Religiosidade e resistência no Maracatu de Baque Virado

Rainha Elda Viana. Conhecida como Mãe Elda de Oxóssi, é ialorixá do Ylê Axé Oxóssi Guangoubira e rainha da Nação do Maracatu Porto Rico. Foto: Cristiana Dias

Por Mayara Bergamo, para Desacato.info.

Há 3 anos conheci o Maracatu de Baque Virado, manifestação dos povos de terreiro de Pernambuco. Foi em um carnaval na cidade de Caxias do Sul – Rio Grande do Sul, ou seja, bem longe do seu local de origem. De lá para cá, não consegui mais me separar dessa energia impressionante.  

Quem me conheceu até os 26 anos e está lendo esse texto, pode sentir alguma dificuldade para entender. No começo eu também senti, afinal, venho de uma formação muito questionadora e pouco religiosa. Além disso, tanto na minha visão (ignorante) da época, quanto na visão dominante, o Carnaval não parecia ser o período mais propício do ano para que alguém se descobrisse espiritualmente. Bastou escutar a primeira loa da centenária Nação do Maracatu Porto Rico para que a minha descrença fosse superada e eu entendesse de pronto que nem tudo precisa de uma explicação racional detalhada. Algumas coisas sentimos, e isso é suficiente.

Nessa curta caminhada desconstruí conceitos e preconceitos, descobri habilidades e conheci muitas pessoas, inclusive meu companheiro. Na semana passada, fiz minha primeira oficina de toque de Maracatu de Baque Virado com Rumenig Dantas, batuqueiro e ogan da Nação do Maracatu Porto Rico e do Ylê Axé Oxóssi Guangoubira, de Recife. Aproveitei a oportunidade para conversar com Nick sobre um dos aspectos mais importantes do Maracatu: a resistência religiosa.

Essa conversa é o que você confere a partir de agora:

Quase todas as loas (músicas) da Nação falam dos Orixás e além disso, o baque de Porto Rico é o único a levar os atabaques para a avenida. Vocês sentem/sentiram algum tipo de resistência ou preconceito por isso?

Foto: Maria Clara

Eudes Chagas, que foi o dono anterior do maracatu da minha avó (Rainha Elda Viana), botou o maracatu na rua a mando de Dona Santa, Rainha do Elefante, para fazer uma homenagem aos Orixás que curaram ele. Um dos pedidos que Eudes fez à minha avó, foi que quando ela assumisse o maracatu, que o maracatu dele não deixasse de ser uma coisa que homenageasse os Orixás. Todo Maracatu de Baque Virado em Pernambuco vem de dentro das comunidades, de dentro do candomblé, por isso que tem essa ligação de nação. Em Pernambuco, nação quer dizer candomblé. Muitas nações, pela época, tinham medo de falar, tinham vergonha. Mas Eudes Chagas, não. Ele não tinha medo de assumir isso. Eu tenho 27 anos de Maracatu de Baque Virado e eu sempre entendi que o Maracatu de Baque Virado é uma manifestação dos povos de terreiro.

Mestre Chacon Viana. É Mestre do Batuque [Mestre do Apito] da Nação do Maracatu Porto Rico desde 1990. É sacerdote do Ylê Axé Oxóssi Guangoubira.

Em 2000, meu tio (Mestre Chacon Viana) resgatou o atabaque de rua, que é conhecido como timbal. Ele resgatou porque essa era a forma que as pessoas sequestradas da África, escravizadas aqui no Brasil, tocavam dentro da senzala. Eram tambores tocados com pau ou tocados com a mão. Hoje temos várias formas desses tambores de mão, né. Tem atabaque, timbal, o próprio timbal da Bahia, o ilú, o batá, os atabaques de terreiros, os tambores de outras origens, como o djembê e outros, que existem pelo mundo e que a gente não conhece. Mas quando Porto Rico resgata essa história do atabaque de mão dentro do maracatu, em 2000, muitas nações criticaram. Disseram que a gente estava inventando, que Porto Rico agora não era mais maracatu, era samba reggae. Eu já escutei muitos mestres e muita gente dizendo que o maracatu é profano, e não religioso. Mas a minha minha escola sempre foi a minha avó, e ela sempre falou que o maracatu é religioso. Maracatu é o candomblé, maracatu é resistência. Não é à toa que no Brasil inteiro, onde as pessoas veem maracatu chamam de macumba, no pejorativo, dizem que é coisa ruim. A palavra maracatu surgiu no pejorativo. Há 350 anos, o maracatu seria a forma onde o negro e a negra esqueciam do que estava acontecendo, da escravidão e faziam festa. E isso incomodava o pessoal da casa branca, da corte real. Então, por eles se incomodarem, usavam o pejorativo para o nosso povo, “ah estão fazendo maracatu, estão fazendo bagunça” e depois de 350 anos nada mudou, porque ainda têm muitas pessoas que chamam a gente de macumba, zoada, bagunça. Dizem que maracatu é coisa de gente que não têm o que fazer, que isso não tem futuro. Essa é a resistência da gente.

