“Remoções pré-Jogos Olímpicos no RJ são ‘verdadeira deportação’ de moradores de favelas”

Rio de Janeiro 06/06/2015. Para sociólogo, Alexandre Magalhães ‘não há negociação ou possibilidade de escolha, há imposição’ sobre comunidades afetadas por obras para as Olimpíadas de 2016, com famílias realojadas a até 40 km de distância do local onde moravam.

Escombros de casas destruídas na Vila Autódromo
Escombros de casas destruídas na Vila Autódromo
Foto: Fernando Frazão / Agência Brasil

As remoções iniciadas no Rio de Janeiro antes da Copa do Mundo continuam, mas agora com a justificativa de preparar a cidade para o novo evento esportivo que vai ocorrer no próximo ano: os Jogos Olímpicos de 2016. Somente entre 2009 e o início de 2014, 20,3 mil famílias foram removidas das favelas das Zonas Sul, Norte/Subúrbio, Jacarepaguá/Recreio dos Bandeirantes para a Zona Oeste, especificamente para áreas dos bairros de Campo Grande, Cosmos e Santa Cruz.

Apesar de as remoções terem ganhado visibilidade por conta dos jogos, o sociólogo Alexandre Magalhães explica que “as propostas de intervenção sobre as favelas” são algo mais antigo no Rio de Janeiro. Até a década de 1970, informa, o processo se concentrava “na erradicação como forma principal de ação estatal sobre estes territórios. Posteriormente, o que se viu foi algo completamente distinto. Nesta configuração, a urbanização passa a figurar como mais um repertório, que então se tornaria dominante, do ‘problema favela’. Simultaneamente, outro fenômeno irromperia e provocaria uma mudança profunda das representações sobre estes territórios, apontando para a criação de uma nova linguagem sobre estas localidades: a chamada ‘violência urbana’”.

Magalhães, que acompanha processos de remoções no Rio de Janeiro, diz que atualmente as principais ações estão concentradas na Vila Autódromo e na Vila União Curicica, situadas em Jacarepaguá. As comunidades, pontua, estão “diretamente afetadas pelas obras preparatórias para as Olimpíadas de 2016. No primeiro caso, pela construção do Parque Olímpico e, no segundo, pela Transolímpica, via destinada aos chamados BRTs que ligará o bairro da Barra da Tijuca até o de Deodoro, ligando duas áreas destinadas aos Jogos Olímpicos”.

Magalhães enfatiza que as remoções ocorrem “num contexto da proliferação de dispositivos de exceção que alteraram consideravelmente os parâmetros a partir dos quais se estabeleciam as relações entre o Estado e suas margens no Brasil. Nesse sentido, houve um alargamento, nos últimos anos, de mecanismos de controle e administração das populações em detrimento da política e seus protocolos de negociação, discussão e participação”.

Alexandre Magalhães é graduado em Ciências Sociais pela UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), mestre em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro e doutor na mesma área pela UERJ, com a tese intitulada “Transformações no problema favela e a reatualização da ‘remoção’ no RJ”.

Leia trechos da entrevista a seguir.

Por que você usa o termo “reatualização” ao tratar das remoções em favelas no Rio de Janeiro?

Alexandre Magalhães: Até a década de 1970, as propostas de intervenção sobre as favelas se concentravam na erradicação como forma principal de ação estatal sobre estes territórios. Posteriormente, o que se viu foi algo completamente distinto. Nesta configuração, a urbanização passa a figurar como mais um repertório, que então se tornaria dominante, do “problema favela”.

Simultaneamente, outro fenômeno irromperia e provocaria uma mudança profunda das representações sobre estes territórios, apontando para a criação de uma nova linguagem sobre estas localidades: a chamada “violência urbana”. A violência passaria a figurar como o principal problema do Rio de Janeiro, alterando de maneira decisiva tanto os comportamentos quanto as práticas dos diversos grupos e classes sociais, bem como dos aparatos estatais. Os moradores e as favelas continuariam sendo representados como o “outro” da cidade, mas desta vez num registro marcado pelo medo, cujo conteúdo seria caracterizado pelo entendimento do morador de favela (lido também como “bandido” pelas classes médias e altas) como ameaçando constantemente a ordem social.

