René González: ‘Foi muito difícil deixar o país e ficar como traidor’

rene2Por Martín Granovsky.

É manhã em uma casa de Havana, uma cidade inundada de pesquisadores que participam do Congresso Universidade 2014 e por editores e escritores convidados para a Feira do Livro. O sujeito com altura de jogador de basquete que, antes da entrevista, conversa com um dos especialistas, Pablo Gentili, o secretário-executivo do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais, está tranquilo. É um dos cinco cubanos que foram processados nos Estados Unidos depois de se infiltrarem em Miami para buscar informações sobre os violentos grupos contrários ao governo de Fidel Castro. René González é o único dos Cinco que está livre. Os outros continuam presos.

Eu gostaria de uma definição dos Cinco dada por um deles.

Antes de tudo, somos cubanos comuns. Somos filhos de um país que, assim como nós, teve muitos filhos. Crescemos sob a ameaça do terrorismo, presenciando como a morte era imposta sobre Cuba, especificamente a partir de Miami. Tivemos que participar de enterros de compatriotas que haviam sido assassinados por grupos terroristas estabelecidos em Miami com o apoio do governo norte-americano. E como cubanos, nos pediram que nos infiltrássemos nesses grupos.

Dissemos que sim e o fizemos. Como resultado dessas ações, o governo norte-americano nos prendeu em 1998 e nos submeteu a um processo mentiroso. A natureza desse processo foi o que provocou que esta história tivesse acontecido e que muitos já nos conheçam ao redor do mundo. Até hoje eu sou o único que está em liberdade e meus quatro irmãos continuam na prisão. Bem, basicamente esses são os Cinco.

Como foi o início da missão de se infiltrar? O governo cubano pediu, ofereceu ou ordenou que fizessem?

Eles me pediram. Essa não é uma missão que se possa ordenar. E não sei o que há para oferecer. É puro sacrifício. Ao me pedirem, insistiram para que eu pensasse porque era uma missão muito arriscada. Não pensei muito e disse que sim.

Era uma missão arriscada ou suicida?

Se tudo corresse bem, sairia ileso. Nós não perdemos a vida, tivemos que ir para a prisão. Quando falo com os jovens de Cuba, eu digo: ‘Esta é uma missão que, se vocês não querem, não digam sim’. Eu não acredito que isso tire o mérito de alguém. Sinceramente, há muitos riscos e requer características que você nem acredita no momento em que te propõem a missão. Isso você vai descobrindo.

Que características?

Sou um sujeito bastante aberto e, para mim, é custoso fingir, no geral. E nunca pensei que pudesse fazer isso, realmente para mim foi o mais difícil. Foi inclusive daqui. Eu às vezes digo que foi mais difícil aqui do que lá. Porque aqui tive que fingir, antes de partir, para os meus irmãos, meus companheiros, para pessoas que me apreciavam e me tinham em grande estima. E, de súbito, tive que me transformar em alguém diferente do que eu era. O lado bom é que isso foi me ajudando, porque você vai dando alguns passos, mas vai avançando, primeiramente, com um pouco de trabalho, um pouco de dor, porque você não quer decepcionar uma pessoa cuja confiança você estima. Foi difícil ter que deixar o país e ficar para eles como um traidor, como uma pessoa que os havia abandonado. Fiz como outro qualquer faria, como qualquer policial do mundo que precisa se infiltrar em uma gangue de criminosos sem ser um criminoso. Por isso, quando nos prenderam, senti alívio por poder voltar a ser eu mesmo.

Em que consistiu o fingimento inicial em Cuba?

De ser um militante, vai se transformando em uma pessoa que começa a se decepcionar, a se iludir. Mas não perdi o apreço dos meus companheiros. As pessoas, de modo geral, são generosas e relutam em aceitar que você mudou tanto. Esse é um instituo natural. Consideravam que eu continuava sendo boa gente. Enquanto isso, renunciei à minha carreira. Era piloto. Como comecei a trabalhar em esportes aéreos, havia um espaço para voar.

