Racismo e machismo aprofundam desigualdade, diz militante negra vítima de agressão

Por Diego Leão.

Em abril, a pedagoga e militante negra Dandara Tonantzin Castro teve seu turbante arrancado por um grupo de homens. O fato ocorreu durante uma festa de formatura do curso de Engenharia Civil em Uberlândia, em que Dandara participava a convite de um amigo. Além disso, os homens lançaram cerveja e proferiram palavras agressivas contra a jovem de 23 anos. O caso repercutiu amplamente em todo o país através da mídia e das redes sociais.

Em novembro, contudo, Dandara se viu em outra situação adversa, quando teve acesso ao texto da decisão judicial sobre o caso. A defesa da promotoria destacava que a agressão seria apenas uma “deselegância contra uma dama”.

Em entrevista ao Brasil de Fato, Dandara fala sobre como decisão judicial expõe problemas mais graves referentes ao racismo na sociedade brasileira.

Brasil de Fato: A forma como seu caso foi tratado pelos agentes do Judiciário e pelo Ministério Público pode revelar um despreparo de juízes e promotores para temas como o racismo?

Dandara Tonantzin: Não me surpreendi com a decisão, porque essa Justiça é tão seletiva que, não à toa, encarcera e prende a juventude negra cada vez mais e cada vez mais cedo. Condena, por exemplo, a cinco anos de prisão o Rafael Braga por portar Pinho Sol na mochila.

Mas, por outro lado, quando li a descrição da decisão do promotor e do juiz, fiquei muito surpreendida porque eles não conseguem sequer tipificar qual foi o delito, qual foi o crime cometido. No próprio boletim de ocorrência ficou “agressão física motivada pelo preconceito racial”. Não é o que a gente queria, mas pelo menos a polícia descreveu um crime.

No caso do Ministério Público e do promotor, eles colocam como descrição dois pontos e, em seguida, três pontinhos de interrogação. Como se eles não soubessem qual foi o crime ocorrido ou como se não quisessem falar qual crime teria sido. Já no ato de descrever, logo acima dos textos ambos, pareciam dizer que não houve qualquer crime. E eu acho que isso é um exemplo muito claro de como o despreparo do nosso sistema judiciário é ainda um dos principais fatores para que ocorra impunidade no Brasil. Eu nem diria só impunidade, diria seletividade. Porque nós sabemos muito bem que lá na periferia, em lugares como o bairro em que eu moro, o jovem negro carregando duas buchinhas de maconha é preso por tráfico de drogas, mas helicóptero cheio de cocaína tem processo arquivado.

A seu ver, o racismo presente no cotidiano de parte das instituições brasileiras impossibilita um debate mais profundo sobre as relações de opressão vigentes em nossa sociedade?

Com certeza. A gente deveria aprofundar muito mais o tema do racismo, porque foram quase 400 anos de escravidão. Nós temos pouco mais de 100 anos do que chamamos de falsa abolição da escravatura. Isso significa dizer que toda construção social, política e cultural do Brasil se deu nesse contexto em que a escravidão era uma peça fundamental, mas hoje o sistema judiciário se nega a debater com profundidade o racismo. Não é à toa que na descrição do processo que fui vítima se coloca que o racismo “está na alma da própria proponente”, ou seja, de mim que estava ali requerendo a ação. Então você imagina: “racismo não é real”. O que se quis dizer foi isso, quando se afirma que o racismo é coisa da nossa cabeça, pois, segundo eles, não haveria uma base concreta, não haveria um fato, que explicite que o racismo aconteceu. Então, esse despreparo deslegitima ações como essa para dizer que o racismo é vitimismo, é “fanfic” – como dizem na internet – e que os negros é que são racistas.

Os movimentos organizados por negros e negras costumam questionar a ideia de uma “democracia racial” existente no país. Essa noção constantemente é retomada por alguns autores e parte da mídia. Como você compreende essa questão?

Eu acho que o mito da democracia racial é a principal mentira que a sociedade conta para se reforçar no imaginário brasileiro que não existe racismo, a partir da afirmação de que todos nós somos seres humanos e que, portanto, não existiria raça, nem cor e que, biologicamente, todos somos iguais. Eu acho que o racismo brasileiro faz parte dessa máquina engenhosa que nós vivemos. Ele está tão intrínseco e cotidianamente naturalizado que nós muitas vezes reforçamos essas mentiras que nos são contadas.

Por isso que, ao realizar a descrição, o promotor escreve que os rapazes somente sorriram para mim cordialmente, como se sorri para uma amiga. Ou seja, o racismo é o sorriso, a cordialidade, está presente ali no mais intrínseco das relações, e um olhar, um comentário, não seriam, portanto, racismo. Seria simplesmente uma questão de educação, a cordialidade. Por tudo isso, precisamos muito batalhar para romper com essas mentiras e acho que isso é um dos elementos fundamentais desse movimento. As pessoas negras precisam cada vez mais denunciar o racismo pra gente superar o mito da democracia racial. Querem o tempo todo nos dizer que seríamos iguais perante a lei e teríamos os mesmos direitos e os mesmos deveres, quando, na verdade, nós não somos iguais, porque, na prática, somos tratados de forma diferente.

Uma das coisas que mais chocantes da decisão foram os termos usados pelo promotor que tratou do caso como se a agressão sofrida fosse apenas uma “deselegância com uma dama”. A partir dessa situação vivida, como você compreende os desafios que sofrem as mulheres negras frente ao racismo e ao machismo?

Acho que sem dúvida essa foi a frase que mais acabou comigo no dia que eu li a decisão desse promotor. Porque deselegante, na minha terra, na formação que eu tenho, é fazer coisas como arrotar numa mesa ou falar mais alto. Agora, racismo é crime no Brasil desde 1989. Mas a gente não vê as pessoas serem presas e condenadas por crime de racismo, porque a seletividade no nosso país é muito grande. E o racismo cria essa pretensa ideia de superioridade dos brancos em relação aos negros e autoriza ações como essa e ainda reforça esse imaginário de que com o corpo dos negros, e, em especial o corpo das mulheres negras, tudo pode.

Ou seja, você violar, tocar sem a permissão, puxar uma mulher negra, tirar parte de sua vestimenta, jogar no chão, humilhar a mulher negra, jogar cerveja na sua cabeça, rir dela, fazer chacota… Tudo isso é simplesmente ser deselegante com uma dama. Então veja em que nível nós chegamos. Por isso é importante entender como o machismo e o racismo aprofundam ainda mais as desigualdades. É uma faca que corta ainda mais profundo, sem dó, nem piedade, as mulheres negras e que faz com que nós sejamos a base da base da pirâmide econômica e social do nosso país. Nós somos as primeiras a serem demitidas no mercado de trabalho e as últimas serem recontratadas. E estamos aí como alvo fácil da violência dessa sociedade que nos mutila, ceifa e que autoriza sistematicamente as ações de opressão, de racismo e de machismo.

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