Quem são elas: o perfil das mulheres que abortam no Brasil

Ainda encarado como uma questão moral, a criminalização do aborto impõe medo e solidão para as brasileiras que decidem interromper a gravidez.

Ilustração: Vitória Coelho

Por Gabriella Soares e Maria Clara Novais.

“Era uma pressão do tipo ou o emprego ou o filho”. Laura tinha 33 anos quando se sentiu coagida a realizar um aborto. Ela trabalhava como empregada doméstica na casa de uma família paulista e, quando descobriu que estava grávida, procurou os patrões para contar a notícia. Cecília, a dona da casa, respondeu que ou ela interrompia a gravidez, ou seria demitida.

Laura já tinha um filho de 18 anos do primeiro casamento, realizado quando ela tinha 13 anos. Ela se separou do marido aos 23 anos e assumiu toda a responsabilidade pela criança. Foi contratada pela família do coronel do exército logo depois. Com o tempo, Laura conheceu um rapaz com o qual começou a namorar e acabou engravidando. Ela não contou para ele.

A escolha de expor a situação para Cecília foi para buscar apoio em uma pessoa que também era mãe e tinha uma família. “O apoio que eles me deram foi pagar a clínica para eu fazer o aborto. Eu precisava do emprego, estava na necessidade, não era fácil. Ela me levou em uma clínica, fez todos os arranjos com o médico e pagou”, conta Laura.

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Ela já estava grávida de três meses quando passou pelo procedimento cirúrgico em uma clínica particular. Cecília a acompanhou durante o aborto. “Entrei lá, eles me deram uma injeção e dormi; quando acordei já tava na sala. Você tem contrações, quando ela me deu a injeção começou a me dar cólicas, cólicas demais, aquela dor. Eu tremia, ela [Cecília] tremia… porque você não sabe se você vai sair viva ou morta, então é arriscado, muito arriscado. Eu não faria nunca hoje, jamais”.

Vazio

Depois do aborto, Laura sentia um vazio e arrependimento. O namorado dela só ficou sabendo quando ela já estava no hospital. Furioso e inconformado, ele terminou o relacionamento.

A família dela também não a perdoa por não ter mantido a gravidez. Para eles, “onde come um, come dez, come quinze”, conta. Dez anos depois, a mãe dela ainda condena e critica sua atitude. Na época, foi a mãe que contou sobre o aborto para toda a família, que é religiosa e só aceita a interrupção em casos de estupro. “Sempre que tem um comentário assim, você chora, você se pergunta o porquê com você…”, ela relata.

A reação de sua família junta-se ao arrependimento próprio, Laura precisou de ajuda psicológica para lidar com a experiência. “A minha patroa mesmo procurou um psicólogo para mim. Porque eu só chorava, chorava; onde eu estava, eu estava desesperada. Eu tinha que desabafar com alguém porque até aquele momento só eu e ela sabíamos”, lembra.

Laura trabalhou 15 anos na casa do coronel e de Cecília, que sempre a alertava para não engravidar novamente. Essa é uma das razões para que ela não tenha tido nenhuma outra gestação.

Hoje, Laura é casada com outro homem e o sonho do casal é ter um filho. Ele sabe sobre o aborto que ela fez e, embora não julgue, sempre fala que queria uma criança fruto do relacionamento. Laura está na menopausa e não pode mais engravidar. Assim, sua maior alegria são as seis netas. Ela ainda mantém uma amizade com o ex-namorado que sempre relembra: ‘hoje nosso filho era pra ter 10 anos e você fez uma coisa dessa’.

Pela sua experiência e por ser religiosa como sua família, Laura é contra o aborto que aconteça fora do contexto de violência. Ela tem amigas que já fizeram essa escolha e as aconselha contra. “Porque a gravidez e o bebê é uma responsabilidade, mas o aborto também, é muito perigoso e você sofre as consequências depois. Você sempre está com a consciência culpada, sempre. Mas cada um tem uma maneira de pensar nisso”.

Me senti invadida

“Além de motivos sociais, como a minha idade na época, eu morava de favor na casa de outras pessoas, não tinha estabilidade para mim ou para uma criança e tampouco maturidade emocional ou psicológica para criar uma criança”. Sofia era uma adolescente de apenas 15 anos vivendo em Maceió quando decidiu que não iria levar adiante sua gravidez. Na época, ela estava namorando Otávio, um homem de 20 anos, e tinha sido abandonada pelos pais.

