‘Saímos na rua e já estamos fazendo militância’: homens e mulheres trans relatam vivências e resistência em cidades brasileiras

Por Jessica Mota. Brasil hoje é o país onde mais se assassinam pessoas trans no mundo; segundo levantamento, 51% dos assassinatos de pessoas trans na América Central e do Sul aconteceram no Brasil – foram 689 mortes, a maior parte é de jovens.

Verônica Bolina cresceu em Mococa, uma cidade de aproximadamente 69 mil habitantes no interior de São Paulo, na divisa com Minas Gerais. Sua mãe, Marli Alves, percebeu que a filha era diferente quando tinha ainda 6 anos. Aos 14, Verônica decidiu se assumir completamente. O pai não aceitava. A mãe foi chamada diversas vezes na escola. Não a queriam com as roupas e o jeito de mulher. “Eu não tinha como falar não. Ela queria ser uma grande mulher”, lembra Marli, por telefone, em tom melancólico. O preconceito perseguiria Verônica pela cidade. “Teve uma vez que saí de mão dada com ela, na rua, e eu falava: ‘Filha, não olha pra trás, olha pra frente. Preconceito você vai ter pra sempre, mas não olha pra trás. Deixa os outros rirem de você. Você tem a mim’.”

Verônica queria ser cabeleireira, mas em Mococa só a aceitavam como cabeleireiro, sem as roupas de mulher. Aos 18 anos, saiu de lá e ganhou o Brasil. Começou a se prostituir, participou de concursos de modelo e fez bicos como cabeleireira. Sustentava a si e enviava dinheiro para a mãe, porteira de uma escola pública da Prefeitura de Mococa. Marli se sentia apreensiva com a distância. O último presente que recebeu da filha foram os três bombons de chocolate que Verônica enviara para ela, para o pai e para o sobrinho na última Páscoa. No domingo seguinte, Marli soube que Verônica estava presa.

É difícil saber o que desencadeou os eventos do dia 10 de abril de 2015 que levaram o rosto da transexual a estampar o caderno policial dos jornais. Marli não entende. Verônica agrediu três vizinhas do prédio em que morava na rua Frei Caneca, no centro de São Paulo, cidade onde vivia havia um ano. Uma delas, uma senhora idosa, ficou bastante machucada. Em seguida Verônica foi levada ao 2º Distrito Policial, no Bom Retiro. “Eu fiquei sem acreditar direito”, lembra Marli. “Ela tinha dado bombom pro prédio inteiro. A única coisa que falavam da minha filha era bem. Eu fui lá no flat dela, eu vi! Mas nesse domingo à noite – eu estava meio abobalhada ainda – foi que eu vi no Facebook a minha filha daquele jeito.”

A imagem de Verônica, sob tutela policial, com o rosto desfigurado, careca, as mãos para trás e seios à mostra, sentada no pátio da delegacia, tomara conta das redes e chegara até Marli. “Me deu um choque, perdi as pernas.”

Iara Guimarães, assistente jurídica e advogada do Centro de Cidadania LGBT, da Prefeitura de São Paulo, conversou com Verônica naquela mesma delegacia, três dias depois de sua prisão. A defensora pública Vanessa Vieira a acompanhou. “Ela estava muito machucada, com um discurso bem enrolado, bem complicado”, lembra Iara. O delegado queria colher o depoimento de Verônica naquele mesmo dia. Algumas horas depois de ter deixado a delegacia, Iara recebeu no celular o áudio em que Verônica afirmava ter sido possuída e ter provocado a ação, negando ter sido torturada pelos policiais. “Ela não tinha condições de ter um discurso tão claro depois de duas, três horas”, questiona a advogada.

O áudio foi gravado na delegacia onde ocorreu a tortura e compartilhado pela então coordenadora estadual de políticas para a diversidade sexual, Heloísa Alves, em um grupo de WhatsApp de membros do Conselho Estadual LGBT. A seguir a ex-coordenadora pediu que divulgassem o relato gravado. “Restaurem a verdade, por favor. Está muito claro agora que não houve tortura”, afirmou.

Não foi o que apurou a defensora Vanessa Vieira. “Ficou evidente, até mesmo por conta das fotos, que foram cometidos abusos, que realmente houve a prática de tortura naquele caso, entendendo que tortura são agressões físicas, mas também violência psicológica”, explica. “A própria questão da fotografia ter sido divulgada daquela forma, com os seios expostos. Ingressar assim na intimidade de alguém também é tortura.”

