Se faltar comida, a culpa é do coronavírus?

Foto: Reprodução.

Por Bruno José Machado e Carlos Eduardo Souza Leite.

Um relatório publicado pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) na segunda quinzena de abril afirma que, no rastro da pandemia de coronavírus, pode dobrar o número de pessoas em situação de fome e subnutrição no mundo, saltando dos 130 milhões registrados em 2019, para 265 milhões neste ano. A causa do problema, no entanto, está além das questões sanitárias e econômicas: a falta de garantias no escoamento da produção do campo tem impacto sobre toda a cadeia de abastecimento alimentar e produz efeitos que ameaçam a sociedade como um todo.

O agravamento da fome das populações vulneráveis e a alta dos preços em todo o território nacional são apenas duas das consequências diretas desse problema e já começam a se manifestar. Quem vai ao mercado já notou diferença no custo dos alimentos, menos de um mês após o início do necessário isolamento social. Esse reflexo econômico se dá porque há insegurança tanto do ponto de vista da demanda direta pela produção, como da capacidade de consumo de uma população ameaçada por perda de renda e desemprego. É o que acontece quando a população está à mercê apenas da regulação de preços pela lógica de lucro privado, é preciso que o Estado participe para equilibrar essa balança.

É importante deixar claro que, quando falamos da produção de alimentos para consumo humano no Brasil, estamos falando principalmente da agricultura familiar, responsável por 70% da comida que chega à mesa de brasileiras e brasileiros. O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), de responsabilidade do governo federal e também operado por estados e municípios, foi criado em 2003 (Lei 10.696/2003) com vistas a assegurar alimentação às populações em insegurança alimentar, ao garantir a compra de produtos oriundos da agricultura familiar. Entretanto, nos últimos anos, o programa vem sendo sucateado e já não exerce o papel estrutural para o qual foi pensado.

O cenário de pandemia de coronavírus evidencia a necessidade de retomada do PAA, considerando a atual inexistência de uma política de abastecimento alimentar no país. Atenta a isso, a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) elaborou uma proposta e tem se esforçado em pressionar os governos a adotarem medidas emergenciais para minimizar uma iminente crise de abastecimento. Os pontos principais da proposta da ANA são a retomada do PAA, que possibilita a compra direta da agricultura familiar, a fim de assegurar estabilidade no campo, e atendimento à segurança alimentar dos segmentos mais pobres da sociedade.

Com adesão de 877 movimentos, redes e organizações ao redor do país, que atuam tanto no campo quanto nas cidades, a proposta pleiteia o aporte de R$ 1 bilhão no programa em caráter emergencial – valor que prevê a mobilização de 150 mil famílias de agricultores, com a aquisição de 300 mil toneladas de alimentos, nos próximos três meses. Até o fim de 2021, a ideia é atingir um orçamento equivalente a R$ 3 bilhões (a previsão inicial do governo para 2020 é de apenas R$ 186 milhões, sendo que, destes, R$ 66 milhões estão contingenciados pelo Ministério da Economia).

Coordenado pelos ministérios da Agricultura e da Cidadania, o PAA viabiliza a aquisição direta de alimentos para abastecimento de populações em situação de insegurança alimentar, mas também para o atendimento a restaurantes populares, asilos, hospitais, quartéis e outras entidades da rede socioassistencial. No auge do Programa, em 2012, ele chegou a adquirir quase 300 mil toneladas de alimentos, com 380 itens diferentes, beneficiando aproximadamente 185 mil famílias agricultoras, ao custo de R$ 850 milhões, que foram distribuídos em todo o país. Iniciativas como essa contribuíram com as políticas que levaram o Brasil a sair do Mapa da Fome, em 2014.

A verba que o Ministério da Agricultura tem anunciado, no valor de R$ 500 milhões, é, nesse sentido, extremamente limitada, além de estar voltada a poucas frentes de ação, como a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), PAA Leite e repasses aos municípios. A proposição da ANA indica que os estados sejam contemplados com os repasses, tendo em vista que esta é a metodologia do programa e dado o papel preponderante dos governadores na gestão da crise.

Ao contrário do que acontece na área urbana, o isolamento não afasta os agricultores e agricultoras do seu meio de produção, que são essencialmente, água, terra e biodiversidade. Essa é a maior evidência de que não há razão direta para crise na produção, o principal risco que se corre é a dificuldade na comercialização. Por sorte, a solução mais viável e mais rápida para ligar as duas pontas da questão (produção e consumo) já conta com uma infraestrutura legal e logística prévia razoavelmente estabelecida, mas depende da vontade política para funcionar.

A demora em abordar a questão de forma resoluta tende a aumentar a turbulência econômica no campo, durante a pandemia, o que implica em maior desestabilização em todo o país. Basta se pensar que 74% dos/as trabalhadores/as rurais atuam nesse formato e que são eles/as os/as responsáveis por 38% do PIB agrícola brasileiro, segundo o IBGE. Números consideráveis, em todos os aspectos. Da mesma forma que o Auxílio Emergencial atende a população urbana que precisa de uma renda mínima para sobreviver durante esse período de incertezas, no campo, a medida mais eficaz a ser adotada nesse enfrentamento é a garantia do escoamento e comercialização da produção.

Hoje, já são quase 14 milhões de pessoas em situação de extrema pobreza no Brasil e o governo federal tem dado mostras de que só atua em questões de cunho social sob pressão. Diante disso, o propósito da Articulação Nacional de Agroecologia é ir além do requisito a um auxílio pontual e aproveitar para promover uma retomada efetiva do Programa de Aquisição de Alimentos, dentro de uma política de abastecimento mais ampla, permanente, e capaz de compreender a importância estratégica da agricultura familiar nesse processo.

Fonte: Revista Fórum.

 

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