Neste contexto, uma nova configuração se delineou, especialmente a partir de meados dos anos 2000, por ocasião da realização dos Jogos Pan-Americanos de 2007 e da campanha do jornal O Globo intitulada “Ilegal. E daí”, onde, entre outras “ilegalidades”, destacou-se a “ocupação irregular” do território, identificada preferencialmente com as favelas. Tal configuração favoreceria as tentativas (depois consolidadas na conjuntura imediatamente posterior) de retomada da forma de intervenção estatal nas favelas do tipo erradicação.

O que mudou este cenário de uma maneira crucial foi a eleição do prefeito Eduardo Paes, cujo primeiro governo se inicia em 2009. A partir deste período, houve um redirecionamento das ações das instituições municipais em direção ao que havia sido discutido e formulado alguns anos antes, fazendo com que as condições que seriam necessárias para a intervenção sobre as favelas na forma da erradicação se constituíssem.

Em quais favelas está havendo remoções de famílias?

Atualmente, as ações principais de remoção realizadas pela prefeitura se concentram na Vila Autódromo e Vila União de Curicica, ambas favelas situadas em Jacarepaguá e diretamente afetadas pelas obras preparatórias para as Olimpíadas de 2016. No primeiro caso, pela construção do Parque Olímpico e, no segundo, pela Transolímpica, via destinada aos chamados BRTs que ligará o bairro da Barra da Tijuca até o de Deodoro, ligando duas áreas destinadas aos Jogos Olímpicos.

Pixação em muro na Vila Autódromo
Pixação em muro na Vila Autódromo
Foto: Otto Faber / Facebook Vila Autódromo

Em que outras regiões do Rio de Janeiro são feitas as maiores remoções?

Ocorreram remoções em todas as regiões da cidade do Rio de Janeiro. Contudo, o fluxo populacional provocado pelas remoções seguiu, quase sempre, a seguinte direção: os moradores de favelas das Zonas Sul, Norte/Subúrbio, Jacarepaguá/Recreio dos Bandeirantes foram direcionados para a Zona Oeste, especificamente para áreas dos bairros de Campo Grande, Cosmos, Santa Cruz. Muitos destes deslocamentos implicaram uma mudança de até 40 quilômetros de distância do local original de moradia. Pode-se chamar este processo de uma verdadeira deportação.

Quais remoções feitas pela prefeitura você já acompanhou? Como foi essa experiência?

Acompanhei diversos processos de remoção que ocorreram na cidade nos últimos anos. Posso descrever estas experiências a partir de duas dimensões diferentes: a primeira se refere à possibilidade de observar, in loco, os inúmeros mecanismos que o Estado utiliza para governar determinadas populações. Só a aproximação destes pontos de incidência do poder do Estado é que torna possível apreender e entender como ele se constituiu rotineiramente ao atualizar seus mecanismos de controle. A segunda se refere ao fato de que entendo que observar é participar, sentir. Todas estas experiências foram de uma violência brutal, ainda que muitas vezes não tenha sido física (embora isso tenha ocorrido).

As pessoas são atacadas não só em seu direito básico de moradia, mas são vilipendiadas o tempo inteiro em sua condição humana. São tratadas como lixo, como qualquer objeto que se desloca de um lado a outro. É uma experiência de desrespeito e descaso profundos. É um tipo de violência que marca profundamente a vida destas pessoas. Marcou a minha também, de maneira decisiva. A cada porta arrancada, a cada parede derrubada, a cada lágrima que escorria, era impossível não se deixar abalar. Quem acompanha uma situação desta, como eu acompanhei, e não se sensibiliza, é porque perdeu, há muito, a sua humanidade.

Que intervenções urbanísticas estão justificando as remoções?