No dia 17 de abril, em audiência fechada no Ministério Público Estadual, Verônica sustentou a palavra de mulher, de que sofreu agressões no percurso até a delegacia e, depois, dentro do 2º Distrito Policial. Disse que foi agredida por “policiais de preto” e carcereiros. Teve um cabo de vassoura introduzido no ânus. E defendeu-se mordendo e arrancando um pedaço da orelha de um deles. Os policiais mantiveram também suas palavras de homens da lei. Segundo eles, a trans causou o embate e eles tiveram de usar força para contê-la. Verônica teria sido agredida por outros presos.

Marli conseguiu ver a filha quatro dias depois de sua prisão. “Não teve lugar que eles não machucaram”, lembra. Não tiveram como conversar muito. Marli ainda hoje permanece sem explicação. Uma vez por mês, se corresponde com a filha, por carta. A investigação contra os policiais e carcereiros pelas agressões corre em sigilo, conduzida pelo Grupo de Atuação Especial de Controle Externo da Atividade Policial do Ministério Público de São Paulo.

Hoje Verônica está presa no Centro de Detenção Provisória 3, em Pinheiros. Responde por dois processos de crimes contra a vida, com nomes diferentes. Em um deles, no qual a vítima é sua vizinha, é uma mulher acusada de tentativa de homicídio. No outro, cujas vítimas são os carcereiros, responde por lesão corporal grave através do nome masculino que abandonou em Mococa.

A menina Laura

Os policiais militares e o médico que acompanhavam Laura Vermont nos seus últimos momentos de vida não viam naquele corpo estendido a menina que Laura sempre foi. A todo momento chamavam Laura de “ele”. Foram Jackson Araújo e a esposa, Zilda Laurentino, pais de Laura, que a encontraram estendida no chão a duas quadras de sua casa, na Vila Curuçá, zona leste de São Paulo. A família mora ali há 30 anos e foi nesse mesmo bairro que Laura nasceu e cresceu. Ao seu lado estavam os policiais que hoje são investigados pelo homicídio da jovem. Era dia 20 de junho de 2015, 4h50 da manhã.

Muito machucada no rosto e nas pernas, Laura sangrava. Ainda estava viva, e a mãe pôde distinguir uma palavra de sua boca: polícia. Havia um tiro em seu braço esquerdo e de sua cabeça jorrava o sangue. “Meu carro até hoje tem marca de sangue. Ninguém quis colocar a mão para ajudar, nem para ajudar a colocá-la no carro”, lembra Zilda com indignação. “Os policiais falaram que não iam colocar a mão porque [Laura] podia estar contaminada pelo HIV. Inclusive pediram pra eu levar os exames pra eles verem. Porque eu falei que a minha filha não tem nenhuma doença e que eu tinha a prova disso, eu tenho os exames.”

O casal colocou Laura no carro. Aturdidos e em choque, os dois seguiram pelo caminho indicado pela viatura policial. Dirigiram por cerca de vinte minutos até o Hospital Municipal Prof. Dr. Waldomiro de Paula, em Itaquera. “Quando ela foi lá pra dentro, eu saí, olhei pelo vidrinho, e vi o médico conversando com o polícia, mas ele nem foi lá pôr a mão nela”, se ressente Jackson. “O outro policial falou: é pura droga, pura droga. Eu falei um palavrão. Fui obrigada”, diz a mãe. “E se fosse drogada, se tivesse HIV? É um ser humano igual todo mundo é! Jamais poderiam se referir assim, ainda mais sendo um pessoal da lei, que é para nos proteger.” Laura morreu em consequência de um traumatismo craniano, sem tentativas de ressuscitação. No dia 21 de novembro, completaria 19 anos.

A morte de Laura, porém, começou muito antes de ela chegar ao hospital. Os pais contam que ela havia saído para a balada, como sempre fazia, e voltava a pé quando foi agredida por cinco rapazes. Levou socos e pauladas. Caminhando, chegou a um posto de gasolina. Foi um funcionário desse posto que filmou Laura ensanguentada com seu celular e avisou Jackson.

Ainda atormentado, o pai relembra os muitos “ses” que poderiam ter salvado a filha. Se o motorista de um ônibus que passou tivesse aberto a porta quando Laura correu em sua direção. Se o funcionário do posto de gasolina que a filmou tivesse ligado antes. Se os motoqueiros que ficam no mesmo posto tivessem intervido contra os agressores. “Tô com uma raiva que você nem imagina. Todo mundo aqui conhecia minha filha.”

