Reforma trabalhista e direito de greve no Brasil

Por Cristiano Paixão.*

Por definição, a greve é um instrumento de luta. Ao negar a prestação da força de trabalho, aqueles que vivem do próprio trabalho estabelecem um impasse no mundo das relações sociais. Há sempre, numa greve, um componente de transgressão, mas são variáveis a intensidade e o grau desse comportamento transgressivo. Numa greve, pode ser questionada a política de pessoal de uma empresa ou pode ser explicitada a contrariedade a uma determinada política econômica do país. Além disso, ela pode ser um instrumento de contestação política, ao concentrar demandas por mudanças no sistema político, na condução das políticas públicas ou mesmo ser direcionada contra um ou mais governantes. Na história do Brasil, podem ser encontrados exemplos de todas essas manifestações descritas acima.

A greve é, portanto, uma excelente chave de leitura para a compreensão das lutas por democracia e reconhecimento no Brasil republicano. E é sob essa perspectiva que analisaremos os riscos que se apresentam para o exercício do direito de greve no Brasil contemporâneo.

O governo interino tem divulgado, por intermédio da mídia e de manifestações de ministros, a intenção de realizar uma reforma trabalhista. Segundo o ministro do Trabalho, a CLT ter-se-ia transformado em uma “colcha de retalhos” e seria necessário flexibilizar a legislação, abrindo espaço para a negociação coletiva. Ao mesmo tempo, o governo interino quer ver aprovado o projeto de lei que liberaliza a terceirização, ora em curso no Senado Federal. Como se sabe, está em pleno curso um golpe contra a Constituição, como tivemos oportunidade de expor em texto anterior veiculado no Jota . O golpe possui vários desdobramentos. O primeiro deles – mais evidente – é o da destituição ilegítima da Presidente da República eleita em 2014. Outro, menos visível, mas igualmente nocivo, envolve a tentativa de reescrever a Constituição de 1988. Em sua expressiva maioria, os agentes políticos e econômicos que engendraram e executaram o golpe de 2016 representam os setores da sociedade que nunca aceitaram completamente a ordem constitucional estabelecida a partir de 5 de outubro de 1988. Por essas razões, é possível designar o afastamento da Presidente da República como um golpe desconstituinte.

Uma das características marcantes da Constituição da República de 1988 é o destaque conferido aos direitos sociais. O estudo dos debates da Assembleia Nacional Constituinte revela a centralidade das discussões em torno dos temas que diziam respeito à classe trabalhadora. Nos planos individual e coletivo, foi construído um sistema de proteção social que trouxe significativas inovações em relação ao ordenamento pretérito e que passou a ser identificado como uma das maiores conquistas do processo constituinte.

E, nessa história, o direito de greve ocuparia um papel central. O artigo 9º da Constituição tem uma redação simples e direta: “É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender”. Por detrás dessas palavras reside o elemento inovador do texto constitucional: ao conferir à própria classe trabalhadora a deliberação sobre os interesses que devem ser defendidos por uma greve, o constituinte expandiu a autonomia dos sindicatos, que passam a ser sujeitos coletivos de direito numa sociedade democrática.

E é essa autonomia que está em risco no presente momento. Na verdade, o exercício do direito de greve vem sofrendo gradativas limitações ao longo do tempo. A começar pela própria Lei nº 7.783/89, nascida por conversão de uma Medida Provisória, que estabelece determinados requisitos que extrapolam as diretrizes constitucionais. Porém, muito mais sérias são as limitações impostas pela jurisprudência de alguns tribunais trabalhistas, com destaque para alguns julgados oriundos da Seção Especializada em Dissídios Coletivos do TST. Desde a concessão de “interditos proibitórios” que acabam por prejudicar o exercício do direito de greve até a fixação de “percentuais mínimos” em serviços essenciais (que em algumas oportunidades chegam a 80% da força de trabalho), essas decisões, monocráticas ou colegiadas, representam um sério obstáculo ao regular exercício do direito de greve.

Porém, é necessário frisar que o TST, a partir da década de 2000, vem apresentando decisões inovatórias e importantes no plano dos direitos fundamentais dos trabalhadores. O direito de greve, não por acaso, é um dos que tiveram menos avanços. Mesmo assim, merece ser ressaltado o julgamento do RO-DC 54.800-42.2008.5.12.0000, em que, por maioria de votos, o Tribunal decidiu, sob a segura relatoria do Min. Maurício Godinho Delgado, que são admissíveis motivos de natureza política para deflagração de greve, especialmente em razão da repercussão dessas demandas políticas na vida e no trabalho de grevistas.

Tratou-se, infelizmente, de um caso isolado. Em outras oportunidades, vem sendo reiterada a jurisprudência tradicional do TST no sentido de que a greve deve veicular tão-somente “a criação de normas ou condições contratuais ou ambientais de trabalho”, sendo considerada “materialmente abusiva” a greve que veicular “movimento de protesto, com caráter político” (TST, RO-DC 51534-84.2012.5.02.0000).

Por essa rápida passada de olhos na jurisprudência do TST acerca dos limites do direito de greve, é possível perceber que o exercício efetivo do direito encontra obstáculos que acabam por desconsiderar a própria redação do texto constitucional.

Os direitos sociais têm sido apontados como alvos preferenciais do governo Temer. Declarações de ministros, reuniões com setores representativos da classe patronal, ameaças de “ingovernabilidade” trazidas pelo “excesso” de direitos sociais formam o núcleo do discurso do governo interino em relação ao mundo do trabalho. No Congresso Nacional, tramitam projetos que reduzem a pó o sistema de proteção social estabelecido na Constituição da República, como o projeto de lei da terceirização . Também circulam propostas que negam deliberadamente conquistas civilizatórias recentes, como a tentativa de reduzir as formas de trabalho escravo contempladas no Código Penal desde 2003.

Nesse contexto, o direito de greve pode ser a próxima vítima. Sob o pretexto de regulamentar o disposto nos art. 9º e 37, inciso VI, da Constituição, o Congresso Nacional pode extrapolar sua função legislativa e estabelecer requisitos para o exercício do direito de greve que acabem por inviabilizá-lo. Para tanto, basta transformar em lei alguma das “criações” jurisprudenciais do TST, como o uso dos interditos proibitórios, os “percentuais mínimos” e a proibição às greves políticas.

Está em jogo, portanto, a consolidação (ou a negação) de uma ordem constitucional democrática, includente e emancipatória. Num país que foi marcado pela desigualdade e pela distribuição injusta de poder e riqueza, o direito de greve sempre foi ativado pelos trabalhadores, das mais variadas formas, com resultados por vezes surpreendentes. O art. 9º da Constituição nada mais é senão o reconhecimento dessas lutas e reivindicações. Cabe agora aos protagonistas do mundo do trabalho, ou seja, os próprios trabalhadores, diretamente e por intermédio de seus órgãos representativos, lutar contra o desmonte do sistema de proteção social instituído a partir de 1988. Cabe a eles também manter acesa a chama do direito de greve, elemento central de sua capacidade de intervenção e transformação.

* Procurador Regional do Trabalho (PRT-10ª Região, Brasília-DF). Professor da Faculdade de Direito da UnB.

Fonte: Jota.

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