Rodar a baiana, anular o voto em Florianópolis

anarcofunkPor Carmen Susana Tornquist.

O medo do rico é que o pobre desça da favela

 e comece a questionar
Tudo o que existe cá
O medo do rico é que o pobre erga a sua mão
E questione a propriedade

e que faça o arrastão

 Roda a baiana

 desce do morro e ocupa o aslfato

(Anarkofunk)

Ando em busca de palavras  justas  pra nomear  o mix de sentimentos e experiências  recentes vividas neste pais. É susto, estarrecimento,  amargura, raiva. Impotência. Temos resistido, aqui e acolá, nas ruas, nas redes virtuais, nos lugares onde trabalhamos, nas coisas que fazemos, adesivos no peito e palavras de ordem. Mas é tudo  muito pouco.Tudo parece irreversível. Parece que estamos resistindo ao surreal meio que as cegas, sem rumo, na pura reação. E são muitos os convites à auto-alienação e  à fuga, ao ensimesmamento  voluntário. A velha e poderosa consigna “disso eu não quero saber” é, como sempre, a saída mais fácil e a menos dolorosa – mas pode ter consequências a médio e longo prazo. “Vou tocar a minha pessoal, agora, já que a política é este circo de horrores, esta caixinha de maldades.”(Alguém ta conseguindo “ tocar a vida pessoal” com entusiasmo neste contexto? Socorro, porque eu não estou ‘sentindo nada” que me alivie o coração!).

E no meio do golpe, tem as eleições municipais. A ressaca tá tão grande  que nem sei o que os partidos e as organizações  ditas de esquerda estão propondo ou defendendo. Mas, na minha singela e solitária avaliação, não tem menos pior para a prefeitura de Floripa. Tanto Ângela quanto Gean são farinhas do mesmo saco e acho que nem devemos perder  nosso precioso  e escasso tempo  tentando  destilar uma diferencinha aqui e acolá entre os dois. Temos trabalhos  mais urgentes,  como  construir uma grande greve geral no país, e  contribuir com a construção do “poder popular”  pra deter as reformas em curso no mundo e no Brasil.

Lembro diretinho do cenário trágico de como foi a chegada ao “poder” do primeiro governo da Angela (Amin), inaugurando a era trágica  na qual a cidade virou   uma mercadoria  a venda, fatiada em  condomínios, beach clubs, campos de golf. Os que vieram depois da primeira mulher prefeita da cidade(!) só fizeram aprofundar o  trabalho  iniciado por ela. O resultado é esta cidade fake, com índices mentirosos  ( porém, potentes) de qualidade de vida , uma mega  segregação de pobres de um lado, ricos de outro, prédios  de luxo vazios e engarrafamentos cotidianos. A violência policial contra jovens e negros das comunidades pobre. Com mortes. Aquela mesma cidade, aquele mesmo projeto, encampada por Ângela Amin, foi   tocada em frente pelos seus seguidores: todos os prefeitos que vieram depois  seguiram este projeto, acompanhados pela imensa maioria dos vereadores. O grupo de E. T. C. expressou bem este projeto, com três simples palavrinhas :  “cidade a venda”. Esta foi a razão de sua criminalização pelo  prefeito que agora vai, para entrar um outro igual.

Como a realidade é dialética e há resistência e contrapoder por todos os lados, ao longo do processo muitas coisas  boas  foram sendo feitas, resistências lutas e embates.

Lutas pelo Plano Diretor Participativo, a memorável tomada do TAC, incríveis assembléias nos bairros, a velha e bela luta pela Ponta do Coral. A ocupação Amarildo, escancarando a verdade nua e cria da cidade segregada e violenta, preconceituosa e contra as leis. Outras pequenas ocupações. Várias  revoltas da catraca,  pela tarifa zero,  no auge do verão, quando ninguém aposta em resistência numa cidade que se diz destinada ao turismo. Isto sem falar nas compras coletivas,  hortas comunitárias, agricultura urbana, feiras agroecológicas, espaços artísticos e experimentos culturais alternativos, reconhecimento de comunidades quilombolas, universidade popular, SAPO e a lista segue. Recentemente,  aconteceu um evento na UFSC, chamado Floripa Cidade utópica. Achei esta idéia fantástica pois de fato  há em Floripa   incontáveis experiências concretas, locais, pontuais e  maravilhosas, semeaduras daquele  outro mundo possível , do qual tanto se falou no inicio dos anos 2000, com entusiasmo.

