Reforma sanitária para o bem ou para o mal?

Foto: http://laticsufcg.blogspot.com

Por Douglas F. Kovaleski, para Desacato. info.

O recorte com que pretendo abordar o tema da reforma sanitária nesta semana é um tanto polêmico e enfrenta grandes resistências principalmente entre os militantes da área da saúde. Questionar até que ponto uma conquista histórica do Movimento de Reforma Sanitária Brasileiro (MRSB), o SUS, instituído como política de Estado, foi algo positivo ou não é assustador, e muitas pessoas do campo da esquerda me julgariam traidor da causa. Vejamos como podemos trazer apontamentos que promovam o debate franco.

A imensa maioria dos estudos que abordam a RSB tem enfocado a perspectiva da implantação do SUS, como se a RSB simplesmente desaparecesse ou fosse desimportante, pois cumprira seu objetivo maior, o SUS. Algumas publicações tratam de importantes questões relativas aos princípios e diretrizes do SUS, todo seu arcabouço legal e teórico, dificuldades de implantação, mas a RSB desaparece da literatura, deixando para ser entoada apenas em momentos de mobilização popular, ou de retomada pseudo-histórica do SUS. Mas sem uma compreensão mínima sobre a RSB nos dias de hoje.

Outra tendência é discutir os movimentos sociais e saúde, mas não especificamente a RSB, o que levou esses estudos a tratarem todos os movimentos relacionados à saúde, como uma reformas restritas à saúde, deixando de considerar mudanças mais amplas do ponto de vista democrático e societário. Ainda que parte da reivindicação da RSB seja a implantação do SUS, suas concepções transcendem as políticas estatais e traduzem-se em um projeto de sociedade. Vale ressaltar a singularidade do MRSB, o que dificulta que ele seja estudado a partir das teorias contemporâneas dos movimentos sociais. Vale lembrar que o MRSB não é um grupo de interesses, ele reúne pessoas, entidades e órgãos estatais e abarca um leque distinto de grupos e interesses políticos.

Ainda há uma lacuna no que diz respeito à análise historiográfica e política da RSB em si. O aprofundamento nesse debate possibilitaria melhores compreensões e poderíamos redirecionar o movimento. Sem esse olhar refinado, seguimos martelando no SUS como um direito de todos e um dever do Estado, na idealística visão de que basta uma lei garantir um direito e como por um passe de mágica, esse direito será cumprido. É incrível perceber a repetição das lutas e dos jargões do: “cumpra-se a lei”, “tirem o SUS do papel”; como se fosse possível vendar os olhos do capital e investir todo o montante de recursos necessários para SUS. Sem analisar a correlação de forças, o nível de organização da classe trabalhadora e a condição concreta com que a burguesia opera a economia, o SUS não passa de letra morta.

Obviamente que seria injusto negar os avanços que o SUS e as lutas setoriais por saúde asseguraram para as pessoas. Vidas foram salvas, grupos sociais saíram da invisibilidade, a promoção da saúde se coloca como concepção importante nas práticas de saúde. Poderia ficar aqui citando um número infinito de avanços proporcionados por este caminho trilhado, entretanto é preciso olhar em perspectiva histórica. Uma conjuntura de forte crise do capitalismo vem crescendo e atuando com direção clara no sentido de ampliar as possibilidades de extração de mais valia para a burguesia. O que pode ser feito de várias formas, mas no caso das políticas de saúde se traduz sumariamente em desinvestimento, privatização e desconstrução da ideologia que sustentava essa política. Acarretando o fim dessa modalidade de política de proteção social ou de seguridade.

Dessa forma, precisamos reconhecer o SUS como política, mas acima de tudo entender melhor o movimento da RSB, suas mazelas, e como os valores da RSB foram sendo modificados. Não podemos continuar repetindo o erro fundamental que possibilita o retrocesso das políticas sociais: pensar que pelo fato de termos uma lei que assegure um direito, está tudo certo. Não podemos perder a dimensão revolucionária da RSB, também não podemos reduzi-la ao SUS. É necessário mais do que nunca estudo, reflexão e ação junto do que sobrou dos movimentos sociais para se preparar para tempos muito difíceis, se preparar para a luta com paciência e clareza com relação ao caminho a seguir

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Douglas Francisco Kovaleski é professor da Universidade Federal de Santa Catarina na área de Saúde Coletiva e militante dos movimentos sociais.

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