Sobre esta questão das justificativas, considero-o a partir de uma configuração mais ampla. Em minha análise, seria possível apontar, ainda que de maneira esquemática, três momentos distintos que contribuíram para a formação deste novo enquadramento que favoreceu a retomada de uma política de remoção de favelas: o primeiro se caracteriza por um intenso esforço em trazer para o debate público constituído em torno do “problema favela” a palavra remoção. Isto ocorreu logo no início do primeiro governo do prefeito Eduardo Paes. Um dos argumentos utilizados para provocar tal debate foi acionar a ideia de “tabu”, isto é, as favelas precisariam deixar de ser um “tabu”, em algo supostamente intocável; o segundo, pela consolidação da crítica aos críticos da remoção como ação estatal, utilizando-se e apoiando-se nos desdobramentos das “chuvas de abril” de 2010, um evento climático de grandes proporções que causou mais de 200 mortos em diversas favelas do estado do Rio de Janeiro e também da capital; por fim, os deslocamentos populacionais passam a ser tratados, logo após, como um “legado” da organização e realização dos Jogos Olímpicos de 2016 e da Copa do Mundo de 2014.

A conjuntura específica aberta neste período, principalmente a partir dos megaeventos esportivos, formou o contexto favorável à retomada da via da erradicação como maneira específica do Estado em lidar com as favelas, ressignificando o termo “remoção” e situando-o como uma dimensão das práticas de gestão do Estado de determinados territórios e populações.

Família em meio a escombros de casas destruídas na Vila Autódromo no Rio de Janeiro em março
Família em meio a escombros de casas destruídas na Vila Autódromo no Rio de Janeiro em março.
Foto: Fernando Frazão / Agência Brasil

É possível estimar quantas pessoas foram removidas até a Copa do Mundo e quantas ainda serão removidas por conta das Olímpiadas do ano que vem?

 Segundo a própria prefeitura, entre 2009 e o início de 2014, 20,3 mil famílias foram removidas. Dessas, 9,3 mil estariam em imóveis do Minha Casa, Minha Vida, 5 mil recebendo aluguel social e 6 mil foram indenizadas. Se considerarmos a situação das duas favelas mencionadas acima, a Vila Autódromo e Vila União de Curicica, serão aproximadamente mais 1.300 famílias.

Como os moradores se manifestam diante das remoções?

Os moradores constituíram diferentes maneiras de se manifestar diante das violações de direitos que significaram/significam estes processos. Fizeram protestos públicos, elaboraram dossiês denunciando as violações de direitos humanos, articularam-se a diferentes movimentos sociais, como o Conselho Popular, com instituições ligadas à Igreja Católica, como a Pastoral de Favelas, instituições públicas como a Defensoria Pública e universidades públicas. Realizaram denúncias internacionais, conseguiram chamar a atenção do mundo para o que ocorria aqui. Foram estas mobilizações que ou impediram a remoção, como no caso do Morro dos Prazeres e Arroio Pavuna, ou as interromperam, como na Providência, Estradinha-Tabajaras e outras.

Em que você fundamenta a afirmação de que as remoções estão ocorrendo “simultaneamente dentro e fora da lei”? Qual tem sido a postura dos poderes estaduais e municipais diante dessas remoções?

Com a justificativa da defesa de determinadas garantias, as ações da prefeitura suspendem, na prática, estas mesmas garantias, criando-se uma zona de indeterminação onde a diferença entre o legal e o extralegal é desativada e todo tipo de arbitrariedade estatal é cometida sem que seja considerada ilegal.

Isto pode ser visualizado de inúmeras maneiras nestes processos de remoção. Um dos exemplos disso se dá quando a prefeitura diz que está “negociando”. De acordo com a Lei Orgânica Municipal, em seu artigo 429, as remoções são proibidas, a não ser em casos muito específicos. Quando estes ocorrem, as remoções precisam estar justificadas em um laudo técnico bem elaborado, e a remoção, se necessária, deve ocorrer nas proximidades e, acima de tudo, todo o processo tem que contar com a participação direta dos envolvidos.