Na primeira versão que deram, quando registraram o boletim de ocorrência, os policiais que atenderam Laura não revelaram terem sido autores de agressões e do tiro que atingiu o braço da menina. Eles instruíram um rapaz para que corroborasse suas versões dos fatos. Mas não demorou muito para que a delegada Ivna Schelble, do 63º Distrito Policial, descobrisse a farsa. Segundo os policiais, o tiro foi motivado pela resistência de Laura. Mas o laudo necroscópico aponta que o tiro partiu de baixo para cima, o que indica a possibilidade de Laura já estar rendida no momento da agressão. A polícia civil ainda investiga os acontecimentos daquela madrugada. Os policiais militares foram presos no mesmo dia do ocorrido, mas soltos quatro dias depois por ordem judicial. Os cinco rapazes acusados de espancar Laura confessaram o crime e hoje respondem em liberdade.

Laura teve seu caminho interrompido antes mesmo dos eventos que levaram a sua morte. Ela também não conseguiu completar os estudos. Tentou estudar em três escolas diferentes, uma delas particular. “Quando ela ia, o pessoal fazia piada”, conta Jackson. “A pessoa quer estudar e o pessoal fica julgando, falando, aí não consegue! Eu fui numa escola que quase brigo com um monte de gente lá”, lembra o pai. A solução temporária foi tirá-la da escola. A família planejava montar um salão de beleza para que Zilda e Laura trabalhassem juntas.

Jackson perceberia os olhares de preconceito ainda depois da morte da filha. “Até no Fórum [Criminal da Barra Funda], a gente foi fazer uma manifestaçãozinha lá do lado, pôs camiseta, tudo, e os policiais do Fórum queriam pôr nós pra fora. Falavam: ‘É a travesti’. E aí viravam a cara”, relata. “E muita gente que tava indo pro Fórum perguntava quem é, ‘era travesti, minha filha’. ‘Ah tá!’, e viravam a cara.”

Desde a morte de Laura, Jackson abandonou a padaria que sustentava a família. Deprimidos, ele e a esposa esperam pela justiça. Hoje a Defensoria Pública do Estado de São Paulo planeja entrar com um pedido de indenização contra o Estado pelo homicídio da jovem.

A violência naturalizada

Para Symmy Larrat, coordenadora-geral de Promoção dos Direitos LGBT da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, a morte de Laura impressiona, mas não é um fato isolado. “Se fosse um crime envolvendo um homem cisgênero heterossexual, seria diferente. Assim como se fosse uma mulher cisgênera”, diz, referindo-se àqueles que se identificam com o gênero designado ao nascer. “Mas, por tratar-se de uma trans, o que acontece? A gente é vista por muitas pessoas como culpadas pela violência que acontece conosco, por sermos quem somos.”

Pessoas trans são aquelas que não se identificam com o gênero que lhes foi designado ao nascerem. Homens trans são pessoas que tiveram o gênero feminino atribuído a elas quando crianças, mas que se veem como homens e reivindicam esse reconhecimento, social e legalmente. Da mesma maneira, mulheres trans tiveram o gênero masculino atribuído na infância, mas se reconhecem com o gênero feminino.

O Brasil hoje é o país onde mais se assassinam pessoas trans no mundo, segundo a organização Transgender Europe, que reuniu dados de janeiro de 2008 a dezembro de 2014. De acordo com o levantamento, 51% dos assassinatos de pessoas trans na América Central e do Sul aconteceram no Brasil – foram 689 mortes contabilizadas no país. A maior parte é de jovens. Entre os casos brasileiros levantados pela organização, chamam atenção cinco mortes de crianças e adolescentes com menos de 15 anos.

Em 2014, uma menina trans de 8 anos foi espancada no Rio de Janeiro até a morte pelo pai, que queria ensiná-la a se comportar como homem. No mesmo ano, uma garota de 14 anos foi encontrada estrangulada em uma casa na cidade de Angélica, Mato Grosso do Sul. Em 2013, duas adolescentes foram estranguladas em Macaíba, Rio Grande do Norte, e na zona rural de Ibiporã, no Paraná. Outra jovem foi morta a tiros por estranhos que a atacaram na rua em Maceió, Alagoas. Os casos foram reunidos pela internet em cooperação com organizações e ativistas trans no Brasil e no mundo todo. “Na maioria dos países, dados sobre a população trans assassinada não são produzidos sistematicamente, e é impossível estimar o número de casos não reportados”, ressalta o relatório.

