Racismo e desigualdade na Bahia

Hamilton Borges coordenador da Campanha Reaja ou Será Morto
Hamilton Borges coordenador da Campanha Reaja ou Será Morto

Nas falas de Hamilton Borges, coordenador da Campanha Reaja ou Será Morta, Reaja ou Será Morto, durante a audiência pública na CPI que investigou o extermínio de jovens negros, o estado da Bahia é apontado como principal violador de direitos de negros da periferia.

Por Lena Azevedo.*

O racismo está nos cursos de formação de guardas municipais, policiais civis e militares com uso do Manual da Tatuagem, no Baralho do Crime, bem como nas operações policiais que remetem à ideia de higienização social, tendo como alvo prioritário comunidades negras do subúrbio.

Na área de segurança pública baiana, vários símbolos, nomes de operações, veículos e lemas policiais deixam evidente o preconceito. Desde o início de 2013, a “Cartilha de Orientação Policial Tatuagens – Desvendando Segredos”, chamado também de Manual da Tatuagem, faz parte dos cursos de formação da Polícia Militar da Bahia e da Guarda Municipal. Em 2015, os cursos continuam acontecendo. No dia 24 de fevereiro deste ano, em reportagem em TV local, o autor da cartilha, o capitão Alden José Lázaro da Silva, atualmente no Batalhão Especializado em Policiamentos de Eventos, abordou novamente o tema. Nas imagens da cartilha é possível ver a logomarca do governo estadual e do programa Pacto pela Vida.

O vídeo (https://www.youtube.com/watch?v=IXpv1f7hFEc) foi incluído no canal do Youtube do militar, que usa a página principalmente para divulgar o manual.

Editada em dezembro de 2012, a publicação gerou controvérsias. Movimentos sociais acusaram o material de racista. Apesar da Secretaria de Promoção da Igualdade (Sepromi) reivindicar a sua retirada de circulação na época, o governo ignorou e a polícia continua usando o material para formar seus quadros e identificar suspeitos. De janeiro a maio de 2013 foram formadas centenas de PMs, guardas municipais e realizadas palestras para policiais civis e estudantes em faculdades da capital baiana, conforme um dos relatórios enviados pelo militar à Secretaria de Segurança Pública da Bahia.

Mas não é só na Bahia que o material tem sido utilizado. Em março deste ano, a Cartilha da Tatuagem recebeu, em sessão da na Assembleia Legislativa de São Paulo, um elogio público do deputado estadual de São Paulo pelo PSDB, coronel Telhada, ex-comandante da Rota que assumiu ter matado 36 pessoas, sendo 29 em serviço, e ainda ameaçou de morte o jornalista André Caramante, durante as eleições de 2012. Caramante teve que deixar o país.

O autor da cartilha, o capitão Alden José Lázaro da Silva, refuta a tese de racismo, mas admite se inspirar nos estudos de Cesare Lombroso (1835-1909), conhecido médico italiano que associava a delinquência ao biótipo do suspeito, argumentando que suas teses jogaram uma “luz na possibilidade”. Para Lombroso “os sinais físicos desses criminosos em potencial eram: mandíbulas grandes, ossos da face salientes, pele escura, orelhas chapadas, braços compridos, rugas precoces, testa pequena e estreita. Outras marcas, não físicas, seriam a epilepsia, o homossexualismo e a prática de tatuagem”.

O capitão Alden explica que fez uma ampla pesquisa em sites, pediu colaboração para setores de inteligência das polícias, observou e fotografou presos e corpos no Instituto Médico Legal de Nina Rodrigues – médico brasileiro, seguidor de Lombroso e que acreditava que o negro era inferior ao branco.

Em 2013, o policial afirmou ter coletado perto de 50 mil imagens e fez relação entre elas e acusados de crimes diversos, como furto, roubo, tráfico e as ligações com facções criminosas. E continua recebendo subsídios de policiais. “O Batalhão de Choque foi a um presídio onde acontecia uma rebelião e constatou o que eu havia falado na palestra. Os policiais tiraram fotos com celular e me enviaram”, conta.

O capitão Alden diz que é contra o racismo, mas entra em contradição muitas vezes. Em uma delas, ao contar que na “Rússia, em 1920, surgiu o primeiro museu para catalogar tatuagens criminais. A sociedade usava marcas para estigmatizar a população: os negros, os pobres, os trangêneros… eles eram marcados”.

Em outro momento, ao ser questionado se a polícia também relacionava o jeito de se vestir dos jovens de periferia ao crime negou, no entanto lembrou que um empresário de uma marca famosa chegou a procurar o comando geral da PM da Bahia para saber se “era indicado que a polícia, nas escolas, só fizesse abordagem a quem usava a sua marca. Tecnicamente não existe isso. Tem um tenente em Alagoinhas que está fazendo um levantamento da roupa que as pessoas usam. Isso não é preconceito, mas uma posição dele de investigar.”

E continua: “Na Bahia, não existe nenhuma demarcação clara de quem usar essa ou outra marca é associado ao crime, mas se você perguntar à maioria dos policiais eles percebem um padrão de roupa, de marca naquelas pessoas comprovadamente associadas ao crime. As pessoas que a gente pesquisou, na maioria dos casos, não tinham condições de comprar aquelas roupas (de marca). Quando você fazia a somatória, a pessoa estava usando quase R$ 300 em roupa e o perfil econômico dela não condizia com aquela realidade”, descreve.