O Maracatu de Baque Virado conquistou outros lugares no mundo. Como você vê esse movimento?

A origem do Maracatu de Baque Virado está dentro de Pernambuco em Recife, na Zona Norte do Recife, em Jaboatão, em Olinda e um só na cidade de Igarassu. Todos dentro de comunidades e no povo de terreiro. O primeiro maracatu que foi criado fora de Pernambuco foi no Rio de Janeiro, se chama Rio Maracatu. Eles estão com 22 anos de história. Eu rodo o país há 8 anos e vejo isso como positivo, né. Eu acho bom, porque é aquele negócio: se o pessoal de Pernambuco não valoriza a sua cultura, o Brasil e o mundo valorizam.

Eu falo muito nas minhas oficinas que o maracatu é uma criança de rua, que não tem sexo, não tem cor e não tem classe, mas tem religião, que é o candomblé e tem o seu fundamento. Acaba que o pessoal de fora de Recife e de fora de Pernambuco adota o Maracatu para a vida e muita gente de fora ama muito mais o maracatu do que muitos pernambucanos e pernambucanas, que nunca ouviram falar de maracatu, que nunca viram o maracatu. Para eles, maracatu continua sendo o manguebeat do Chico Science. Então, eu vejo o lado positivo.

Nem todos os grupos de maracatu de fora têm uma origem religiosa, como as Nações de Pernambuco. Existe um receio por parte dos batuqueiros de que essa manifestação seja deturpada de alguma maneira?

Têm grupos que seguem o religioso, têm grupos que não seguem, têm muitos grupos que não seguem o religioso, mas sempre estão pedindo para alguma nação cuidar desse lado religioso para o grupo… e também tem muito grupo que faz o famoso “balacatu” né, que é quando as pessoas não têm o que fazer, se encontram para beber, para fumar, para namorar, para ficar de pegação, tocar alguma coisa e fazer bagunça. Dentro desses “balacatus” acaba saindo outra coisa né, diferente de maracatu.

Eu me preocupo muito com o lado religioso do maracatu, porque ele não é feito só de batuque e dança, tem muita coisa por trás. O batuque e a dança são formas de a gente enfeitiçar o pessoal da corte branca, o pessoal da corte real, da casa branca. Até hoje quando o maracatu está na rua, se apresentando, vem turista, vem muita gente pra cima. Todo mundo achando bonito, todo mundo achando belo, mas na verdade ninguém sabe que aquilo ali é um candomblé na rua. Então, têm grupos que sabem o que é e têm grupos que não sabem o que é. Têm grupos que sabem o que é, mas fingem que não sabem, querendo dizer que não é religioso… continuam com aquela mesma ideia de alguns mestres e de alguns donos e donas de maracatu, que dizem que é profano.

Maracatu não é profano e nunca vai ser profano. Ele é muito religioso! Não é à toa que temos as calungas. A calunga carrega a ancestralidade do nosso maracatu, essas calungas representam os Orixás. Elas podem representar Iansã que é a rainha dos eguns, podem representar Oxum que é a princesa do maracatu, ou podem representar aquele Orixá feminino, yabá, que seria a matriarca, a madrinha, a protetora daquele maracatu. No meu conhecimento, dentro no Maracatu de Baque Virado, só existe calunga que representa Orixás femininos.

Para finalizar, nos últimos tempos muitas notícias vinculadas a invasão e destruição de terreiros foram publicadas. Queria que você comentasse sobre essa onda de violência e sobre a resistência que todas as manifestações afro, principalmente as ligadas a religião, ainda enfrentam no Brasil.