No Brasil, dados oficiais são escassos. “Todos os cadastros públicos levam em consideração o Censo, e não estamos incluídas no Censo. Isso dificulta muito”, explica Symmy. Como a política de segurança pública é de atribuição estadual, cada estado se organiza de uma forma. Geralmente os boletins de ocorrência não possuem campos que assinalam orientação sexual e identidade de gênero das vítimas, ou a possibilidade de os crimes cometidos terem uma motivação homofóbica ou transfóbica. “Acaba-se subnotificando pessoas trans nesse processo”, constata a coordenadora.

Em São Paulo, a Coordenação de Políticas para a Diversidade Sexual, órgão estadual, concluiu recentemente um grupo de trabalho que estabeleceu a inclusão do campo homofobia/transfobia nos boletins de ocorrência como possível causa de agressão. “Ter essa informação é fundamental para subsidiar políticas públicas – e para demonstrar o quanto é importante criminalizar a LGBTfobia, reconhecendo que esta é a motivação para muitos crimes contra a pessoa”, acrescenta a atual coordenadora, Soninha Francine. Não há informação de quando a norma passa a vigorar.

Os dados mais atualizados produzidos pelo governo federal estão no último balanço semestral do Disque Direitos Humanos, o Disque 100. De acordo com o balanço, as denúncias de discriminação, violência física e psicológica são as mais recorrentes entre a população LGBT e também entre a população trans.

Em 2011, travestis e transexuais representavam 10,11% do total de denúncias do universo LGBT, mas naquele ano 89,88% dos casos denunciados não tinham o perfil da vítima identificado. Em 2014 esse número caiu para 48,76%.

Em 2013, as denúncias de violências cometidas a travestis e transexuais somam 17,74% do total, atrás apenas daquelas que vitimaram gays (24,50% dos casos). Em 2014, os casos em que as vítimas eram trans representaram 19,88% do total de vítimas do universo LGBT, enquanto os gays totalizaram 20,05%. Em todos os anos, a maioria das vítimas é jovem, de 18 a 24 anos. Já no primeiro semestre de 2015, travestis e transexuais foram 20,58% das vítimas de violências comunicadas ao Disque 100, um quinto do total de denúncias entre vítimas bissexuais, gays, lésbicas e identidades não informadas.

A subnotificação da violência à população trans acontece também pelo medo de retaliação, já que muitas vezes ela parte dos próprios agentes públicos do Estado – como nos casos de Verônica e Laura. “E aí essas denúncias chegam para gente, por exemplo, de forma confidencial, através de conversas no Facebook… Todos os dias estou recebendo fatos novos de assassinatos de pessoas travestis e transexuais, fatos novos de denúncias de violência praticada de toda espécie”, relata Cris Stefanny, presidente da Associação Nacional de Travestis e Transexuais, a Antra. “Recebemos respostas extremamente evasivas [das secretarias de Segurança Pública], apenas dizendo que a polícia recebe instruções para o respeito. Tudo bem, mas na prática isso não acontece. Quais são os mecanismos de controle e de que forma a Segurança Pública pode inibir esses índices de violência, inclusive praticados pelas forças de segurança? Isso que nós gostaríamos de receber como resposta.”

Quando a experiência é um tapa na cara 

Além da violência, as pessoas trans sentem a agressão latente da não aceitação social. No ambiente familiar, escolar ou profissional, de onde geralmente são expulsas, é quase impossível ser trans sem dificuldades – ainda que o respeito ao nome e à identidade de gênero na escola seja um direito garantido.

“A maioria está no mercado do sexo justamente por não conseguir oportunidade no mercado legal de trabalho”, explica Cris. A Antra estima que 90% das travestis e mulheres trans sejam prostitutas. “Não tem como você virar uma esquina sem sofrer os olhares tortuosos, os comentários maldosos. As pessoas não conseguem assimilar que uma travesti pode ter um emprego formal. Quando uma travesti sai na rua, a primeira coisa que o sujeito faz é parar o carro e perguntar quanto é o programa”, diz Cris.

“Essa violência que as meninas sofrem tanto em situações de vulnerabilidade de exposição são violências que dificilmente a gente vai sofrer”, explica Luciano Palhano, presidente do Ibrat (Instituto Brasileiro de Transmasculinidade). Ele se refere ao fato de os homens trans não estarem tão expostos quanto as mulheres. Por isso, sofrem outro tipo de violência.

