os abusadores não serem homens homossexuais, como os mitos acabam disseminando, porque a maioria são homens heterossexuais. Num país homofóbico, o menino vai ter vergonha de relatar isso. Num país machista, quando o menino é abusado por uma mulher mais velha, ele não denuncia, porque isso é visto como uma forma de ele exercer a masculinidade, não como violência, mas isso traz muitos problemas no desenvolvimento do menino. Sem discutir gênero, não vamos conseguir prevenir a violência sexual.

É a informação que protege, e as crianças têm que saber nomear todas as partes do corpo, o que são partes íntimas,  de onde vêm os bebês; saber o que é contato íntimo de adulto, a forma de fazer bebê, o namoro, a relação sexual, enfim, é algo específico de uma faixa etária e que adultos não podem fazer isso com as crianças. Enquanto ficarmos em silêncio, estaremos colocando as crianças em vulnerabilidade. Não é só papel da família falar sobre a educação sexual, como o discurso moralista tem apresentado. Até porque a violência sexual, na maioria das vezes, acontecem abusos no ambiente intrafamiliar. Se fosse somente tarefa da família dar ou não educação sexual, como ficariam essas crianças, já que no seio familiar é que acontece a maioria desse tipo de violência? Sim, as crianças precisam de informação, e a nossa luta é para que a educação sexual chegue a todo o público, porque é uma das formas mais eficazes de prevenção.

O que o Estado precisa fazer para avançar na superação desse problema?

Caroline Arcari –  Nós precisamos educar os adultos, quebrar esse mito de que existe uma ideologia de gênero, esse mito de que falar sobre sexualidade pode erotizar as crianças. Pelo contrário. Falar de educação sexual, de sexualidade, de acordo com a faixa etária, com qualidade de informação, só vai protegê-las. Fortificar as políticas públicas, sempre relembrar o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), e lá podemos encontrar todas as ferramentas que precisamos para reafirmar o dever de todos os espaços educativos de fazer a educação sexual. Essa luta tem que chegar nesses espaços educativos, mas principalmente para os adultos que carregam muitos mitos da sexualidade, que foram educados na ditadura do silêncio e isso fez com que a comunidade pensasse que a educação sexual é prejudicial. A educação e a informação precisam chegar para todos esses públicos para finalmente quebrarmos os mitos e conseguir recomeçar o processo de educação.

*Editado por Fernanda Alcântara

 

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