Seis erros que o ocidente cometeu (e comete) na Ucrânia

Assinatura do Acordo de 21/2/2014 para uma transição negociada do poder na Ucrânia
Assinatura do Acordo de 21/2/2014 para uma transição negociada do poder na Ucrânia

Por Nicolai N. Petro.*

ODESSA, Ucrânia – Se o ocidente parece não compreender as ações dos russos na Ucrânia e mostra-se incapaz de encontrar resposta à crise, é porque, desde o primeiro momento, interpretou erradamente a situação, convertendo uma disputa essencialmente doméstica em disputa que ameaça toda a arquitetura de segurança da Europa. Embora todos os lados tenham contribuído ativamente para esse fracasso generalizado, há seis erros principais, com papel destacado na modelagem do discurso ocidental sobre a Ucrânia. Esses seis erros terão de ser corrigidos, antes que qualquer progresso real comece a ser possível.
 ERRO 1. Os ucranianos são um único povo, unido no apoio às mudanças: É refrão incansavelmente repetido por políticos ocidentais; mas quem conheça a história da Ucrânia sabe que as fronteiras do país mudaram inúmeras vezes no século passado. Resultado disso, milhões de pessoas sem qualquer conexão étnica, cultural ou linguística com a Ucrânia vivem lá, nas regiões de fronteira. Desde 1991, a divisão mais visível acontece entre ucranianos do oeste, muitos dos quais desejam uma Ucrânia culturalmente e politicamente diferente da Rússia; e ucranianos do leste, que querem viver numa Ucrânia independente, mas que também mantenha laços espirituais, culturais e econômicos com a Rússia. O fato de que governos ocidentais tenham identificado as aspirações nacionais da Ucrânia com as aspirações das regiões ocidentais pôs esses governos em oposição contra metade do país.
Ainda que as regiões ocidentais predominem sobre as regiões do leste nas atuais lutas, o fato de terem escolhido lados por esse sistema “ocidental” já gerou sentimentos anti-Ocidente no  leste da Ucrânia, que lá permanecerão ativados por anos e anos.
 ERRO 2. Apoiar a derrubada do presidente Yanukovich pelos neofascistas da Praça Euromaidan. No auge dos tumultos em Kiev, governos ocidentais aconselharam o presidente Yanukovich a não usar a força para dispersar os protestos, mesmo quando se tornaram violentos. Adiante, durante fase crítica das negociações com a oposição, funcionários do governo dos EUA foram gravados, quando discutiam com específicos líderes da oposição. Para uma opinião pública ucraniana já dividida em torno da legitimidade dos protestos na Praça Maidan (3/4 da população das cidades do leste da Ucrânia consideram ilegais os protestos de Maidan em Kiev [2]), a ação do ocidente foi claramente identificada com movimento de intervenção, para distorcer as preferências políticas de metade da população da Ucrânia.
ERRO 3. Assinar e, na sequência, trair a assinatura do Acordo de 21 de fevereiro: A evidência de que França, Alemanha e Polônia traíram o acordo negociado (de 21/2/2014) assinado com a Rússia para uma transição negociada do poder na Ucrânia, que havia sido proposta pelos próprios ucranianos, foi vista como duro golpe contra a legitimidade das instituições do estado ucraniano – golpe do qual o governo da Ucrânia ainda não conseguiu recuperar-se.
Na sequência, a tomada do poder pela oposição não apenas derrubou o governo (detestado, mas legal e legítimo) do presidente eleito; o golpe também levou ao colapso o maior partido ucraniano, o qual, síntese complexa de suas próprias qualidades e defeitos, ainda encarnava as aspirações políticas de metade da população.
Até hoje, menos de 1/3 da população falante de russo que vive na Ucrânia considera legítimo o atual presidente “em exercício” (e primeiro-ministro licenciado); enquanto que em Donetsk e Lugansk, o número de apoiadores do presidente “interino” cai a menos de 15%.
