Receita para desmontar um país

Por José Álvaro Cardoso.

As graves denúncias do The Intercept Brasil, que escancaram os crimes cometidos pelos membros da Lava Jato desde o início, começam a revelar também o envolvimento fundamental dos EUA no golpe de Estado no Brasil. A comprovação da atuação e interesse dos EUA no golpe são dimensões fundamentais da compreensão, inclusive, do turbilhão de acontecimentos ocorridos no Brasil nos últimos seis ou sete anos. Sem o conhecimento e a concatenação desses complexos fatos, é muito difícil entender razoavelmente o Brasil de hoje. Assim como ocorreu em 1954, 1964, e em outros golpes contra o Estado brasileiro, entre os principais grupos de interesses no golpe de 2016 o principal é o do Império. 

Em 2017 o ciberativista Julian Assange, revelou que as espionagens feitas pela NSA (Agência Nacional de Segurança dos EUA), à presidente da República, outros membros do governo brasileiro, e à Petrobrás, estavam relacionadas diretamente a interesses políticos e econômicos, especialmente os do petróleo. Segundo o historiador Moniz Bandeira (falecido em 2017), toda a estratégia do golpe de 2016 inspirou-se no manual do professor Gene Sharp, intitulado “Da Ditadura à Democracia”, para treinamento de agitadores, ativistas, em universidades americanas e até mesmo nas embaixadas dos Estados Unidos, visando liderar ONGs. 

Os Estados Unidos, para continuar na condição de potência, dependem crescentemente dos recursos naturais da América Latina e, por esta razão, não querem perder o controle político e econômico da região. A estratégia norte-americana tem caráter subcontinental, praticamente todos os países da América do Sul sofreram golpes, adaptados a cada realidade social e política. Mas os golpes de Estado aplicados em Honduras (2009) e Paraguai (2012) seguiram metodologias bastante semelhantes à utilizada no Brasil. Foram ataques desferidos sem participação aberta das forças armadas (estas atuaram nos bastidores), utilizando os meios de comunicação, parcela do judiciário e políticos da oposição para sacramentar o processo. 

Nos anos que antecederam o impeachment de Dilma Roussef, o Brasil tomou iniciativas que desagradaram ao Império: aproximação com os vizinhos sul-americanos, fortalecimento do Mercosul, ingresso no BRICS, votação da Lei de Partilha, projeto de fabricação de submarino nuclear em parceria com a França, etc. A voracidade com que os governos pós-golpe começaram a se desfazer dos ativos da Petrobrás foi um sintoma muito forte que o petróleo foi uma das motivações principais para o golpe. Mas o interesse dos EUA no golpe, como se percebeu em seguida à tomada de poder pelos golpistas, está relacionado também às reservas de água existentes na região, aos minerais e toda a biodiversidade da Amazônia. 

Os fatos que o site The Intercept está agora descortinando, muitos já sabiam. Desde 2014, não foram poucos os juristas, e outros analistas, que denunciaram as conexões internacionais da Lava Jato e suas inúmeras ilegalidades. Em 2013 vazou na imprensa informações da NSA (Agência de Segurança Nacional) pelo seu ex-técnico Edward Snowden, através dos quais se descobriu que a Agência espionava preferencialmente a Petrobrás. O fato é que, de uma hora para outra, aparece um juiz de primeira instância, com um volume enorme de informações sobre a Petrobrás, contando com o apoio e ampla cobertura da mídia. Os membros da Lava Jato, tiveram acesso, por exemplo, a um volume enorme de informações sobre a Petrobrás e a montagem de um esquema sofisticado de comunicação, com assessorias especializadas e amplo apoio da grande mídia, ecoando com força as denúncias de corrupção. Sendo estas sempre seletivas, como agora fica comprovado pelos vergonhosos diálogos dos membros da operação, que The Intercept Brasil está publicando.