É impressionante como todas  estas pulsões sociais, vivas e criativas, não fazem quase nenhum efeito na chamada “democracia representativa’. Assim como no Planalto, aqui também  há um  absoluto descompasso entre a vida nas ruas e os caras que, paradoxalmente, são eleitos por “nós”, para  ditarem as leis.

Com uma esperança aqui outra acolá, a gente vai levando a nossa “crença” neste sistema que uns chamam de democracia representativa, e que Atílio Boron  prefere dizer  capitalismo democrático. Vamos recorrendo, neste âmbito, a votar no menos pior, ou,   como tenho escutado cada vez mais, votar na pessoa!  Alguma coisa vai muito mal quando a alternativa de esquerda é votar em pessoas!

No livro Ensaio sobre a Lucidez, José Saramago relata uma situação incrível na qual os eleitores simplesmente não saíram para votar. Tiveram que fazer nova eleição, pois o desânimo era tanto, que ninguém quis sequer sair da cama para ir às urnas. Parecia que havia um golpe no ar – da parte dos eleitores- , mas simplesmente eles não viam mais sentido naquele ato mecânico e reprodutivo da mesmice. Temos com eles alguns pontos em comum, em especial a falta de  ânimo. E  um golpe.

Sei que houve tentativas de articular os descontentes e indignados  do chamado campo de esquerda no início deste ano, para pensar algo em conjunto no primeiro turno destas mesmas eleições. A idéia foi boa, mas parece que não logrou passar por cima de diferenças e costurar alianças entre os partidos que se reivindicam socialistas, de esquerda, etc. Imagino que tenha sido muito difícil, mesmo, pois na minha avaliação os vários anos de governos petistas separaram muitos de nós, eis aí uma conversa difícil, longa e dura.  E em um contexto eleitoral é ainda pior, pois a lógica do capitalismo democrático adentrou em muitos de nós, partidos e ate pessoas, tomando o lugar da utopia, da estratégia, do projeto político socialista.  O debate é complexo, precisa de tempo.

Mas  talvez agora, face a este segundo turno, possamos fazer algo juntos.

Este algo juntos, a meu ver, é o voto nulo coletivo, um voto que escancare o quanto estamos insatisfeitos com a indústria eleitoral, com a palhaçada que virou o parlamento, com o que fizeram com a nossa cidade.  Esta velha idéia já apareceu muitas vezes em momentos como este e muitos de nós, os que não somos anarquistas, é claro, o fizemos discretamente. Proponho que demos publicidade ampla a esta opção, e a façamos acompanhar de uma reflexão. Quem sabe pequenos arrastões de idéias em terminais de ônibus, escolas, locais de trabalho, postos de saúde.

Acredito que  os movimentos sociais, as organizações políticas, artistas e intelectuais de esquerda de Floripa,  temos “café no bule” suficiente para fazer  desta opção individual um protesto coletivo.  Acredito francamente que podemos  convencer mais gente – já descrente, já de “cara”-  a fazê-lo também.  Gean e Ângela não nos representam.

Que pelo menos não possam mais dizer que foram “consagrados pelo voto”.

Que tenham menos paz.

Que esta movida não seja um fim em si mesmo, mas que faça parte deste caminho que temos que retomar com  passos mais largos e mais certeiros, agora.

 Se não há  igualdade para os pobres

Que não haja paz para os ricos

Carmen Susana Tornquist é pesquisadora do LUTE- Lutas, Trabalho e Educação e professora do PPGPLAN- UDESC.

 Imagem: Captura de tela.

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