A mãe de Sofia sofria de depressão e tinha surtos psicóticos. A primeira vez que expulsou a menina de casa, ela tinha apenas 10 anos. Aos 11, enquanto estava na casa de amigos da família, sofreu o primeiro abuso sexual.

Até os 13 anos, Sofia passou por muitos lares até ir morar com o pai, envolvido com agiotagem. Na época, ele era casado com uma adolescente de 16 anos. Sofia ficou oito meses naquela casa, até ser expulsa novamente.

A menina viveu de favor em diferentes casas e aos 15 anos conheceu Otávio, com quem começou um relacionamento e que a ajudava a sobreviver, comprando comida e ajudando financeiramente. Ele também comprava o anticoncepcional que Sofia usava, mas como ambos não tinham muito dinheiro, o uso do remédio era inadequado e esporádico.

“Quando descobri a gravidez nessa situação, fiquei desesperada, ele deixou tudo a minha escolha, na realidade, mas mesmo assim, a gente ficou bem desesperado. No mesmo dia eu já tava certa de que queria abortar”, afirma ela.

Misoprostol

Apesar de Otávio dizer que assumiria a gravidez, não era o que Sofia queria, então começou a pesquisar por métodos abortivos na internet. Após descobrir o valor do remédio, o casal começou a juntar dinheiro e vender pertences para conseguir a quantia.

Durante o processo, um casal de amigos mais velhos, Rodrigo e Pedro, pediram para que ela mantivesse a gravidez, pois eles tinham interesse em adotar o bebê.

No entanto, Sofia não se sentia bem com a gestação. “Eu não consegui suportar a ideia de uma barriga crescendo em mim, de ter algo dentro de mim, eu me sentia invadida”. Otávio a ajudou a comprar o medicamento abortivo e ficou com ela até que ela tomasse o remédio.

O misoprostol, medicamento utilizado por Sofia, chegou ao Brasil em 1986 e é o principal composto utilizado para fazer abortos no mundo. O remédio tinha como objetivo o tratamento de úlceras gástricas, mas logo foi descoberto como um método eficaz e barato para interromper a gravidez.

Segundo dados divulgados pelo Ministério da Saúde, nove em cada dez mulheres que usam a dose correta de misoprostol conseguem abortar. Em 1991, o fármaco foi proibido no Brasil.

Entretanto, a Pesquisa Nacional do Aborto de 2016 demonstrou que 48% das mulheres utilizaram medicamentos para abortar. Em 1980, além das clínicas, os principais métodos abortivos eram chás, ervas, sondas, objetos perfurantes e líquidos cáusticos, procedimentos considerados perigosos para a saúde da mulher.

Mesmo com o consumo do medicamento tendo triplicado durante os anos, o número de atendimentos pós-aborto não aumentou. Segundo o Ministério da Saúde, houve uma queda na mortalidade de mulheres que escolheram interromper a gravidez.

Emocional

Durante uma semana, Sofia ficou internada após sangramentos intensos. Rodrigo e Pedro a levaram para um hospital particular e os médicos realizaram a curetagem, um procedimento médico que raspa a cavidade uterina. A menina falou para a família com quem morava que não sabia que estava grávida e que o aborto foi espontâneo. Otávio não foi até a clínica.

“Depois do aborto, eu senti como se tivesse realizado com sucesso uma tarefa bem difícil. Eu senti que nunca mais queria passar por aquilo, a gravidez, mesmo sendo fruto de sexo consensual, foi um estupro ao meu emocional”, lembra Sofia.

O relacionamento da jovem com Otávio durou mais quatro meses. Com 17 anos, ela tentou se reaproximar da mãe, mas não deu certo. Aos 18, ela recebeu uma herança após a morte do pai e decidiu mudar para outro país. Sofia escolheu a Dinamarca pela qualidade de vida e pela oportunidade de estudar.

Atualmente aos 21 anos, ela afirma que, se engravidasse, faria um aborto novamente, mesmo agora sabendo mais sobre os riscos dos medicamentos e procedimentos. Sua certeza de que não quer ser mãe é tão grande que escolheu o DIU de cobre como método contraceptivo porque pesquisas mostram que o cobre aumenta a chances de aborto espontâneo.

Ela também acredita que a ideia de que formas de prevenir uma gestação está disponível para todas as mulheres é irreal, já que não são todas as pessoas que conseguem arcar com qualquer método contraceptivo.

