Segunda, dia de batuque

image_previewO Samba do Trabalhador no Andaraí, zona norte do Rio de Janeiro, entra no calendário turístico da cidade

Por Francisco Alves Filho.

Para muitos brasileiros, a segunda-feira é um dia tão odiado que a depressão começa na véspera, estimulada pelas vinhetas dos programas televisivos dominicais. Chope e cineminha deixam de ser assuntos prioritários, o tempo de papo furado com amigos fica para trás e dá lugar a mais uma semana de trabalho, geralmente percorrida em funções desagradáveis. Mas há um recanto no Andaraí, zona norte do Rio de Janeiro, onde o primeiro dia útil é esperado com a mesma ansiedade de uma sexta-feira. Ali, no Clube Renascença, mantém-se desde 2005 uma roda de samba que reúne vários craques do batuque carioca. Nas tardes de segunda, os cavaquinhos e tamborins embalam ao menos mil visitantes sob um título irônico: Samba do Trabalhador.

Criador da roda, o compositor e cantor Moacyr Luz nem pensava na ironia ao batizá-la. Apenas não aguentava mais receber convites para churrascos e festinhas realizados nos fins de semana, quando ele e seus amigos músicos estavam em pleno batente, tocando e cantando nos bares e casas de show. Nunca podiam ir. “As pessoas esquecem que o domingo dos artistas cai na segunda-feira.”

Daí nasceu a ideia de fazer um encontro às segundas, folga para os sambistas. Aos poucos, o número de participantes aumentou. Um segurança foi contratado. A cerveja, antes levada pela turma, passou a ser vendida no bar do clube. O marco definitivo na organização deu-se quando, ao ser chamado para entrar na roda, o baterista, compositor e cantor Wilson das Neves pediu o microfone. Até então, a música rolava sem amplificadores. “Quando arranjaram o tal microfone, senti que a coisa ia se profissionalizar”, recorda Luz.

Não deu outra. Sem pretensão, o Samba do Trabalhador entrou no calendário do lazer e turismo do Rio. Foi citado em reportagem recente do New York Times entre as maravilhas do subúrbio da cidade. A partir de 4 da tarde, o clube lota de cariocas e turistas, gente de todas as classes sociais e faixas etárias. Para frequentar a roda em dia e horário tão incomuns, os mais assíduos têm um extenso repertório de estratégias para ludibriar o patrão.

Alguns recorrem a iniciativas benemerentes: doam sangue para ganhar um dia de folga e ir ao samba (“Fazem questão de mostrar a liberação do médico”, garante Luz). Outros preferem planos mais elaborados. Uma mulher pediu ao marido para ligar para o gerente e simular ser funcionário da creche do filho. Ao patrão da esposa disse que a criança havia se machucado e precisava de cuidados médicos. A mulher foi liberada do trabalho. Também entrou para o folclore o episódio do homem que, no meio da roda de samba, telefonou para o chefe e disse estar preso em um engarrafamento quilométrico. Ao celular, este teria respondido: “Também estou no Samba do Trabalhador e olhando para você”. Segundo a lenda, os dois acabaram bebendo juntos.

A mistura de gerações é completa. A estudante de pedagogia Marie Campeiro, de 25 anos, vai à roda atraída pela tradição. “Gosto daqui porque só tocam música de raiz.” Sandra Regina Oliveira, loira de meia-idade a esbanjar talento na dança de salão, embalada num vestido branco de franjas, concorda: “Eles são maravilhosos, venho toda semana”. Antonio Alves, tradicional pé de valsa de 79 anos, e a cândida Ione Mariath, 88 anos, uma espécie de mascote da roda, posicionada sempre perto dos músicos, balançam o corpo ao ritmo do som. Entre os turistas daquela tarde, chamava atenção o entusiasmo de um grupo japonês. Eram os organizadores da escola de samba em seu país batizada sugestivamente como Yokohamangueira, óbvia junção entre o nome de sua cidade de origem e o celeiro de bambas verde-e-rosa. “Temos 300 integrantes que adoram a batucada”, conta o carnavalesco Ryota Yamakami, 27 anos. A seu lado, a passista Rie Saito mostrava desenvoltura.

O sucesso do Samba do Trabalhador fez o público redescobrir o Renascença. A agremiação foi criada na década de 1950 por negros não aceitos nos clubes da elite de então. O “Rena”, como é chamado carinhosamente, tornou-se referência na cultura negra durante a década de 60. Depois veio a decadência. O local ficou algum tempo fechado e agora, fazendo jus ao nome, renasce. A recuperação do clube é mais um motivo de alegria para Luz, entre tantos outros. “Adoro quando dizem que a roda tornou o início da semana mais agradável.”

Desde o sucesso do Samba do Trabalhador, Moacyr Luz e os amigos se tornaram, porém, presas de uma armadilha. Antes conhecida como o “domingo dos sambistas”, a segunda-feira, ao menos para essa turma, virou dia de batente como outro qualquer.

Fonte: Carta Capital.

Foto: Adriana Lorete

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