Segundo ele, “no final de ano de 2012, diversos gerentes de loja do shopping acionaram a PM, porque entravam grupos vestidos com aquela marca, correntes e um bolo de dinheiro na mão. Faziam questão de demonstrar que tinham aquela possibilidade”.

Alden faz palestras em muitos lugares, como igrejas e escolas públicas e incentiva os pais a monitorarem as crianças: “em lugares de criminalidade forte, as crianças não têm outra referência: vêm como heróis os que andam armados, quem as protege da ação policial, que quando você tem uma demanda de remédio, um gás que está faltando, então, o criminoso faz o papel do estado. Elas não têm visto outra forma de crescer na sociedade e tem essas pessoas como referência. Ela vai se encantando com aqueles símbolos. Falamos para os pais observarem no dia a dia, o corte de cabelo, roupa, tatuagem, se o filho está mais agressivo”.

Para finalizar o acervo de preconceitos coletados, o oficial da PM ainda relaciona ideologia de esquerda ao comportamento criminoso. Para o capitão, o Manual da Guerrilha Urbana, do baiano Carlos Marighella, ex-presidente do Partido Comunista e liderança da Aliança Nacional Libertadora (ANL), com instruções de enfrentamento à ditadura, é “o livro de cabeceira pra quem vai entrar no PCC”. Marighella, caçado pelo regime militar, foi morto em 1969 em uma emboscada que envolveu 45 policiais. Foi enterrado quase como indigente em São Paulo. Seus restos mortais só foram transferidos para Salvador no dia 10 de dezembro de 1979, data do Dia Internacional dos Direitos Humanos. A família teve que esperar a Lei da Anistia para velar o corpo e tentar resgatar a sua história de luta.

Operações policiais

Uma das polícias mais temida da Bahia é a da Caatinga. A Companhia de Polícia de Ações em Caatinga (CPAC) foi criada em abril de 2001 para combater o narcotráfico, quadrilhas especializadas em assaltos a carro-forte e bancos no interior baiano. Usa um uniforme camuflado e tem treinamento de guerra. É uma extensão do Batalhão de Choque fora da região metropolitana, chamada para reforço da segurança em Salvador em algumas operações, em grandes eventos.

Nas comunidades mais populares, a truculência ficou marcada, sobretudo pelo lema inicialmente usado pela companhia: “Pai faz, mãe cria e a Caatinga mata”. Posteriormente, a frase foi trocada para algo menos assustador: “Sempre que possível, com a maior força possível, o mais rápido que puder”. Nem por isso, deixou de ser associada à violência.

Atualmente, a Rondesp tem sido apontada como a mais truculenta. Foram policiais da Rondesp que executaram 13 jovens negros no Cabula, em 6 de fevereiro, que mataram mais três pessoas no bairro Cosme de Farias no último dia 26 de abril. É da Rondesp também que partem as ameaças de morte aos integrantes da Campanha Reaja. Uma delas incluída no blog da Reaja por um policial militar. Usando logomarca da campanha eles estamparam a imagem com a frase “Reaja e Morra”.

A intimidação também está nos nomes dos veículos de apoio tático. O blindado é chamado pelos próprios policiais de “Miseravão”, que para os baianos significa desalmado, carniceiro, cruel.

Muitas ações policiais têm nomes racistas. Desde 2010, têm sido realizadas operações em bairros pobres da capital e na região metropolitana que parecem mais uma série: Saneamento I, II… O secretário de segurança mudou, mas a Operação Saneamento continuou, apesar dos reiterados protestos dos movimentos sociais, como a Campanha Reaja. Em janeiro de 2013 aconteceu mais uma em vários bairros de Salvador.

Também em abril de 2013, a Operação Quilombo, deflagrada pelas polícias Civil e Militar, gerou críticas. O professor da UFBA Samuel Vida criticou o governo em um artigo (Operação Quilombo e o republicanismo baiano): “Este episódio revela-se paradigmático, pois, para além de um ato isolado, delineia a real situação da abordagem das relações raciais e do racismo no âmbito governamental baiano. O governo atual transita em seu sétimo ano de auto proclamado ‘republicanismo’, sem expressar qualquer política significativa para o enfrentamento ao racismo”.

Uma justificativa recorrente de policiais e do próprio governo para explicar por que a Grande Salvador liderar as mortes de negros no país é que “80% da população é negra e, por isso, é natural que o maior número de mortos seja esteja entre os afrodescendentes”.

Se o raciocínio fosse correto as negras e negros baianos deveriam constar nos indicadores positivos, ocupariam a maioria dos cargos públicos e não estariam, em sua grande maioria, na informalidade e ganhariam pelo menos um salário mínimo. As estatísticas do IBGE, as audiências públicas e até as pesquisas sobre mobilidade urbana, que dão conta que 40% da população soteropolitana anda a pé porque não pode pagar pelo transporte. São indicadores que derrubam a retórica institucionalizada e demonstram que a superação do racismo passa pela alteração das condições reais da vida do povo negro e também por uma desconstrução do discurso oficial, pautado na negação do problema e que se constitui nele mesmo uma prática e um comportamento racista.

*Para o Portal Geledés

Foto: Lena Azevedo

Fonte: Geledés

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