A missão incluía roubar um avião em Cuba e cruzar a Flórida?

Sim. Eram tempos difíceis. Em 1989 e 1990, o país começava a sentir os efeitos da queda do campo socialista. Obviamente, isso se refletiu no esporte aéreo e voar ficou mais difícil. Em um final de semana, consegui trabalhar como controlador de voo. Por uma dessas coincidências do destino, foi um argentino que me levou ao lugar onde os paraquedistas saltavam. Ele se chama Santiago, um sobrinho do Che que era paraquedista. Bom, nesse dia fiquei na torre. Os voos pararam porque o vento estava ruim e não acompanhava a atividade do salto. Desci, montei no avião e o levei. Já estava em um ponto sem volta. Tinha que continuar. Uma vez que você continua, precisa ter êxito porque, se não tiver, é preso ou te matam. Na verdade, tinha pensado que, nesse fim de semana, levaria o avião na madrugada do dia seguinte. Mas quando disseram que iam parar os voos, eu insisti para que colocassem gasolina no avião. Tinha 400 litros e não podiam colocar mais. Pensei: “Bom, com isso chego justo aos cayos da Flórida”. E, de fato, cheguei bastante justo, mas cheguei.

Com que margem com esses 400 litros?

Nenhuma (risos). O voo durou uma hora e vinte. Fiz como um profissional, apesar de a decolagem ter sido um pouco catastrófica porque levei o avião na mesma rampa de estacionamento, sem alinhá-lo na pista. O avião não estava pronto para o voo. Depois da decolagem tive que orientar todos os instrumentos em dois ou três minutos. Eu me lembro bem de quando deixei a ilha. Meu coração apertou. Olhei para trás. Deixava tudo. Minha esposa, minha filha… Mas o piloto se impôs. O cálculo da potência me tomou muito tempo, como fazia para ir mais rápido de Cuba sem gastar muito combustível e depois como reduzir para economizar combustível. Finalmente, subir para procurar um pouco de visibilidade para encontrar os Cayos da Flórida. Bem, e já ao final do voo, a decisão de me lançar. Por um momento, pensei que teria que me atirar na água porque não via os cayos.

Paraquedas ou amaragem?

Amarar perto de algum barco.

Idade naquele momento?

Tinha 34 anos.

Ou seja, menos de três anos no dia da Revolução Cubana, em 1 de janeiro de 1959.

Minha geração foi uma geração que absorveu muito da revolução. Eu nasci em Chicago em 1956. Meu pai se integrou ao Movimento 26 de Julho de Fidel Castro, quando Fidel já estava em Sierra Maestra. Na ocasião da invasão da Baía dos Porcos, em 1961, foram às ruas protestar e foram agredidos em Chicago. Decidem que sua sorte estava voltada para Cuba e, então, vêm para cá em um dos últimos barcos que naquela época estavam oferecendo viagens entre Nova York e Havana. Eu tinha apenas cinco anos e somente algumas recordações. Em uma ocasião, minha mãe foi cuidar dos preparativos para a viagem a Cuba e me deixou com algum amigo ou com uma família. E ocorreu à pessoa me colocar uma peruca. Eu me lembro da minha mãe entrando escandalizada porque não me reconheceu.

Lembro da viagem que fizemos de Chicago a Nova York de carro, de alguns lugares onde paramos para comer, como eu e minha mãe dormíamos na parte de trás do carro. E também lembro da viagem de barco, imagens, assim, do barco, da cozinha, da piscina do barco, Guadalupe. Em Cuba, meu pai foi trabalhar na construção de uma fábrica. Nesse tempo, o Che Guevara era ministro da Indústria e estavam construindo muitos conglomerados industriais para unificar atividades que estavam dispersas. E então, meu velho trabalhou em uma fábrica de plásticos e lembro que ali vi o Che casualmente. Dei a mão para ele e tudo, eu já tinha oito anos quando eles terminaram de construir a fábrica e o Che a inaugurou em dezembro de 1963. O Che era adorado pelas pessoas. Quando ele terminou, passou pela multidão e as pessoas começaram a saudá-lo. Meu irmão e eu, que estávamos na plataforma oposta, pedimos aos nossos pais para cumprimentar o Che, descemos, nos enfiamos entre as pessoas, chegamos onde ele estava e começamos a dizer: “Che, Che”. Passou a mão pela minha cabeça, me deu a mão. E para o meu irmão também. Disso nunca esqueci.