Ele relata que homens trans são vítimas constantes de estupros e de violência doméstica. “Ficam em casa, sofrem violência da família, continuam se submetendo a coisas que a família impõe. Dificilmente vão ter uma atitude empoderada de sair de casa e enfrentar a vida, até porque nem a alternativa da prostituição a gente tem. Essa invisibilidade é muito mais no âmbito privado, principalmente em decorrência do processo de criação. Ser criado pra ser mulher é diferente de ser criado pra ser homem.”

Luciano relembra a história de Brandon Teena, um rapaz trans do interior do Nebraska, nos Estados Unidos, cuja história foi adaptada no filme Meninos não choram. “Ele foi estuprado e assassinado. Não é incomum a gente ouvir essas histórias de que, quando descobrem que o cara é trans, ele acaba sofrendo mais violência”, conta Luciano, que foi ele mesmo vítima no último emprego que teve, como garçom em um hotel no Recife, onde morava antes de ir para São Paulo. “Em determinado momento, os outros garçons descobriram que eu era trans. Eu não sei como acabou vazando a história, mas eles uma vez invadiram o banheiro [masculino] pra ver se eu tinha vagina. Me seguraram e depois ficaram me assediando o tempo todo”, relembra. “Saí do emprego e não consegui provar nada. Era minha palavra contra a deles.”

Grazielle Tagliamento, professora da Universidade Tuiuti, no Paraná, e pesquisadora do Núcleo de Estudos para a Prevenção da Aids, da USP, tem uma percepção muito clara do que motiva esse ciclo de desrespeito e violências. “A existência dessas pessoas é um tapa na cara”, sentencia.

Grazielle trabalha há 15 anos com a população trans e desde 2010 acompanha como psicóloga os processos do Sistema Único de Saúde para a cirurgia de redesignação sexual. “A existência dessas pessoas é a quebra da visão binária que a gente tem, tão linear. E isso incomoda. Muita gente quer que o diferente suma daqui – e suma mesmo.”

Outras violências

Camila Godoi é professora há 20 anos. Ensina no curso de Engenharia Civil em uma universidade privada de Campinas, leciona química e física em cursinhos preparatórios para o vestibular e no Ensino Médio de escolas privadas. Em maio, depois de comunicar a duas escolas onde trabalhava no interior de São Paulo, uma em Jacareí e outra em Jundiaí, que ela era uma mulher trans, Camila foi demitida.

“Meu planejamento era me assumir como mulher para o grande público no ano que vem. Tinha pessoas mais próximas que já sabiam, mas eu fui surpreendida com essas demissões, e acabou gerando toda essa exposição”, conta ela. A repercussão veio não só do fato de ter sido demitida por anunciar sua transgeneridade, mas pela campanha que alunos e amigos iniciaram em sua defesa, com o mote #SomosTodosCamila.

Em Jundiaí, funcionários, mantenedores da instituição e toda a comunidade acadêmica tiveram acesso à informação da transgeneridade de Camila e a acolheram. O problema foi com os donos da empresa. Em Jacareí somente os donos da escola ficaram sabendo. “Alegaram corte de gastos, embora eu tenha sido a única professora demitida no Ensino Médio. Em Jundiaí teve um e-mail da direção falando que a minha condição enquanto mulher transgênera ia de encontro aos valores cristãos da empresa”, lembra.

O plano meticuloso que Camila havia bolado para fazer sua transição, após anos de autorrepressão, havia ido por água abaixo. “Eu tenho certeza que, se tivesse me assumido como trans ou mostrado qualquer traço de feminilidade, teria sofrido muito, a ponto de nem concluir o Ensino Fundamental”, diz Camila, que viveu a infância e a adolescência em Santos durante o regime militar. “Houve um período em que eu me reprimi ao ponto de ter uma amnésia sobre isso. Me reprimi a ponto de ninguém desconfiar, e construí minha carreira. Minha preocupação sempre foi a questão do emprego. Até que a coisa ficou muito forte. Precisava me assumir como mulher.” Hoje ela processa as instituições por discriminação, apoiada na Lei Estadual nº 10.948, de 2001.

Para Patrícia Cabral, a realidade foi diferente. Desde jovem ela assumiu sua transexualidade e sofreu sanções por isso. “Eu tinha uma mala de escola e por baixo tinha um monte de bonecas. Fazia trato com os meninos da rua. Ganhava muito brinquedo de menino, aí eu ia na casa dos que tinham irmã e via as bonecas. Eles pegavam tal boneca e eu dava o tal brinquedo pra eles”, lembra, sobre a infância em Capão Bonito, no interior de São Paulo.

