Quer entender 2016? Talvez valha a pena olhar para 1970 e 1972

Foi uma derrota; não uma hecatombe.
Foi uma derrota; não uma hecatombe.

Por Mauro Lopes.

A manutenção dos sistemas de dominação depende de renovações sistemáticas do “definitivo”. É da sua própria lógica: para as classes dominantes, é sempre um risco permitir que a história seja lida e interpretada pelos pobres.

Um dos momentos mais emblemáticos dessa tentativa reiterada dos ricos e seus agentes de construção de consensos foi a tese do “fim da história”. Em artigo publicado em 1989 com o título de “O fim da história”, Francis Fukuyama causou furor nas mídias conservadoras ao redor do planeta ao afirmar que o capitalismo e a democracia burguesa constituiriam o coroamento da história da humanidade e que nada haveria depois disso.

Era o momento culminante do neoliberalismo. Reagan estava encerrando seus mandatos (1981-89) e preparando-se para passar o bastão para o “falcão” George Bush; Margareth Thatcher reinava na Inglaterra (1979-90). Enriquecer, liquidar com os sindicatos, promover o capital financeiro… Tudo isso parece novidade criada pela atual onda dos conservadores, mas era o grito da moda de então.

A previsão de Fukuyama  deu certo –para ele. Enriqueceu, mora numa mansão milionária em Palo Alto na Califórnia, mas ninguém dá dois tostões pela tese dele. A história não acabou, como mostraram a crise cambial europeia de 1992/93, a quebra do México (1994), a crise asiática, seguida da crise russa (1997-98), o estouro da bolha da Internet (2000), a crise argentina (2001) e, finalmente, a grande crise no centro do império, em 2008. Como sabemos, há outra vindo, ali na esquina.

Mas as elites insistiam à época que a “prosperidade” neoliberal não teria fim –na verdade, era um colossal processo de concentração de riqueza e alastramento da pobreza e da miséria ao redor do planeta.

É o que assistimos hoje. Ler/ouvir leitões, mervais, meirelles, sabinos, mainardis e outros sem conhecer a história dá a sensação de que há um proverbial “bom senso” econômico rompido pelos governos de esquerda e que as regras de ouro que “sempre” valeram recolocará a casa em ordem –abusam da imagem infantil e ridícula das finanças familiares como se fossem referência para a do país, com o objetivo de expurgar a história do debate. A cantilena das elites é a mesma de Reagan e Tatcher, sem tirar nem por. Arruinaram a vida de milhões, quebraram o planeta –e farão isso de novo, contanto que se garanta a eles o mesmo destino de Fukuyama: a casa milionária.

É uma estratégia dos ricos contra os pobres. Um ídolo da direita, o bilionário Warren Buffett, tem uma frase sintomática: “Se a história passada fosse tudo o que importa no jogo, as pessoas mais ricas seriam os bibliotecários.” Não olhem para a história; suas derrotas, pobres, negros, mulheres, são definitivas.

Para os ricos, a história serve para cultivar “tradições” que lhes projete sensação de infinitude. Não é à toa que os novos ricos são obcecados pelo tema da realeza e dos títulos nobiliárquicos.

Este renovado arquivamento da história está acontecendo agora com a análise das eleições de 2016. A direita e seus loquazes gritam nas mídias de massa que a esquerda “acabou”, que a população quer “ordem” e “tranquilidade”, que o “bom senso” finalmente voltou ao país. Apague-se o passado “negro” dos “malditos” do PT e vamos colocar as coisas nos seus devidos lugares.

O que mais desejam eles, depois de sua vitória eleitoral? Que seu discurso sobre o caráter definitivo da derrota seja absorvido pelos pobres, para quebrar sua autoconfiança abalada, para semear divisões e passividade. Antonio Martins, no Outras Palavras, desnudou essa estratégia com precisão: não deixe de ler/ver aqui.

Está dando certo. As esquerdas estão num frenesi autofágico, os pobres estão encolhidos no canto, as políticas de destruição do país avançam aceleradamente.

Houve erros ao longo dos governos do PT? Sim, é óbvio? Alguns deles muito graves? Parece que há consenso na esquerda sobre isso, mesmo dentro do PT. É preciso dialogar sobre eles? Claro. Mas o mundo não acabou. Paralisar-se na luta política contra a ofensiva neoliberal repaginada e abrir uma longa “assembleia de autocrítica” parece que facilitará o trabalho deles.

Uma sugestão. Que tal olhar para 2016 à luz da história? Mais precisamente: que tal olhar para 2016 a partir das derrotas de 1970 e 1972? Talvez possamos descobrir mais similitudes que imaginamos, talvez possamos concluir que a tal “originalidade” do processo atual é bem menor do que a direita celebra nas TVs, jornais, rádios, revistas e Internet.

Eles dizem, estampam nas manchetes: foi uma derrota “histórica” da esquerda, que abre um período longo (tem gente que fala em 10, 20 anos!) de supremacia da direita. Será mesmo?

Pois vale examinar o que aconteceu em 1970 e 1972.