Voltando ao voo aos cayos e ao objetivo de aterrissar vivo.

Tinha que ir para o norte, mas o vento estava forte pela esquerda, do noroeste. Saí, voei com potência máxima por uns cinco ou seis minutos para me afastar rápido das costas de Cuba, muito perto da água, a dois ou três metros de altura. Uma vez afastado o bastante, reduzi a potência econômica para poder voar mais tempo, mais longe. Eu me mantive assim por um tempo para escapar dos radares cubanos e evitar a interceptação cubana, até que calculei que já deveria estar perto dos cayos da Flórida. Decidi então subir e me afastar da água para ter visibilidade.

Nesse esquema eu ia a 180 quilômetros mais ou menos. Os indicadores de emergência do combustível começaram a acender. Este avião tem dois tanques, um em cada ala, e cada um dos tanques tem um indicador para quando faltarem 75 galões. Vi barcos. Decidi voar por cima deles. Se, depois do último barco, não visse terra, me atiraria na água ao lado do marco para que me tirassem. Sobrevoei o primeiro barco, o segundo, o terceiro, comecei a contar e pensei: “bem, aqui não há opção, cinco minutos e, se não vir terra, volto e me jogo ao lado do barco”.

Passei por cima do barco e comecei a ver o relógio. Um minuto, dois minutos, três minutos, quatro, cinco… E a terra. Uma coisa incrível. Pensava em ir à base de Boca Chica, que é a base naval que os norte-americanos têm em Key West. Nesse momento me senti como Cristóvão Colombo. Pensei: “bom, pelo menos em qualquer lado que eu me atirar é perto da terra e aí a terra estará”. Quando a visibilidade começou a clarear, ou seja, me aproximar, o que eu tinha primeiro diante de mim era a base de Boca Chica, então tudo saiu perfeito. Me joguei. Foi uma aterrissagem bastante brusca. Eu estava muito tenso. O avião deu vários trancos.

Lembro que, quando parei o avião, fiquei no meio da pista com o motor em baixo rendimento. Eu levava uma garrafa térmica de café, abri, me servi, tomei e atirei a garrafa para trás. Ficou tombando por aí. Olhei para trás e comecei a relaxar, até que as autoridades chegaram. Há quem diga que toda aterrissagem da qual você possa sair caminhando é uma boa aterrissagem. Bem, foi este o caso. O trâmite foi rápido porque eu nasci nos Estados Unidos e apresentei minha certidão de nascimento. Na verdade, eles não sabiam o que fazer comigo porque normalmente levam o imigrante a um centro de detenção da imigração. Ao final localizaram minha avó, fizeram um trâmite bastante pessoal, com um senhor de origem cubana que vivia ali em Cayo Hueso. E ele me acolheu naquela noite. No outro dia, minha avó pagou duas passagens e eu fui com ela para Sarasota.

Isso não levantou nenhuma suspeita?

Meu pai não era uma figura pública. Saí da base e, em maio de 1990, acabei me instalando em Miami, na casa de uma tia-avó. Minha família dos Estados Unidos não era de revolucionários, e tampouco de militantes contrários à revolução. Era boa gente, de bons sentimentos, com uma longa história de relações entre Cuba e Estados Unidos. Gente sensivelmente nobre que tinha ido para lá nos anos 40. Nem anticastristas, nem fanáticos por política. Sua preocupação sempre foi familiar – tanto que fui bem recebido desde o momento em que cheguei lá quanto depois da prisão e tudo. Eu os estimo muito.