Ainda adolescente, Patrícia decidiu procurar emprego e foi morar com um grupo de amigas trans. “Teve a fase que a gente era gay porque precisava trabalhar. Não tinha como conseguir trabalho travestizinha”, conta. “Então todas cortavam o cabelo, começavam a usar roupas de menininho. Depois de tanto quebrar a cara, deixava o cabelo crescer. A gente tinha a mesma cruz que um presidiário tem. Sempre tem aquele negócio ‘ai, mas é bicha, é viado’. É assim. A gente acabou caindo na prostituição.” Dos 16 aos 19 anos, ela e as amigas passaram a rodar por todo o estado de São Paulo. Até que pararam em Sorocaba.

A prostituição levou Patrícia ao vício em álcool e crack. Teve de sair de Sorocaba. Ia ser recebida por um primo, em São Paulo, mas ele nunca apareceu. Dormiu dois dias no Terminal Barra Funda, na zona oeste, e passou cinco meses entre a rua e o albergue. “No albergue foi horrível. Eu tive que ir para um albergue masculino e era a única travesti no meio de 400 homens, usando banheiro que não tinha porta. Todo mundo no mesmo horário”, lembra ela com desgosto. Foi a situação de desamparo que deu forças a Patrícia para largar as drogas. Hoje, com 32 anos, ela está casada e faz bicos como costureira.

Para Samuel Silva, um jovem de 22 anos, o entendimento de sua identidade veio quando descobriu que havia outras pessoas no mundo como ele. Mas não sem passar por um processo árduo. “Eu me cortava, odiava o meu corpo, tinha oscilações de humor. Tinha uma série de problemas e tive que ser internado cinco vezes em dois anos”, lembra. “Minha última internação foi logo depois que fiz a prova de transferência para a Cásper [Líbero, faculdade de comunicação em São Paulo].” Samuel teve de trancar a faculdade por um ano e foi durante esse período de internação psiquiátrica que ele entendeu que era um homem trans. “Eu conheci uma mulher trans na clínica e ela abriu meus olhos pra comunidade trans. A relação dela com o corpo dela, com as roupas dela, fez eu me enxergar nela.”

Criado por uma família religiosa, ele não tivera contato com as informações que precisava para entender o que se passava com ele. “No ano seguinte voltei e requeri meu nome social”, relata ele. “Foi um pouco difícil. Eu tive que ter uma reunião com o diretor e com o coordenador do curso. Foi de certa forma violento porque tive que ouvir um monte de coisa.” Samuel acusa o ex-coordenador do curso de Publicidade da faculdade de ter dito que ele havia “enjoado” de ser menina. A situação se complicaria mais tarde.

Segundo Samuel, ao reclamar de uma prova pelo Facebook, a professora responsável pela disciplina respondeu por e-mail copiando os demais colegas de classe e afirmou que, das quatro turmas, Samuel havia sido o único aluno com dificuldades. “Talvez lhe falte repertório, talvez lhe falte domínio de idiomas, talvez lhe falte o que fazer”, afirmou ela.  Alguns colegas tomaram partido da professora e Samuel começou a receber mensagens de ódio de um colega de classe. Quando a situação parecia insustentável, ele tentou participar de uma reunião envolvendo o então coordenador do curso e o tal colega de classe. Discutiram, e Samuel alega ter sido chamado pelo ex-coordenador pelo seu antigo nome, além de ter sido tratado por adjetivos e pronomes femininos. Ele disse que saiu correndo e, chorando, esbarrou no professor.

O docente acusou Samuel de ter-lhe dado um soco. O rapaz foi expulso, assim como a professora. O coordenador do curso foi convidado a se manter como professor, mas pouco depois se desligou da instituição. No dia 9 de outubro, a faculdade emitiu uma nota. “Ainda que tenha havido desentendimento entre o aluno e a professora, nada justifica a agressão física do aluno contra o coordenador do curso. Por isso, a instituição comunica a transferência compulsória do aluno para uma instituição que o atenda”, informou. Samuel afirma ter sido vítima de transfobia. Hoje, pede readmissão na faculdade para ele e para a professora.

O caso ganhou repercussão e, em entrevista à VICE, a professora afirmou que Samuel não diz a verdade. “Ele falou pra vários jornalistas que eu não gostava dele, que a classe é transfóbica. Eu sei que talvez você possa não acreditar em mim. Vocês [jornalistas] estão todos combalidos pela situação do pobre Samuel, mas não é verdade isso, não. Ele arrasou com muitas vidas.”