ERRO 4. Ignorar a ascensão da Direita Radical: A imprensa-empresa ocidental demorou a dar-se conta de que grupos nacional-socialistas de direita, como Svoboda e Setor Direita (Pravy Sektor) desempenharam papel decisivo na radicalização do movimento na Maidan em Kiev, e na dramática tomada do poder imediatamente depois de traídos os acordos de 21/2/2014. Mas, oficialmente, os governos ocidentais insistem ainda em que esse papel teria sido marginal. De fato, até hoje esses grupos continuam a ter influência no Parlamento e nas ruas no centro de Kiev, que continuam ocupadas apesar dos muitos pedidos do atual presidente, para que sejam evacuadas. Aqueles grupos intimidam todos e quaisquer que se manifestem contra as políticas do atual governo. Os atos de intimidação contra candidatos associados ao Partido das Regiões, não recebem nenhuma condenação vinda de governos ocidentais. Muitos no Leste e no Sul da Ucrânia veem tudo isso como mais e mais confirmação de que o ocidente apoia os neonazistas/neofascistas.
ERRO 5. Rotular manifestantes no Leste e no sul, de “separatistas” e/ou “pró-Rússia”: Nos dois casos, são rótulos errados e distorcidos, porque a conexão entre essas regiões e a Rússia é cultural e linguística, não é política. Matérias jornalísticas, pesquisas e declarações feitas por políticos locais e nacionais deixam suficientemente claro que já há muito ressentimento local contra o governo provisório em Kiev. Até a oligarca Yulia Timoshenko reconheceu isso, recentemente, pela televisão nacional da Ucrânia. A vasta maioria deseja, simplesmente, que sua herança russa seja reconhecida como parte de sua identidade ucraniana. O meio mais simples de fazer tal coisa, dizem eles, é reconhecer na Constituição, a realidade do bilinguismo ucraniano. Quanto mais o governo “interino” resiste contra essa ideia, mais os cidadãos desconfiam das intenções do governo de Kiev.
Quanto à acusação de “separatismo”, vale a pena observar que em todas as circunstâncias nas quais o separatismo foi convertido em assunto, inclusive na Crimeia, a demanda original sempre foi por maiores direitos regionais e mais autonomia dentro da Ucrânia. Só quando Kiev respondeu, substituindo governadores locais por novos oligarcas fiéis ao novo governo central, é que começou a aparecer a questão da secessão. Essa é a razão pela qual muita gente nas regiões leste e sul da Ucrânia (62%) culpam Kiev por a Ucrânia ter perdido a Crimeia, muito mais que separatistas crimeanos (24%) ou a Rússia (19%). E a mesma abordagem está sendo aplicada agora também para o leste e o sul da Ucrânia, com os mesmos resultados desastrosos.
ERRO 6. Culpar a Rússia pelos problemas da Ucrânia: Apesar da retórica candente que se ouve dos governos ocidentais, o objetivo primário da Rússia na Ucrânia é reduzir o nível de instabilidade doméstica. As razões não são difíceis de demarcar.
  • Primeiro, porque qualquer instabilidade é ruim para os negócios, os quais, no caso da Ucrânia, envolvem investimentos militares, industriais e de energia que são vitais para a Rússia.
  • Segundo, a instabilidade continuada é ruim para a Rússia porque aumenta o risco de a Ucrânia vir a tornar-se estado falhado, que a Rússia se sentirá obrigada a sustentam com ajuda humanitária massiva.
  • Terceiro, essa instabilidade é ruim, porque aumenta as tensões com o Ocidente – porque o ocidente tende a culpar a Rússia por tudo que aconteça na Ucrânia.