Como foi sua aproximação com os grupos anticastristas?

Eu repetia o credo. O credo de que, em Cuba, as pessoas rastejam pelas ruas, de que não têm o que comer, de que caem mortos, de que a política bate em todo mundo em qualquer esquina. Quando você me perguntou sobre a capacidade de fingir, eu disse que é mais fácil fingir lá. Primeiro, porque não exige nenhum ato de desprendimento. Mas, segundo, porque é curioso que, para eles, a única coisa que você precisa fazer é falar o que eles precisam ouvir: coisas más sobre Cuba.

Mas muitos diziam essas coisas. Qual era o diferencial, no seu caso?

A forma como cheguei. Com um avião roubado. Durante alguns dias, fui uma celebridade no Miami Herald.

Havia um objetivo especial nessa aproximação?

Eu ia vendo as circunstâncias e me aproximava de alguns grupos. Comecei pela CUPA, a Cuban Pilots Association, que era basicamente um grupo de pilotos. Muitos estiveram na Baía dos Porcos. Outros haviam sido mercenários no Congo.

Havia alguns famosos como torturadores na América Latina, como Félix Rodríguez El Gato, que foi o assassino de Che e também teve seus vínculos com torturadores e com a ditadura argentina. Hoje desfruta da hospitalidade e da benevolência do governo que o formou como torturador, os Estados Unidos. Muitos tinham ido do Congo para a Nicarágua. Alguns eram oficiais do Exército de Fulgêncio Batista.

Depois, me vinculei à HAR, Hermanos al Rescate, mais jovens do que os outros, embora criados por veteranos como o terrorista Luis Posada Carriles, um dos maiores criminosos do hemisfério. Meu objetivo era primeiramente coletar informação e enviá-la para Cuba. Depois, o governo se encarregaria de processá-la, analisá-la e fazer o que pudesse para desarticular ações terroristas dos grupos contra Cuba. Com isso, consegui que os narcotraficantes vinculados a esses grupos fossem presos. E isso também ajuda a desarticulá-los, pois era isso que lhes dava o sustento econômico. Fiquei por oito anos entre esses grupos, desde 1990 até 1998, quando fomos presos. Um era o PUND e o outro era o Comando de Liberación Unido, que também tinha outro narcotraficante, que identificamos e desarticulamos. E depois, no fim, fui incorporado ao que foi chamado de Grupo Democracia, que se dedicou a organizar flotilhas para vir provocar Cuba, entrar em águas cubanas, criar problemas entre os dois governos. E esse foi o último grupo em que entrei e no qual, bem… se fez minha a prisão.

Como sua família reagiu quanto ao assunto e como foi a evolução disso?

Eu vou como desertor. Isso foi um baque muito forte para os meus pais. Eu não podia contar para ninguém, são ossos do ofício. É forte, essa é uma das coisas mais difíceis. Minha filha tinha seis anos quando saí de Cuba. A princípio, minha mulher dizia: “Aqui tudo parece indicar que esse é um avião com um desertor, então tenho que assumir isso dessa forma”. Depois ela me contou um pouco a história, ela começou a ligar os pontos. E começou a me incomodar e tive que dizer. Mas isso levou um tempo.

Por que, na opinião de vocês, o processo judicial foi fraudulento?

Eu me perguntaria: “O que não houve de fraudulento?”. O sistema legal norte-americano, o sistema federal, é repleto de disfunções. Não apenas para nós. Normalmente, eles aplicam um sistema que se apoia muito na capacidade de fazer uma negociação. Então, seu modus operandi é que eles te sobrecarregam. Vamos supor: uma pessoa foi pega traficando 10 quilos de cocaína, mas um de seus sócios traficou 30. Então, eles acusam também o primeiro dos outros 30 e lhe dizem: “Bom, nós vamos te dar uma sentença de vida, mas, se você colaborar conosco, nós tiramos esses 30, te deixamos com seus 10 e te damos cinco anos”.