Eu resumo isso com a frase: 500 anos do Brasil e aqui nada mudou. Essa é uma frase que eu uso muito quando se fala de intolerância aos nossos povos de terreiro. Aqui nada mudou e o maracatu surge disso também, né. Ele sai da senzala, onde os sequestrados e escravizados viviam, mas vai para uma outra senzala, que são as favelas do nosso Brasil, verdadeiras senzalas que ainda não acabaram. Em Pernambuco, você tinha a liberação de poder fazer manifestação de rua com coco, ciranda, que são conhecidos como cultura popular. Então, você poderia fazer a cultura popular na rua, mas você não poderia seguir nenhum outro tipo de religião que não fosse a católica. Até hoje é a mesma coisa, é camuflado. Se a gente abre as redes sociais, os jornais, o que a gente mais vai ver é ataque nos terreiros, é o povo dizendo que a gente cultua o satanás, o diabo. Isso nem existe na nossa religião.

O maracatu surge dessa forma. Os homens iam para rua, tocar o maracatu, enquanto as mulheres faziam os trabalhos dentro dos terreiros. O maracatu camuflava a religião, enquanto os homens estavam lá fora, tocando, a polícia chegava e via só aquele batuque de velhos, pretos e favelados, que não tinham o que fazer. As mulheres sábias, da família desses homens, faziam toda a manifestação, o Nobre Ritual, dentro do terreiro de maneira camuflada. Quando o batuque na rua parava, era o sinal de que a polícia estava entrando.  Então, elas tinham o tempo de esconder tudo, como se nada tivesse existido, como se aquele lugar não fosse um terreiro, como se aquilo não tivesse nada que manifestasse outro tipo de religião, né. E isso acontecia tipo, há uns 50 anos. Mas eu posso voltar mais atrás ainda, há 350 anos, quando o sequestrado e a sequestrada da África, chegam no Brasil e não podem cultuar seus Deuses e suas Deusas Africanas, que são nossos Orixás. Eles também camuflavam, através dos santos católicos. Por exemplo, São Jorge é Ogum. Enquanto vários brancos estavam cultuando a festa de São Jorge, dentro da igreja católica, eles também estavam ali, cultuando Ogum, com o pensamento em Ogum. Isso acontecia também com os outros Orixás: Iansã é Santa Bárbara, Iemanjá é Nossa Senhora da Conceição, Omulú é São Lázaro e todos os outros Orixás também tem sua correspondência aos santos católicos.

Depois de 350 anos de história do maracatu, de 500 anos do Brasil, estamos no ano de 2018 e é a mesma resistência, a mesma luta. Até quando a gente vai ter que aturar isso? Porque a gente não vai na porta de ninguém acordar a pessoa para dar a palavra, a gente não está em ônibus, não está nas ruas. A gente não dá papelzinho a ninguém – e se você não pega você é mal-educado. Mas será que se fosse o meu papel eles aceitariam? Com uma frase de Exu, de Xangô, de Omulú, de Oxum ou de Iemanjá, com uma mensagem boa… porque o Orixá é coisa boa! Orixá não é a força? Não é a natureza? O que seria da Terra se não fosse a natureza? O que seria da gente se não fosse o nosso Deus? É só outro tipo de Deus!

Eu não tenho obrigação de dizer “Deus te abençoe” à minha filha.  Eu tenho o maior orgulho e o maior prazer de falar “Olorún que te abençoe” à minha filha. Ela me pede a benção e é dessa forma que eu abençoo ela: “meu Orixá que te abençoe! Omulú que te dê muita saúde!” e não “Deus te abençoe” porque eu escutei isso desde criança e eu tenho que ser assim. Não, eu não tenho que ser assim. Eu tenho que responder o que eu acredito. Porque quando eu acredito, acredito no bom e no ruim.  Se eu estou bem, vou agradecer a Ele por tudo que está bom e se estiver ruim, também é a Ele que eu vou recorrer, que vou pedir ajuda e força para continuar na luta e na batalha.

Eudes Chagas atuou como rei, babalorixá e diretor do Maracatu Porto Rico do Oriente de 1967 até 1978.
Eudes Chagas – Fundação Joaquim Nabuco

site: http://nacaoportorico.maracatu.org.br/

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[avatar user=”Mayara Bergamo” size=”thumbnail” align=”left” link=”attachment” target=”_blank” /] Mayara Bergamo é fotógrafa e jornalista apaixonada pela cultura popular brasileira e pelo tripé literário formado por Gabriel García Márquez, Eduardo Galeano e Pablo Neruda.

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