A Rússia muito apreciaria ver a Ucrânia como parceira econômica e política estável, capaz de gerar crescimento suficiente para criar empregos para seus cidadãos, de modo a reduzir o fluxo constante de mais de 3 milhões de trabalhadores ucranianos para dentro da Rússia, anualmente, e, assim, contribuir para a prosperidade dos 11 milhões de russos que vivem ao longo da fronteira com a Ucrânia. Já tendo gasto cerca de 300 bilhões de dólares nos últimos 20 anos, para evitar o colapso da economia ucraniana, não é absolutamente crível que, de repente, o fracasso da Ucrânia tenha passado a ser objetivo dos russos. É absolutamente certo que, não, não é assim, que a Rússia não tem interesse em gastar mais dezenas de bilhões de dólares no esforço para equiparar o padrão de vida da Ucrânia aos padrões russos – o que seria indispensável, se a Rússia tivesse qualquer interesse em “anexar” alguma Ucrânia, como repetem jornais, “jornalistas” e “especialistas” ocidentais.
O que tem de ser feito!
Se as ações dos russos não são causa básica do problema da Ucrânia, então é bem evidente que “punir” ações de russos não ajudará a resolver a crise atual. De fato, as “sanções” e “castigos” impostos aos russos só fizeram e fazem aprofundar a crise, por três vias diferentes:
  • primeiro, porque distraem os políticos ocidentais e os afastam da análise dos problemas reais das divisões que há na Ucrânia e que têm de ser considerados;
  • segundo, porque reforçam a noção popular entre algumas facções do governo golpista em Kiev, de que, se o ocidente os apoia, não é preciso negociar coisa alguma com as regiões insatisfeitas no leste e tudo pode ser feito pela truculência e pela violência; e
  • terceiro, porque antagoniza precisamente a Rússia, que é o ator externo que tem mais investimentos a proteger, já feitos, no bem-estar da Ucrânia.
Ao interpretar os atuais eventos na Ucrânia pelo prisma de uma nova Guerra Fria com a Rússia,o governo Obama já gerou um dos mais efeitos colaterais mais daninhos – a manipulação do poder externo por atores locais, os quais querem, cada um, arrancar a maior quantidade possível de vantagens, cada um para si.
Mas a Rússia não é a URSS. Numa estranha virada histórica, a Rússia, na crise atual, está defendendo os direitos das populações locais de serem ouvidas pelos governos; e o ocidente “democrático” à moda Obama só faz trabalhar a favor do golpe, com remoção de um presidente legitimamente eleito. Significativamente, tudo isso acontece numa área do mundo onde são mais fortes e mais ativas as simpatias a favor da Rússia.
Ampla pesquisa realizada em áreas de populações falantes de russo, em abril de 2014 mostra que, enquanto 70% não apoia a secessão, se hoje se realizasse um referendo, só 25% votaria a favor da integração à União Europeia; 47% prefeririam integrar-se à Associação Aduaneira liderada pela Rússia. Só 15% sentem que as relações ucranianas com a Rússia devem ser iguais às relações com qualquer outro país; ¾ dizem que os dois países devem abrir as fronteiras; e 8% entendem que deveriam constituir um só país. É situação altamente preocupante para os encarregados de montar campanha militar de repressão contra os rebeldes (obsessão do ocidente, hoje), porque, enquanto quase ¾ dizem não apoiar a entrada de tropas russas no país, só 10% se dizem dispostos a pegar em armas para defender a integridade territorial da Ucrânia.
Esse é o campo minado no qual EUA e União Europeia tentam hoje manobrar – atolados lá bem fundo no coração histórico do império russo, onde as simpatias a favor da Rússia são vastas e profundíssimas, e onde o ocidente ainda não conseguiu definir coisa alguma, nem um, que fosse, objetivo estratégico claro.
Historiadores do futuro muito elogiarão a capacidade de visão histórica profunda e consistente que o governo Putin mostrou nessa quadra, quando mobilizou tão elegantemente e tão eficazmente toda a sua vasta influência (a eficácia com que a Crimeia foi protegida, sem uma baixa e sem um tiro, é lição que a Rússia deu, brilhantíssima, ao ocidente belicista pirado). Ao mesmo tempo, EUA e União Europeia só fazem tentar manipular qualquer ‘resultado’ político em Kiev.
