Retrospectiva: “A história que ocorre no interior da ferrugem dos esperançosos”

Imagem: Pixabay.
A coruja dos esperançosos

Por Carlos Weinman, para Desacato. info.

As expressões da arte imitam a vida, trazem para o espectador a imagem do real através do simbólico, talvez isso ocorra pelo fato da vida ser construída de percepções estéticas que, em geral, os seres humanos desaprenderam a ter a percepção de sua beleza. O artista tem a incumbência de fazer despertar, observar e enxergar a maestria engendrada na vida dos meros mortais humanos, que esqueceram dessa percepção e se dão o luxo de perder vários dias de suas vidas por causas medíocres.

Nesse modo de ver as coisas, a vida para o amanhã é o impulso e a única razão, mas o dia seguinte só reserva aos mortais a incerteza, é a referência do futuro, que corresponde ao devir, o que ainda não é e, talvez, nunca seja. Aliás, muitos negam a vida, diria o filósofo Nietzsche, em nome da ideia do amanhã. Essa loucura, do ponto de vista dos viajantes que tem sede pela vida, onde o brilho do olhar não é ofuscado pela rotina, tenta ganhar voz de razão com muitas expressões, que de alguma forma fazem parte do jogo artístico entre os vários atores sociais, entre as expressões está a ideia em que haja o segredo de um determinado conceito de sucesso, que o trabalho árduo levará ao deleite das maravilhas do mundo, que o planejamento, a boa-fé vão recompensar todas as privações e negações impostas nas ações e escolhas dos sujeitos e que a felicidade possa ser conquistada como um receita de um belo bolo, mas a vida e a felicidade são conceitos que não podem ser meramente fabricados, a complexidade desses conceitos vai muito além do saber técnico e, ao mesmo tempo, tem uma simplicidade, basta viver.

Por esse motivo, uma problemática se apresenta: qual é o modo de vida que possa ser tão rico e fazer da vida uma trama teatral bela e feliz e não se tornar o jogo de um filme de terror, de viagens globais e  locais sem experiências estéticas e significativas? A resposta não pode ser vendida, não há receitas, há escolhas e consequências que ocorrem diariamente. Esse princípio está implícito em todas as histórias e tramas. No caso dos viajantes da ferrugem dos esperançosos, existe uma busca, não há certezas, mas a riqueza está no ato de viajar, de percorrer, não no final da história.

Na trama de Ulisses, Roberto e Inaiê existe um sentido filosófico e estético, o que é possível constatar no fato em que um elemento da mitologia grega se infiltrou, passou ser parte da composição da vida, da beleza das relações dos viajantes, pois não é o trabalho ou fazer o veículo continuar que constituem a beleza, mas são as relações das pessoas entre si e o modo que dão o efeito estético, o qual inevitavelmente o devir será influenciado. O elemento mítico corresponde a coruja que, na história, ao perceber a iminência do acidente, lançou voo até a árvore mais próxima, a partir da qual tinha uma visão bastante privilegiada dos viajantes e do veículo caído.

Inaiê foi a primeira a acordar, mas não conseguia se mover, permaneceu deitada com o veículo tombado, a escuridão da tempestade só cessava com os relâmpagos, era quando visualizava o olhar da coruja, que parecia sintetizar os desdobramentos dos acontecimentos e, ao mesmo tempo, o olhar dos olhos castanhos de Inaiê se encontravam  no olhar da coruja observadora, que em determinados momentos cantava, parecia que estava fazendo a síntese racional dos acontecimentos, dado que o acidente fora apenas o resultado da liberdade, dos anseios e decisões dos viajantes.

No decorrer da história humana a coruja recebeu várias simbologias. No Universo dos gregos antigos, a coruja era a ave de estimação da deusa Atena, que para os romanos passou ser Minerva. Essa deusa era considerada uma deusa guerreira, que não amava a guerra, mas era estratégica, forte e detinha a sabedoria, também era considerada a deusa da sabedoria e da justiça. A coruja passou ser sua ave de estimação pelo fato de ficar atenta durante os acontecimentos noturnos, em que parte dos seres estavam dormindo. Em seguida, a coruja passou simbolizar a sabedoria de muitas áreas do conhecimento humano, entre elas a filosofia.

Na filosofia a coruja foi utilizada para as reflexões por vários pensadores, entre eles encontramos Hegel, que chegou afirmar que a coruja de Minerva levanta voo somente ao entardecer. Nesse caso, Hegel queria demostrar o papel da filosofia, que corresponde a uma forma de relatar através da linguagem e da razão. Contudo, isso somente é possível depois dos fatos, dos acontecimentos já terem advindos. Em outras palavras, é possível ver a definição de filosofia dada pelo filósofo, isto é, a filosofia corresponde ao ato de traduzir a realidade em conceitos, indo muito além da paixão, do amor momentâneo para chegar a visão sistemática da verdade, que está sempre em movimento.

Roberto tinha feito, durante a viagem, uma analogia entre a coruja que os acompanhava e se recusou a voltar para seu habitat com a coruja de Minerva, mas a simbologia ganhou uma nova forma, com uma característica brasileira,  pois a coruja que os acompanhava foi chamada carinhosamente de coruja dos esperançosos. Nessa relação mitológica, apaixonada e racional, a coruja passou ser a simbologia do despertar do pensamento, que para os nossos viajantes não poderia ser individual, apenas ocorreria nas relações entre eles. Assim, a história que ocorre no interior da ferrugem dos esperançosos revela novas sabedorias e a busca por autonomia de pensamento, não individualmente e sem ignorar a individualidade, pois essa capacidade passou ser vista como resultante da liberdade de pensamento e do consentimento de poder de ação de todos os integrantes. Ulisses ignorou esse princípio e todos agora estão presos na ferrugem dos esperançosos, no meio de um tempestade, mas isso não é meramente negativo e  o fim, pode ser o fortalecimento do despertar do pensamento que implica na liberdade e no poder de decisão, com uma beleza estética que irá compor o devir.

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Carlos Weinman é graduado em Filosofia pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (2000) com direito ao magistério em sociologia e mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (2003), pós-graduado Lato Sensu em Gestão da Comunicação pela universidade do Oeste de Santa Catarina. Atualmente é professor da Universidade do Oeste de Santa Catarina. Tem experiência na área de Filosofia e Sociologia com ênfase em Ética, atuando principalmente nos seguintes temas: Estado, política, cidadania, ética, moralidade, religião e direito, moralidade e liberdade.

A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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