Se você coopera, os promotores te usam para mentir e você tem que fazer tudo o que eles pedem para que o juiz dê cinco anos. E a primeira mentira que essa pessoa tem que aprender a dizer ao juri, eu diria que é a mentira fundamental do sistema, é que os promotores te prometeram isso, te propuseram isso, mas é o juiz quem decide. Estatisticamente, o juiz sempre decide aquilo que os promotores querem. E isso aconteceu com o nosso caso. E, desgraçadamente, é isso que trouxe o caso até aqui. Porque, efetivamente, nós tínhamos violado as leis norte-americanas, nós éramos agentes não registrados, o que implica uma sentença de dez anos, no máximo. Mas eles, para elevá-la, acusaram três de meus companheiros de espionagem e um de conspiração de assassinato por conta da derrubada dos aviões da Hermanos al Rescate no ano de 96. Mas nós dissemos:

“Vamos a julgamento porque não vamos aceitar acusações falsas”. Isso complicou tudo e assim estamos.

Eu não fui acusado de espionagem porque me ocupava exclusivamente de grupos paramilitares. Nunca tive nada a ver com informações militares. Mas houve companheiros que sim. Se você não procura informações classificadas, não é um espião. Não é um problema espiar o Estado ou não. Muitas pessoas confundem isso. Você pode procurar informações sobre o Estado, desde que não seja classificada por esse Estado. Mas você pode procurar uma informação civil de uma corporação que o Estado havia classificado porque lhe convém mantê-la.

Por exemplo, há um avanço tecnológico X, e o Estado e essa corporação entram em um acordo e a classificam. Mesmo que essa informação seja civil, se for classificada, se tem um selo que diz “secreto”, você está cometendo espionagem quando procura por essa informação. Eles confundiram o juri, fazendo com que acreditasse que, pelo fato de meus companheiros estarem procurando informações de natureza militar, eles haviam cometido ou estavam tentando cometer espionagem. Mas, na realidade, a informação que meus companheiros estavam procurando era pública, era informação visual, informação de jornais.

Quem foi o advogado?

A corte o designou. Eu o considero meu amigo. Fez um bom trabalho. O que acontece é que, se as instâncias que têm que aplicar a justiça não querem, não se importam com você ganhar. Eu comparo o nosso caso com o de um corredor de 400 metros. Ele chega primeiro ao final e o árbitro diz: “Não, quem vai ganhar hoje é o segundo porque eu quero assim”. Isso é o que os juízes disseram. Todo árbitro imparcial que olhou esse caso se deu conta de que é uma barbaridade e estamos falando…

Inclusive analistas jurídicos norte-americanos?

Analistas jurídicos norte-americanos, associações de advogados dos Estados Unidos. O comitê de prisões arbitrárias da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, a Anistia Internacional, todos emitiram comunicados nos quais indicam que o julgamento foi injusto, que foi ilegal e que os padrões do devido processo não foram cumpridos.

Quanto vocês cinco demoraram para deixar de fingir?

Até que o julgamento se inicie, você não pode voltar a ser quem era. Nós mantivemos nossa discrição durante os dois anos de preparação do julgamento.

Nós coordenamos isso. Primeiro, não podíamos admitir que éramos agentes de Cuba. Nossos advogados tiveram trabalho também. Como não lhes dissemos, eles foram os que vieram a Cuba. Ao final, o governo cubano confiou em seu profissionalismo. E se fez uma defesa muito boa. Realmente, no nosso julgamento, os papeis se inverteram. O Gerardo, que é caricaturista, fazia caricatura dos promotores, e aquelas caricaturas percorriam toda a sala, incluindo os que cuidavam da gente, e acabavam com o estenógrafo, porque as pessoas começaram a se dar conta de que o julgamento era uma farsa. E isso se sentia na sala. E, no dia em que nos declararam culpados, esses oficiais de justiça foram nos pedindo desculpas desde a sala até a cela. Uma coisa impressionante. Você fica impressionado quando uma pessoa que te vigia muda sua atitude até dizer: “Mas onde está a espionagem? Onde está o assassinato?”.