Reconhecer a natureza indígena dos atuais problemas ucranianos, que muitas vezes obriga a voltar a promessas não cumpridas de velhos governos ucranianos, é portanto um primeiro passo indispensável para conseguir lidar com realismo, com os problemas. Mas é só o primeiro passo. O passo seguinte é aplicar pressão firme contra o governo ‘interino’, para que faça o que até aqui sempre se recusou a fazer – construir um governo de unidade nacional.
Compreensivelmente, não é fácil para os que chegam ao poder numa onda de entusiasmo revolucionário, admitir que muitos de seus compatriotas os veem como fascistas e golpistas, como ilegítimos. Felizmente, porém, muitos, no sul e no leste ainda anseiam por uma acomodação, em nome da unidade nacional.Mas sentem que essa acomodação tem de basear-se em ações concretas a serem tomadas por Kiev, que demonstrem que a lei e a ordem estão sendo restauradas, e que o governo interino tem controle real contra os bandidos nacionalistas radicais armados. Atualmente, a principal e mais profunda preocupação das pessoas no Leste e no Sul é o medo que lhes inspira a “bandidagem crescente” – medo de que se alastre, incontrolável, a violência iniciada em Kiev em janeiro e fevereiro, e medo do estado de ilegalidade e anomia em que vivem as cidades naquelas regiões.
Um segundo passo crítico é fazer do russo um segundo idioma oficial na Ucrânia. Esse gesto reafirmaria, para as regiões falantes predominantemente de russo no país, que seu legado cultural está sendo plenamente aceito e incorporado na Ucrânia de hoje. É medida prometida por vários candidatos presidenciais, desde a independência da Ucrânia, mas sempre boicotada pelos nacionalistas ucranianos. Por isso, agora, o pedido inclui o reconhecimento do novo idioma, pela nova Constituição.
Um último passo é a descentralização política e econômica, que alguns chamam de “federalização”. A diferença essencial entre autonomia regional e federalismo é que o federalismo é um pacto entre regiões e o governo central, estipulado na Constituição. Alguns tipos de federalismo são muito amplos, outros são definidos em termos mais limitados. Se a autonomia não for constitucionalmente fixada, dizem os autonomistas, qualquer nova legislatura pode rescindir o que tenha ficado decidido antes, como aconteceu com a Crimeia em 1998.
Mas o governo “interino” não pode cumprir todas essas tarefas. Os grupos nacionalistas radicais e as forças golpistas da Praça Maidan em Kiev opõem-se a essas mudanças. Não se pode esquecer que a junta golpista em Kiev já aprovou o atual governo. Dado que qualquer passo na direção de construir autêntico governo de unidade nacional terá de ser dado contra um dos grupos que constituem o núcleo duro da junta golpista em Kiev, só será possível se receber cobertura de algum dos bandos que dão cobertura à junta golpista – EUA e União Europeia.
 Assim sendo, reconhecer a natureza indígena dos problemas da Ucrânia leva portanto diretamente a uma outra estratégia, radicalmente diferente, em relação à Rússia – uma estratégia de cooperação, não de confrontação, na busca de uma Ucrânia estável, forte e independente. Boa providência, nessa direção – por último, mas não menos importante –, EUA e União Europeia bem fariam se aposentassem, para sempre, os “clamores” e encenações em tom de nova Guerra Fria.

[*] Nicolai N. Petro (nascido em 1966) é um acadêmico especializado em Assuntos da Rússia (Russian Affairs); atualmente é professor de Ciência Política na University of Rhode Island, nos EUA. Também trabalhou como Assistente Especial do Departamento de Estado em assuntos da União Soviética durante o governo de George Bush (pai). Recebeu o prêmio summa cum laudae em História em 1980, completou mestrado em Administração Pública em 1982 e obteve seu Ph.D. em Assuntos Internacionais (Forign Affairs) em 1984 na University of Virginia.

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