Assim como as mulheres, os homens trans também são marginalizados quando buscam a educação e o emprego formal. “Passei um ano inteiro fazendo entrevistas de emprego. Lá em Recife eu passava em todas as entrevistas, sem dizer que era trans”, conta Luciano, em uma tarde de outubro, na sala de seu apartamento no centro de São Paulo, onde vive com a esposa e uma cachorrinha. “Na hora de me contratarem, eu entregava o documento [com o nome feminino de nascimento], e eles inventavam qualquer desculpa. O único lugar que eu consegui emprego era o telemarketing, porque ninguém precisava me ver.”

Ainda um distúrbio

Atualmente, o Ministério da Saúde e o Conselho Federal de Medicina se guiam pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, produzido pela Associação Americana de Psiquiatria. No manual, a transexualidade é classificada como um distúrbio. O “transexualismo” também é considerado uma patologia pela Classificação Internacional de Doenças. “Colocar como um caráter de doença e de desvio maximiza todo esse processo de estigmatização, contribuindo cada vez mais para a violência, para a morte física e social das pessoas trans”, acredita a pesquisadora e psicóloga Grazielle Tagliamento.

O Conselho Federal de Psicologia agora participa do movimento internacional pela despatologização da transexualidade e da travestilidade (veja o vídeo da campanha aqui). Grazielle explica que a transexualidade passaria a ser considerada um estado que requer um procedimento, e não uma cura. “Busca-se com isso não precisar de um laudo de um psiquiatra ou psicólogo para que a pessoa possa fazer parte do processo transexualizador. A fila diminuiria e as pessoas não teriam seu direito negado.” Ela se refere ao tratamento garantido pelo SUS (Sistema Único de Saúde). Desde 2008, quando foi publicada a Portaria nº 457 pelo Ministério da Saúde, o SUS oferece o acompanhamento de saúde integral aos trans, com equipes formadas por médicos das áreas de endocrinologia, ginecologia, urologia, obstetrícia, cirurgiões plásticos, psicólogos e psiquiatras, além de enfermeiros e assistentes sociais. Existem no Brasil cinco centros hospitalares habilitados para oferecer a cirurgia. Um deles é o Hospital das Clínicas, que fica em São Paulo.

Nem todas as pessoas trans desejam realizar a cirurgia, mas muitas desistem pela demora. Foi o que aconteceu com Patrícia Cabral. “Eu fiquei três anos na fila de espera só pra marcar com a psicóloga. Dali eu ia ficar dois anos com ela, pra ela me dar a carta e falar assim: ‘Ela tem o direito’. Aí eu ia pras Clínicas brigar por uma vaga pela cirurgia. Conheci pessoas que estavam na fila há 16 anos”, conta.

Pagar uma cirurgia como essa por consultas particulares também é inviável para a maioria da população: o preço chega a R$ 40 mil. “Hoje em dia, a fila de espera para um procedimento como a cirurgia genital está para dez anos”, conta o médico psiquiatra Daniel Mori, que há quatro anos é colaborador do Ambulatório de Transtorno de Identidade de Gênero e Orientação Sexual, o Amtigos.

O problema vai além da espera, aponta Daniel. “A violência leva à exclusão”, observa. “São pessoas mais vulneráveis a vivências de agressões físicas e verbais. Isso tudo pode gerar uma angústia muito forte, sentimentos de tristeza que podem deixar as pessoas mais vulneráveis também a transtornos mentais, como ansiedade e depressão. As pessoas transgêneras têm maiores índices de suicídio, de depressão, de rejeição social e familiar, têm índices maiores de dependências de substâncias.”

Além disso, muitos profissionais não estão preparados para lidar com as pessoas trans. “O que acontece muito ainda é que os profissionais de saúde estão inseridos na cultura onde se considera ‘o que é ser uma mulher de verdade’ e ‘o que é ser um homem de verdade’.” Como em uma espiral, o estigma contamina também o atendimento em instituições públicas – pelo desrespeito ao nome social ou pela recusa de alguns médicos em tratar essas pessoas. “As leis são colocadas em prática por pessoas. Enquanto nós não discutirmos as questões de gênero e com isso conseguirmos reduzir a estigmatização com a população trans, essas barreiras vão continuar”, conclui a psicóloga.