Começaram a ver nossas provas, as provocações da Hermanos al Rescate filmadas, divulgadas na televisão de Miami como se fosse engraçado. E eles mesmos nos disseram: “Mas como é possível que o governo cubano tenha demorado tanto para derrubar esses aviões?”. No entanto, eu nunca fui ensinado a odiar os Estados Unidos. Eu acredito que um país é muito mais do que seus promotores, do que seu governo, e é muito mais do que o punhado de milionários que controla a vida desse país.

O advogado Horowitz, por exemplo, parece ter seguido regras baseadas na defesa dos direitos individuais.

Desde que tomaram a decisão política de cometer essa vingança – porque, no fim, tudo isso é uma vingança contra Cuba em cinco homens –, tomaram o caminho errado e tiveram que justificar esse erro com mais erros. No fim, acabaram fazendo o papel de ridículo na corte, acabaram sendo o motivo de chacota de todo mundo, pois eles assim decidiram. Se eles tivessem feito um trabalho decente, o caso teria se resolvido de outra maneira e eles não teriam de se rebaixar da forma como se rebaixaram. E ninguém realmente cobriu o julgamento na imprensa norte-americana. No início sim, o New York Times, mas quando julgamento começou a mostrar sua real natureza, a jornalista do New York Times desapareceu e nunca mais voltou. Então, quem o cobriu foi a imprensa de Miami. A maioria foi comprada. E foi o julgamento com sentença de espionagem mais longa da história norte-americana. Sete meses de julgamento com testemunhos orais e provas.

Três generais norte-americanos testemunharam voluntariamente pela defesa, para nos defender. Os promotores tiveram que trazer um por um – um general, que agora é James Clapper, o assessor de segurança nacional do Obama, que tampouco pôde dizer qualquer coisa quanto à espionagem. Um assessor do presidente norte-americano testemunhou. Falou-se da questão do terrorismo. O governo cubano contratou para apresentar o recurso na Corte Suprema o melhor que encontrou em Washington, um especialista em Corte Suprema, que também é analista da CNN: Tom Goldstein. E Tom Goldstein estava convencido de que colocaria o caso na imprensa.

Nos Estados Unidos, todos os dias se discute um caso judicial. O que comeu uma mulher, o que matou uma criança, o cachorro que comeu o vizinho… Tom Goldstein apresentou à Corte Suprema um briefing muito sólido. Conseguiu um recorde na história norte-americana de amicus curiae, que são briefings de “amigos da corte” no qual apresentou depoimentos de partes não interessadas ao processo, incluindo prêmios Nobel, parlamentares internacionais, associações internacionais de advogados, associações nacionais de advogados dos Estados Unidos – 12 amicus curiae, isso nunca tinha sido visto na Corte Suprema. E quando Goldstein chamou a imprensa, ninguém foi.

Quais são as perspectivas dos quatro que ainda continuam presos? Quais as desejáveis e quais as possíveis?

Teria que começar pelas sentenças. Um dos meus outros companheiros que sai em breve é Fernando González, sentenciado a 17 anos. Depois o Antonio, em 2017. Ramón, em 2024, e Gerardo foi condenado a duas penas perpétuas. Esse caso não será resolvido em âmbito legal. O âmbito legal foi um pretexto que serviu a uma decisão política que se tomou. Tomou-se a decisão política de se vingar de Cuba por meio de cinco homens. Houve um painel de três juízes que rompeu com essa decisão política, e depois isso se reverteu.

Eles mesmos reverteram ou foi outra instância?

Outra instância do mesmo tribunal. Mas tudo foi uma decisão política e eu acredito que a solução será igual: uma decisão política. Pode ser usando a via legal. Da mesma forma que sinalizaram aos juízes para que violassem a lei, podem sinalizar para que a cumpram. Nós sempre dissemos que a única coisa que pedimos é que se apliquem as leis norte-americanas, que não as distorça, que vejam os fatos, e que os apliquem às suas leis.