A prefeitura diz que faz tudo isso, mas na prática as coisas funcionam de maneira completamente diferente. O prefeito e seus secretários afirmam que tudo é feito “com o mais absoluto respeito aos direitos e desejos dos moradores” e que “tudo é conversado”, quando na verdade é imposto. Quase sempre, os laudos apresentados são muito superficiais. Como aquele apresentado para justificar as remoções em 2010, por ocasião das chuvas mencionadas acima. Um laudo de oito páginas para oito comunidades diferentes!

No caso das ofertas de alternativas, muitas vezes o que ocorria era mesmo uma imposição. Não havia alternativas, no plural. Havia o “aceita ou aceita”, isto é, em boa parte das tentativas de remoção se ofertava, por exemplo, unicamente um imóvel em um conjunto habitacional distante. Como disse, não há negociação ou possibilidade de escolha, há imposição. Neste sentido, repito, é possível falar, sim, em um processo de deportação.

Que aspecto das remoções caracteriza um “estado de exceção”?

As remoções de favelas ocorrem num contexto da proliferação de dispositivos de exceção que alteraram consideravelmente os parâmetros a partir dos quais se estabeleciam as relações entre o Estado e suas margens no Brasil. Nesse sentido, houve um alargamento, nos últimos anos, de mecanismos de controle e administração das populações em detrimento da política e seus protocolos de negociação, discussão e participação. No caso do Rio de Janeiro (mas é possível afirmar, sem incorrer em erro, no Brasil como um todo), simultaneamente às remoções, atualizam-se outros tantos mecanismos de controle populacional, como é o caso das legitimidade das demandas dos moradores e a internação compulsória de usuários de drogas em situação de rua.

Nas remoções de favelas, prevalece todo tipo de dispositivos de exceção. Entre as muitas formas de mecanismos mobilizados pelos agentes públicos para efetivar estes processos de erradicação, destacam-se as práticas de pressões diárias, tais como aquelas feitas por estes agentes quando dizem aos moradores: “ou você aceita a ‘proposta’ ou vai ficar sem nada”, “se não aceitar, vai para a rua”, “não adianta chamar ninguém para ajudar, a gente virá derrubar de qualquer maneira”; há um intenso esforço de fazer com que os próprios moradores entrem em conflito entre si, através da manipulação da informação sobre a situação local (informações conflitantes são repassadas a cada um); a emissão de autos de interdição (alegando risco) sem especificação e exigindo saída imediata, sem alternativa; a falta de identificação, por parte dos moradores, dos agentes com os quais são obrigados a lidar nestas situações; espalhar, a partir de contatos individualizados, que a prefeitura conseguiu liminares e que a qualquer momento pode ocorrer o despejo, o que leva a um estado de constante ansiedade; para evitar resistências, agentes do Estado afirmam que irão resolver a situação particular de cada um, solução esta que nunca chega, postergando a resolução ao máximo, levando ao extremo a agonia dos moradores; falta de acesso aos projetos a partir dos quais as remoções são justificadas; demolições sem compensação financeira; a destruição de casas geminadas como forma de pressão; e cortar ou limitar o acesso a serviços públicos, como água e eletricidade.

Todos estes mecanismos implicam, muito concretamente, no que eu chamo de “desqualificação moral” de quem critica a situação, ou seja, uma determinada forma de tratamento que tende tanto a atacar a dignidade pessoal quanto a legitimidade das demandas dos moradores destas localidades.

Deseja acrescentar algo?

Gostaria que quem lesse essa entrevista fizesse um exercício bem simples: se imaginasse passando por esta situação, por um momento que seja. Imagine-se recebendo a notícia, praticamente da noite para o dia, de que sua casa, que você construiu com muito esforço e trabalho, irá abaixo e que terá que se mudar para um lugar longe e que você não escolheu e ainda terá de pagar caro por isso. O que você faria?

Entrevista original publicada no site do Instituto Humanitas Unisinos.

Fonte: Opera Mundi

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