Primeiro, quanto ao fenômeno do “não voto”, cantado em prosa e verso como símbolo da falência da política, dos partidos, da democracia, de todo o universo…

O Tribunal Superior Eleitoral informou que 10,7 milhões de pessoas votaram nulo, branco ou não compareceram às urnas no segundo turno de 2016 (32,5% do eleitorado). Em 1970, este percentual foi de 35,4%. Em 1972, nas eleições municipais, este percentual foi de 31,2%. Quando os números nacionais estiverem consolidados, dificilmente o percentual será superior ao de 1972 (pois os dados do segundo turno insinuam um eleitor mais reativo que a soma do total dos eleitores do país).

E quanto à derrota das forças progressistas? É realmente impressionante comparar os números. Nas eleições municipais de 1972, a direita, representada pelo partido da ditadura, a Arena, elegeu nada menos que 3.322 (84%) prefeitos nos 3.947 municípios da época –o MDB, partido único da oposição legal elegeu 463 (11%). Os demais 162 (4,1%) eram nomeados -pode parecer incrível que isso tenha existido aos que desconhecem a história do país, mas prefeitos eram nomeados pelos miliares nas capitais, estâncias hidrominerais e municípios declarados de “segurança nacional”.

E agora? Em 2016, os partidos que apoiaram o golpe de Estado elegeram 4.814 prefeitos  (87%) enquanto a oposição ao golpe elegeu 13% (692) –os números ainda carecem de consolidação final.

Em 1972, os golpistas fizeram 84% dos prefeitos; agora, 87%. Em 1972, a oposição elegeu 11%; agora, 13% (se quiser conhecer em detalhes os números de 1970 clique aqui; para os de 1972 clique aqui).

O cenário de 1972 não foi diferente do de 1970, nas eleições para o Congresso Nacional, dominado pela direita como o de hoje. A Arena elegeu 40 senadores, o MDB, 6; a Arena elegeu 223 deputados, enquanto o MDB elegeu 87. O placar do impeachment mostra que em 1970 o cenário era bem mais adverso:  o golpe venceu por 61 votos a 20, enquanto na Câmara o placar foi de 367 a 131.

São números simétricos demais para serem apenas coincidência. Ou não?

E quanto às análises da direita? Eram idênticas às de hoje!

Reportagem no Estado de S.Paulo a partir de amigável conversa com o senador Carvalho Pinto (Arena), como de resto amigáveis são as conversas da mídia de direita com os “carvalhos pintos” de hoje (FHC, Temer, Serra, Aécio et caterva), afirmava que:

  1. Ocorrera uma “esmagadora vitória da Arena” –agora, as reportagens falam em esmagadora vitória da direita.
  2. Uma das causas da vitória: “o terrorismo contribuiu para a vitória do partido do governo” –agora, a direita afirma que as ocupações dos estudantes, acusadas de algo próximo do “terrorismo” teriam prejudicado os candidatos de esquerda. E já se começa a legalizar o uso da violência e mesmo da tortura contra eles (clique aqui e saiba). Nos anos 70, diante do ambiente ditatorial repressivo, houve aqueles que se decidiram pelo confronto armado com as forças de segurança do regime e pagaram por isso com torturas e assassinatos, explícita ou implicitamente aceitos pelas elites e setores das camadas médias.
  3. Outra causa da vitória à época: “O povo brasileiro é de índole ordeira e conservadora” –não é esse o discurso de agora, de um pretenso “horror” do povo brasileiro ao “radicalismo”?
  4. Por fim, a conclusão do repórter com Carvalho Pinto em 1970 parece agora recortado colado nas reportagens, artigos e declarações de jornalistas e analistas de direita de 2016: o povo teria votado com o governo “talvez menos pelo fato de apoiar a sua política do que ele representar a autoridade –e no presente caso, uma autoridade que se conduz com serenidade, que inspira confiança e abre uma perspectiva de ordem e tranquilidade”.

Há grandes diferenças em relação aos anos 1970. Era um país menos complexo, não havia internet, redes sociais nem celulares, o processo de urbanização ainda estava em curso. O peso da repressão direta contra os democratas, com as prisões, torturas e assassinatos, era proporcionalmente maior ao de hoje (apesar de o Judiciário e o Executivo, com a mobilização das forças de segurança estarem aprofundando assustadoramente a repressão); por outro lado, há uma relevância e competência das mídias de massa na construção da opinião que superam em muito o cenário do século passado.

Sim, há diferenças gritantes.

Mas era o Brasil com a mesma elite golpista, com os democratas como hoje; e é a mesma política deliberada contra os pobres.

As derrotas de 1970 e sobretudo a de 1972 (municipais como a de agora) não impediram que, em 1974, o povo levasse a ditadura a uma surra história, elegendo 16 senadores da oposição em 22, e começando a virar o jogo rumo à redemocratização.

Dois anos depois de 1972, houve 1974.

E a situação era muito pior que hoje. A articulação dos pobres com apoio dos padres, bispos e pastorais animados pela Teologia da Libertação, os militantes sindicais e estudantis que atuavam na clandestinidade ou quase isso, os intelectuais e professores aglutinados em torno da SBPC, os artistas… enfim, havia resistência e  construção de alternativa, em condições muito mais adversas que as de hoje

Haverá 2018, depois de 2016. Jogar a toalha agora, engolir e, de alguma maneira, internalizar o discurso da direita de que o futuro a eles pertence só desarmará os pobres.

Houve uma derrota. Mas não uma hecatombe.

Fonte: Outras Palavras / Mauro Lopes.

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