Como seria, em termos processuais, o caso das penas perpétuas? Um indulto presidencial?

Tecnicamente, o julgamento terminou. Mas há um recurso chamado recurso extraordinário. O recurso segue o mesmo caminho de todo caso legal. É apresentado à juíza. A juíza dá a sentença e vai à Corte de Apelações de Atlanta. E depois à Corte Suprema. Esse recurso está pendente. E ele se baseia em um erro crasso cometido pelo advogado do Gerardo quanto à estratégia de defesa. Ele defendeu muito bem seu cliente, mas cometeu um erro porque defendeu Cuba. E os promotores julgaram Cuba. O aspecto mais forte desse recurso é que o próprio advogado reconhece seu erro. Pensou em uma questão de um Estado contra outro, e que o Estado cubano tinha direitos. Mas cometeu um erro: pensou que era impossível que um juri decente não se desse conta de que Cuba tinha direito a defender sua soberania. E, em Miami, é impossível encontrar um juri decente.

Agora, os tempos mudaram. Há muitos sinais de que existe um cansaço quanto a essa política contra Cuba, sinais inclusive dentro dos próprios Estados Unidos.

Incluindo os cubanos que vivem lá. Há pouco tempo, saiu uma pesquisa mostrando que 56% dos norte-americanos dizem que já está na hora de mudar a política em relação a Cuba. Obama perdeu muito tempo tratando de mimar uma direita que não o quer nem por ser negro, nem liberal, nem jovem.

René, como foi o final da pena?

Foram quatro cruzes. Eu cumpri minha pena em 7 de outubro de 2011. Um ano antes, nós pedimos à juíza para me deixar em liberdade supervisionada em Cuba, o que é perfeitamente possível. A juíza tem o poder de modificar a liberdade supervisionada e permitir que uma pessoa a cumpra fora dos Estados Unidos. Os promotores sempre trabalharam para que a liberdade supervisionada fosse um outro castigo para mim e para minha família. Queriam me manter separado da minha gente por três anos. Além disso, teria cumprir liberdade supervisionada no mesmo distrito no qual estão os terroristas, os criminosos que contam com a cumplicidade do FBI e do governo norte-americano. Os promotores se opuseram ao pedido. Disseram que era prematuro, que era preciso esperar cumprir uma parte da liberdade supervisionada. Paralelamente, os promotores propuseram que eu renunciasse à cidadania norte-americana e, em troca, me deixariam vir para cá. Inicialmente, eu me opus.

Por quê?

Porque isso é um direito de nascimento. Uma pessoa não tem motivo para ceder seus direitos de nascimento. Mas depois pensei bem e disse a meus advogados que íamos aceitar a proposta dos promotores. Eu queria mais do que tudo estar com minha mulher, minhas filhas, meus pais, meu irmão. Os promotores fingiram que estavam interessados em chegar a um acordo que implicasse minha renúncia à cidadania em troca de vir a Cuba. Uns dias antes de eu cumprir minha pena, chamaram meu advogado e disseram que isso já não estava mais em negociação.

Dias depois, a juíza indeferiu a moção e eu tive que começar a cumprir minha liberdade supervisionada nos Estados Unidos. Então, graças a um amigo, consegui uma casa em um lugar da Flórida, o mais longe possível da prisão, vivendo na clandestinidade, recluso praticamente como se estivesse em um mosteiro, sem documentos, sem licença para dirigir, sem cartão de crédito.

Por quanto tempo?

Foi um ano e meio bastante difícil. Tinha a intenção de renovar a moção quando tivessem se passado uns meses, para que a juíza me deixasse vir para cá. Em fevereiro de 2012, estava batalhando com meu advogado para voltar a renovar a moção quando meu irmão ficou gravemente doente. Tivemos que postergar esse trabalho e pedir à juíza para que me deixasse vir por 15 dias, para ver meu irmão. Os promotores também se opuseram a que eu viesse para ver meu irmão, que estava morrendo. Mas a juíza, neste caso, assentiu. Por isso, digo que foi a terceira vez. Vim em abril de 2012.