Moniz Bandeira, já em 2015, publicou os vínculos do juiz Sérgio Moro com instituições norte-americanas. Em 2007 o então magistrado frequentou cursos no Departamento de Estado. Em 2008, passou um mês num programa especial de treinamento em Harvard, na Escola de Direito. Em outubro de 2009, participou da conferência regional sobre “Ilicit Financial Crimes”, promovida no Brasil pela Embaixada dos Estados Unidos. Segundo o historiador, não foi casual a eleição, pela revista Time, de Sérgio Moro como um dos dez homens mais influentes do mundo. Os vazamentos seletivos da Lava Jato, sempre contra símbolos populares e nacionais, conseguiram despertar uma reação histérica da classe média, de caráter extremamente preconceituoso e intolerante, e desferida contra tudo que pudesse sugerir a soberania do Brasil. Mais do que uma operação contra a corrupção, a Lava Jato despertou a ira contra estratégias de desenvolvimento nacional, políticas de conteúdo nacional, e utilização dos recursos do Pré-sal para Saúde e Educação. 

Desde o início da operação eram muito fortes os indícios de que os objetivos centrais da Lava Jato eram de quebrar a Petrobrás, abrindo caminho para mudar a lei de Partilha: a) denúncias do Wikileaks de que os estadunidenses estavam preocupados com o crescimento da Odebrecht; b) grande contrariedade das multinacionais com a Lei de Partilha; c) financiamento, por parte dos bilionários do petróleo, Irmãos Koch, dos movimentos de direita no Brasil que tentavam desestabilizar o governo; d) visita do procurador Geral da República aos EUA, com equipe de procuradores para coletar informações que serviriam de munição para abrir processos contra a Petrobrás. Agora, as denúncias da Vaza Jato mostram que os indícios eram plenamente verdadeiros. Os diálogos revelados entre Sérgio Moro e Dalagnol são, na prática, a confissão do grande número de crimes cometidos todos esses anos. 

Uma outra razão crucial para a articulação do golpe é a recorrente tentativa dos EUA, de impedir que se crie outra potência no continente americano. Uma potência na América do Sul e ligada comercial e militarmente à China e à Rússia é tudo o que os Estados Unidos não querem. Não por acaso, dentre as dezenas de ações destrutivas dos golpistas, uma das primeiras foi prender o Almirante Othon da Silva, coordenador do projeto nuclear do Brasil, e alvejar o projeto de construção do submarino de propulsão nuclear, fundamental para a guarda e segurança da chamada Amazônia Azul.

O golpe foi desferido contra o Brasil e contra o direito da população brasileira de ter uma vida digna. Segundo análise divulgada na 108ª Conferência Internacional do Trabalho, realizada recentemente em Genebra, o Brasil ingressou no ranking dos 10 piores países do mundo para os trabalhadores. De acordo com o Índice Global de Direitos da Confederação Sindical Internacional (CSI), a contra reforma trabalhista (Lei 13.467, de 2017) aprovada no governo Michel Temer, significou para o país uma brutal regressão nas condições de trabalho, direitos e níveis salariais. Desde 2016 são dezenas de ações retirando direitos sociais e trabalhistas, liquidando as insuficientes conquistas dos trabalhadores, fruto de décadas de sangue, suor e lágrimas. Como se pode ver pelos indicadores, a mencionada lei atingiu plenamente os seus objetivos: aumentou significativamente a taxa de desemprego e a precarização do trabalho, direitos foram perdidos ou reduzidos, os sindicatos foram enfraquecidos. O conjunto de ações do golpe trabalha diuturnamente para tornar o Brasil um país de segunda linha, colônia dos países imperialistas, e base de fornecimento de matérias primas baratas. Entrega total da soberania nacional com destruição de direitos sociais e trabalhistas, são ingredientes de uma receita para desmontar um país. 

 

[avatar user=”Jose Alvaro Cardoso” size=”medium” align=”left” /]José Álvaro Cardoso é economista e supervisor técnico do DIEESE em Santa Catarina.

A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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