Vários corpos, uma luta

É por isso que Amara Moira quase não consegue descansar. Entre palestras, viagens e convites de entrevista, ela estava aliviada por ter um intervalo para ir ao cinema. Desde que fez sua transição e começou a militar no Coletivo Transtornar, da Universidade de Campinas, onde hoje cursa o doutorado em Teoria Literária, tornou-se uma porta-voz da militância trans.

Foi durante o doutorado que ela começou a assumir sua identidade. “Eu fui conhecendo as pessoas trans e tendo contato com o ativismo nas redes sociais, que está em grande evidência pelas páginas Travesti Reflexiva, da Daniela Andrade, da Hailey Kaas… Essas pessoas começaram a me mostrar que tinha espaço para as pessoas que transicionassem”, conta ela, que é natural de Campinas. “Eu tinha muito medo de ser expulsa de casa, perder meus amigos, meu direito de continuar estudando. Isso foi me vedando durante muitos anos. Pra mim, não demonstrar nenhuma feminilidade era uma questão de sobrevivência.”

No dia 30 de abril, ela foi a uma loja de departamentos, trocou todo o guarda roupa por roupas femininas e, no dia primeiro de maio, na Feira LGBT da República, apareceu, pela primeira vez, Amara. Vestida com a camisa do Palmeiras, saiu na rua e uma velhinha a cutucou: “Tem alguma coisa errada na sua roupa”. Amara se assustou e esperou pela continuação. “A etiqueta está pra fora.” “Aquilo me deu um alívio!”, lembra ela, rindo da situação.

No processo de crescente mobilização e articulação política, a persistência das pessoas trans é o que garante a sua existência. “Nós não temos como esconder: está no corpo, está na alma, está no nosso modo de se vestir. Saímos na rua e já estamos fazendo militância”, declara Cris Steffany, presidente da Antra.

Da criança que sonhava em usar terno e frequentar a igreja com a família, o pernambucano Luciano Palhano, que hoje estuda para ser cantor, cresceu e reconhece o valor da sua identidade trans. “Hoje, a muito custo – e não foi sempre assim –, eu tenho orgulho de ser trans, de ter tido a experiência como mulher e de poder transitar entre esses dois universos. É um privilégio”, sentencia com uma gostosa risada. E entoa suave e baixinho uma canção de Gilberto Gil: Um dia/ Vivi a ilusão de que ser homem bastaria/ Que o mundo masculino tudo me daria/ Do que eu quisesse ter/ Que nada/ Minha porção mulher, que até então se resguardara/ É a porção melhor que trago em mim agora/ É que me faz viver.

Avanços

Na esteira da mobilização social, algumas vitórias têm sido colecionadas. Foi através da ação de militantes e organizações da sociedade civil que o Núcleo Especializado no Combate à Discriminação, Racismo e Preconceito nasceu na Defensoria Pública de São Paulo, por exemplo.

Recentemente o Tribunal de Justiça de São Paulo determinou medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha a uma trans ameaçada por seu ex-namorado. O pedido havia sido primeiro negado pelo fato de a vítima ser biologicamente do sexo masculino, mas na decisão final o entendimento foi que a lei deve ser interpretada de forma a não ofender o princípio da pessoa humana.

Em setembro, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) decidiu que profissionais travestis e trans poderão ter seu nome social na carteira da OAB. Em outubro, Rodrigo Janot, procurador-geral da República, emitiu um parecer ao STF (Supremo Tribunal Federal) que defendia o direito de uma transexual usar o banheiro público feminino – a decisão do STF poderá ser aplicada a outras situações como essa.

A partir do diagnóstico de exclusão social das pessoas trans, a Prefeitura de São Paulo criou o Programa Transcidadania, que trabalha para a autonomia, educação e profissionalização dos participantes. O programa é o primeiro do tipo no país e já tem cem participantes – a maioria é mulher, mas também há homens trans. O programa faz a ponte com instituições para garantir a conclusão dos estudos básicos, um curso técnico profissionalizante e um estágio na profissão que desejam seguir, e os participantes recebem uma bolsa de R$ 870.

A iniciativa começa a render frutos: um terço das pessoas trans e travestis inscritas no Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) em São Paulo faz parte do Programa Transcidadania – 27 entre as 89 pessoas autorizadas pelo Ministério da Educação a se inscrever pelo nome social no estado.

Texto publicado originalmente na Agência Pública

Foto: Reprodução/Opera Mundi

Fonte: Opera Mundi

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