Barreiras

Além disso, durante parte da adolescência, ela encontrou outra barreira para ter acesso a preservativos: “Eu não lembro de um posto de saúde perto de casa que tinha e eu não podia ser atendida, porque não tinha “pais” como responsável. Eu não podia pegar camisinhas ou nenhum outro [método contraceptivo]. Foi o que me disseram.”
Sofia acredita que a decisão de abortar não é uma decisão egoísta nem fácil. “Eu tive pais ruins e eu definitivamente não quero por uma criança no mundo irresponsavelmente e proporcionar as coisas que eu vivi por descaso parental. A maternidade é algo socialmente empurrado nas costas como se fosse a única obrigação tua a partir do momento que a gravidez surge”, explica ela.

A história de Sofia é similar a de muitas adolescentes brasileiras. A Pesquisa Nacional do Aborto apontou que 29% dos abortos realizado em 2016 foram de mulheres com idade de 12 a 19 anos.

Segundo o Ministério da Saúde, essas meninas geralmente estão em um relacionamento estabelecido, são dependentes economicamente da família ou do companheiro, não planejam a gravidez e utilizam remédios.

Clandestinidade

As histórias de Laura e Sofia demonstram os riscos que milhares de mulheres correm para conseguir ter direito e escolha sobre o próprio corpo. E estes riscos estão presentes mesmo em situações em que a lei permite a interrupção (casos de estupro, gravidez que oferece risco para a mãe e quando o feto é anencéfalo).

Uma pesquisa, financiada pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, revelou que, entre 2013 e 2015, mais da metade das brasileiras que procuraram o aborto legal não foram atendidas.

Em dois anos, das 5.075 mulheres que foram à rede pública para realizar o procedimento, 2.442 (ou 48%) conseguiram fazer valer o direito. Além disso, o estudo aponta que 94% das que buscaram pelo aborto legal sofreram estupro.

Em todo o país há apenas 67 centros que realizam interrupções, mas em 2015, quando a pesquisa foi realizada, apenas 37 estavam funcionando. Em 15 desses centros foram realizados menos de 10 procedimentos nos últimos 10 anos.

Segundo dados do Ministério da Saúde, em 2017, foram realizados 1.636 abortos legais. Nos seis anos anteriores, 4.262 adolescentes de 10 a 19 anos mantiveram a gravidez em decorrência de estupros, pois não foram atendidas pelo sistema de saúde. Dessa quantia, 1.875 tinham entre 10 e 14 anos de idade. Em aproximadamente 7 de cada 10 casos o estuprador era da família.

No caso de fetos anencéfalos foi constatado que as mulheres também não têm acesso a interrupção da gravidez com facilidade. Ainda de acordo com a pasta, de 2006 a 2016, mais de 400 mulheres acabaram tendo bebês anencéfalos por ano. A garantia de aborto nesses casos existe desde 2012.

Resistência

Além das poucas instituições que fazem o procedimento de maneira segura, também há resistência por parte da equipe médica. Apesar de existir a garantia de sigilo, se um médico não acreditar nas alegações da solicitante pode denunciá-la. A pena para a mulher que for considerada culpada por abortar é de um a três anos de detenção.

Além disso, muitos profissionais alegam que não podem realizar o aborto por questões morais ou religiosas, esse comportamento é conhecido como “objeção de consciência”. Entretanto, segundo diretrizes do Ministério da Saúde, os médicos só podem recusar atendimento em casos em que haja outro profissional para atender a paciente, em que não exista risco de morte e naqueles em que a omissão não cause danos.

Moralidade

O Instituto de Bioética Anis, que realiza a Pesquisa Nacional do Aborto, afirma que essas situações refletem uma exigência moral sobre o comportamento sexual e reprodutivo que seria adequado às mulheres.

As dificuldades de fazer valer seus direitos e de poder decidir se querem ou não ser mães e viver uma maternidade idealizada socialmente podem impor a clandestinidade do aborto a elas.

Mariza Theme Filha é médica especializada em saúde pública e coletiva da Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz) e estuda a saúde mental de mulheres passando por uma gravidez indesejada. Para ela, o processo abortivo já é uma decisão muito difícil, que pode ser agravado pela ameaça de penalização.

“Nós falhamos no uso dos métodos contraceptivos, os métodos falham, então é inimaginável como isso pode ser criminalizado. Só poderia em uma situação em que não houvesse nenhuma falha, mas existem falhas e criminalizar esse aspecto da vida da mulher é de uma crueldade enorme”.

Perfil

Segundo o Ministério da Saúde, a maioria das mulheres que abortam utiliza métodos contraceptivos, principalmente a pílula anticoncepcional, tem entre 20 e 29 anos, está em uma união estável e é católica. Além disso, quanto maior a renda e a escolaridade, maiores as chances de a primeira gravidez ser interrompida.