Sua família já tinha ido aos Estados Unidos?

Minhas filhas sim, pois elas podiam. Minha esposa, não. Ela foi deportada e impedida de voltar para me ver. Eu retornei aos Estados Unidos e voltei em abril à liberdade supervisionada. Voltei a trabalhar com meus advogados para fazer a moção. Nós a apresentamos em junho para que a juíza me permitisse renunciar à cidadania.

De quem foi a decisão de continuar e levar o processo judicial até o fim?

Para nós, a palavra foi muito importante em todo esse caso. Em todo esse processo, nossa vantagem foi moral, e não vamos lhes dar de presente essa vantagem moral. Eles decidiram se rebaixar e nós decidimos nos elevar.

Você nunca teve dúvida?

Não, eu nunca tive dúvida, eu ia cumprir a pena. Não ia presentear a juíza com um argumento moral que nunca ganhou, depois de 15 anos, uma liberdade supervisionada. Se tivesse ganho antes… mas não agora. Nem a ela nem aos promotores. E eu dou risada agora porque, quando estávamos discutindo isso com meu advogado e os funcionários das Bahamas, eu dizia para o meu advogado:

“Melhor eles me deixarem entrar, porque se não eu pego um bote de Cuba, vou para lá, fico plantado na corte e digo para a juíza: ‘agora me prenda’”, porque eu não ia descumprir essa palavra que havia dado. Mas voltei, meu irmão faleceu, voltamos a apresentar a moção, os promotores de opuseram, e começou uma troca entre os promotores e a juíza, até que meu pai faleceu em abril de 2013. E, então, voltamos a fazer uma solicitação para vir de férias para estar com a família por conta do falecimento do meu pai. E a renúncia à cidadania norte-americana, com a qual caía o resto da pena. Renunciei à cidadania, a juíza recebeu os documentos, os admitiu. “Bom, está bem, você pode terminar a liberdade supervisionada em Cuba”, me disse.

E a família, René?

Estamos lidando da melhor maneira possível. No fim, ainda que tenha sido tanto tempo, para mim sempre o reencontro com a família é como se o tempo não tivesse passado. Tem sido tudo muito bonito, muito grandioso. Estamos juntos, estamos felizes, temos um neto agora, que veio para alegrar ainda mais minha vida e a da Olguita.

Em que atividade pensa em trabalhar alguém que viveu essa experiência?

Como piloto, eu gostaria de voar, mas reconheço que é muito difícil me integrar à aviação como profissional. Acredito que haja agora um campo na economia se abrindo. Muitos experimentos estão começando, temos que aprender muitas coisas, e eu gostaria de trabalhar na economia com alguma coisa, em um projeto de desenvolvimento local. Mas a ideia que tenho é essa, eu gostaria de trabalhar no processo de mudança que está sendo realizado: experiências novas de autogestão, experiências de relações mais horizontais entre as empresas, entre empresas e governos locais.

O passado te permite se adaptar à vida cotidiana de hoje?

Toda experiência te faz crescer. Se não te mata, engorda. E, obviamente, eu li muito na prisão. História, atualidades, Cuba… Eu estabeleci uma rotina forte de exercícios pela manhã e, durante a tarde, leitura, estudo. Comecei a estudar economia, inclusive na prisão. Eu me propus a sair da prisão melhor do que entrei. Disse: “Bom, se sair melhor do que entrei, essa vai ser a minha medida da vitória”. E assim foi. Eu acredito que sim, que a rotina que estabeleci na prisão me ajudou muito. Creio que fiz o melhor que pude.

Agora, aos 57 anos, depois dessa história, imaginemos uma volta aos 34 e um pedido de uma missão nos Estados Unidos. A resposta voltaria a ser a mesma?

Sim.

Tradução: Daniella Cambaúva.

Fonte: Ópera Mundi.

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