Renda Básica: assistência ou pós-capitalismo?

Por Antônio Martins.

Embora sejam muito populares entre as maiorias, e produzam mudanças sociais notáveis onde aplicados, programas como o Bolsa-Família permanecem, ainda hoje, ameaçados por um fantasma: a chamada “porta de saída”… Para os conservadores, e mesmo para diversos setores da esquerda, eles são, no máximo, uma transição provisória. Amenizam a pobreza, mas não oferecem perspectivas. Precisam ser substituídos, assim que possível, por políticas que gerem empregos e desenvolvimento. Tal ponto de vista é retrógrado, inconsistente e elitista, pensa o economista Guy Standing. Ele vai expor suas ideias nesta sexta-feira (29/6), na Faculdade de Saúde Pública da USP, num seminário em que também estarão presentes o senador Eduardo Suplicy e o secretário nacional de Economia Solidária, Paul Singer.

Standing é um dos co-presidentes da Rede Planetária pela Renda Básica (BIEN, na sigla em inglês). Ele está convencido de que as políticas de redistribuição monetária da riqueza social permitem enfrentar a ultra-concentração de riquezas, produzida pelo capitalismo contemporâneo. Poderiam, além disso, resgatar a esquerda da Europa (e de outras partes do mundo…) do atoleiro em que se meteu há pelo menos trinta anos, quando mudaram rapidamente os mecanismos de acumulação do capital.

Para assegurar seu próprio poder, as classes dominantes buscam controlar alguns “recursos-chave” da produção de riquezas, destaca Standing – e ao fazê-lo, aproxima-se do materialismo de Marx. No entanto, frisa ele, estes recursos-chave mudam, com o tempo. Na Idade Média, importava controlar a terra; nos séculos 19 e 20, as fábricas ocuparam o centro a economia. Mas para enfrentar o capitalismo financeirizado, é preciso evitar que uma minoria concentre de modo absurdo os recursos monetários, e os utilize para capturar riqueza do conjunto da sociedade.

Ao abordar as transmutações do sistema, Standing aborda, também, a evolução das classes sociais. Seu livro mais recente intitula-se Precariado: a nova classe perigosa. Refere-se aos trabalhadores que já não têm emprego fixo: transitam de uma ocupação a outra, quase sempre com salários baixos, “sem âncoras ou sombra de futuro”. Estas multidões, que não param de crescer, foram formadas pelo próprio capital – que atacou sem tréguas, nas últimas décadas, os antigos sistemas de emprego, sindicatos, salários crescentes e sistemas de previdência.

Ocorre, continua Standing, que o próprio precariado está se transformando. Deixou de se julgar inferior. Compreendeu que é injustiçado. “Milhões de pessoas já ‘não se envergonham de afirmar tal condição, ou de reivindicar que suas inseguranças e interesses sejam levados em conta’”. Foram elas, em grande medida, que deram corpo aos grandes movimentos do ano rebelde de 2011. Estavam na Praça Tahir, nas metrópoles da Primavera Árabe, na Puerta del Sol, em Madri, na Praça Syntagma, em Atenas.

Quase toda a esquerda institucional dá as costas, até o momento à nova “classe perigosa”. Parte dela, em especial a social-democracia europeia, abandonou a tradição rebelde das velhas lutas sociais, flertou com os salões e a oligarquia financeira, ajudou a impor as políticas que produziram a precarização. Outros setores, embora não tenham chegado a tanto, aferram-se à ortodoxia. Como a renda básica não está na literatura marxista, e como não ousam refletir sobre as mutações da sociedade, são incapazes de incluí-la em suas equações políticas.

É uma pena, pensa Standing, porque a renda básica pode abrir muitas portas. Ao redistribuir riqueza monetária, permite que o conjunto da sociedade recupere parte dos enormes ganhos que o capital captura – por exemplo, ao transformar avanços tecnológicos em desemprego, ou ao sugar as finanças dos Estados na ciranda financeira. Além disso, a luta pela renda básica tem uma dimensão política ainda mais profunda.

Ao questionar a lógica mercantil do capital (é preciso vender o trabalho, para comprar a vida), ela mostra às sociedades que outras transformações, de sentido humanizador e pós-capitalista, são possíveis. Standing elenca, entre elas, a livre circulação do conhecimento e o direito a um tempo e espaço de qualidade. “Não há razão para que os ricos tenham tanto controle sobre seu tempo, e o precariado quase nenhum (…) Por que a elite e os assalariados podem ter acesso a vastos espaços, enquanto o precariado percebe que os parques, as bibliotecas e os espaços comunitários encolhem diante de seus olhos”, pergunta o co-presidente da BIEN?

Ou seja, segundo a ótica de Standing a renda básica (e, portanto, também a “Bolsa Família”, uma de suas formas) não carece de “porta de saída” alguma. Ao contrário: seu valor precisa ser ampliado; e o acesso a ela, estendido a todos os cidadãos. Ter meios para uma vida modesta, porém digna, deve ser visto como um direito humano universal – não como algo acessível apenas aos que “ganham dinheiro” para tanto.

Ideias utópicas? Sim, concede Standing, mas apenas se tomarmos utopia no sentido concreto de algo ainda inexistente, mas que é possível e necessário construir. “Logo perceberemos que não podemos viver sem a renda básica”, diz o economista. Ele lembra que, por se recusarem a adotar uma proposta de eficiência reconhecida, diversos governos da Europa estão flertando com opções políticas assustadoras: desmantelamento dos serviços públicos; e uma xenofobia que se aproxima do fascismo.

A fala de Guy Standing, Eduardo Suplicy e Paul Singer em São Paulo, nesta sexta-feira (29/6, das 19 às 22h), é parte do Seminário Invenções Democráticas, promovido pelo Nupsi-USP. A programação completa da atividade pode ser encontrada no site <www.nupsi.org> do Núcleo. As inscrições são gratuitas e a participação, certificada – mas deve ser reservada por internet ([email protected]) ou telefone (11-5052.7967). Outras Palavras tem muita satisfação de apoiar a iniciativa.

Sobre o tema:

> Site de Guy Standing: www.guystanding.com

> Site internacional sobre Renda Básica: www.basicincome.org

> Precariado: a nova classe perigosa (em inglês)

Fonte: http://rede.outraspalavras.net/

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