Os dados também indicam que 73% das jovens entre 18 e 24 anos que engravidam consideram interromper a gestação. Ainda assim, os homens na mesma faixa etária têm mais experiência com o aborto do que as mulheres: a primeira gravidez não é interrompida por 72,2% das mulheres, já com os homens o índice é de 34,5%. Os homens abortam duas vezes mais que as mulheres em sua vida reprodutiva.

E muitas vezes o uso de preservativos é decidido por eles que, em geral, não se responsabilizam pela gestação e pela criação dos filhos. “Hoje não temos uma estratégia eficaz de planejamento familiar, acesso à saúde, educação sexual, tudo isso faz parte de uma estratégia ampla, em que o aborto precisa ser incluído para se pensar a saúde e os direitos reprodutivos das mulheres”, afirma a Anis.

Gravidez indesejada

Nesse contexto, as taxas de gravidez indesejada são altas entre as mulheres que mantém a gestação. Segundo a pesquisa da doutora Theme, 50% das brasileiras não desejavam a gravidez no momento em que estavam grávidas e 30% em momento algum. Entre as que assumiram não desejarem ter filhos, 10% afirmaram que utilizaram métodos abortivos.

Três em cada dez mulheres grávidas abortam no Brasil de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS). O Ministério da Saúde estima que ocorram cerca de 1,4 milhão de abortamentos por ano, a taxa é de 3,7 interrupções para cada 100 mulheres de 15 a 49 anos.

Segundo a Pesquisa Nacional de Aborto de 2016, de autoria de Débora Diniz, Marcelo Medeiros e Alberto Madeiro, aos 40 anos, quase uma em cada cinco mulheres brasileiras já fez um aborto.

Para a Anis, a maioria dessas mulheres passam pela experiência de forma solitária por causa do medo de julgamento dos familiares e da denúncia. “Elas estão sozinhas quando decidem abortar, sozinhas quando realizam o procedimento, sozinhas depois de abortarem. O silêncio, a solidão e o abandono, são sem dúvida sentimentos que acompanham a maioria dessas mulheres que passa pela experiência da clandestinidade”.

A favor

O Conselho Federal de Psicologia (CFP) se posiciona a favor da descriminalização e legalização do aborto no Brasil. Para o CFP, esse é um elemento sociocultural que demonstra os aspectos violentos e de sofrimento da mulher.

Assim, o Conselho entende que a defesa dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres faz parte da defesa dos seus direitos humanos e que isso significa o direito ao aborto seguro e legal.

“Nós temos que avançar no sentido que se a mulher não deseja manter a gravidez, ela possa ser orientada e fazer essa interrupção segura e gratuitamente no serviço público. Descriminalizar é proteger a saúde, a mulher não morrer, não ficar infértil, não ser presa”, defende a doutora Theme.

A Anis afirma que a proibição é ineficaz porque não evita o aborto ou a gestação indesejada, mas submete as mulheres a ameaças à saúde e ao medo de consequências legais e morais. “Um debate amplo inclui a sensibilização da complexidade de fatores que envolvem a decisão reprodutiva de uma mulher, e assim entender também que só ela pode ter condições de dizer se pode ou não prosseguir com uma gravidez”.

Causa de morte

Segundo o estudo 20 anos de Pesquisa sobre Aborto no Brasil, do Ministério da Saúde, o aborto é a quinta causa mais comum de morte materna no Brasil. Números de 2016 mostram que 7,56 % das mortes são consequência da interrupção da gestação.

Mas o número de mortes por aborto podem ser ainda maiores, já que o próprio Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DataSUS) alerta que há inconsistência dos dados devido ao preenchimento das causas da morte (se na gravidez, parto, puerpério ou aborto) na declaração de óbito. Segundo a pesquisa, o total de mortes maternas demonstra ainda a desigualdade racial no país: o número de mulheres negras mortas é quase 50% maior.

A pesquisa Aborto no Mundo 2017: Progresso e Acesso Desigual mostra que em países em que o aborto foi legalizado a mortalidade materna caiu drasticamente e o número de abortos também foi reduzido.

Em Estados em que a interrupção não é permitida em qualquer hipótese ou apenas no caso de risco de vida da mãe, são 37 abortos a cada mil mulheres. Já nos países em que o aborto é legalizado, a proporção é de 34 para mil mulheres. No Brasil, segundo o DataSUS, entre 1993 e 2013, 1.572 mulheres morreram por causa do aborto inseguro.

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