Quarta-feira só é de cinzas para a burguesia

Por Thiago Iessim, para Desacato.info.

O Carnaval, o “adeus à carne”, festa popular em diversos países e culturas mas em especial em nosso Brasil, cresce cada dia mais desigual e elitista. A ideia romana da festa, de subversão social durante as comemorações, foi há muito perdida em nosso modelo aburguesado da celebração. Ao contrário da festa romana, aqui não mais alforriamos aos escravos modernos tampouco os agraciamos com o direito de festejar.

Uma massa de escravos modernos invisíveis, itinerantes e incertos, aqueles que continuam trabalhando quando todos os outros rogam graças ao seu Deus por terem um descanso. Aqueles que quando os miramos pensamos de forma contemplativa: — “Que nobre atitude, deixando de estar com sua família, ou aqui comemorando, para ganhar a vida.” — Hipócritas que somos! Quando lhes foi ofertado o direito ao descanso ou de celebração que não no exato momento em que lhes ofertam uma pequena esperança de gozar do capital? Seja com horas-extras ou trabalhos informais de ocasião.

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Crianças dormindo dentro do isopor enquanto sua mãe trabalha como vendedora de bebidas no Carnaval de Salvador. Foto: Ale Pinheiro

Um empreendedorismo forçado pelo sistema de classes refletindo uma meritocracia ilusória, martelada diariamente pela grande mídia na cabeça da população através de casos extraordinários de ascensão social. Se esforce, trabalhe, seja incansável e você será recompensado — eles dizem — viverá como nós. E muitos acreditam.

De forma assincrônica, é transgredido um dos principais preceitos liberais: que o capital tende a cascatear, ou seja, quanto mais rico o empresário ficar, consequentemente, menos pobre o trabalhador ficará. Sendo assim, aos ambulantes e aos assalariados de baixa renda, que tem sua força de trabalho explorada nos dias das festividades, é recompensa um agrado financeiro que representa nada além dos interesses do próprio capital, uma imposição maquiada de escolha. Como negar o chamado da meritocracia quando esta bate à porta?

Mas não será através do trabalho e do esforço pessoal que as barreiras da desigualdade e ascensão social serão superadas, meu caro trabalhador, quiçá teremos algo próximo ao “Estado de Bem-estar Social” enquanto na lógica do capital. Aos empresários e governo, essencialmente controlados pela busca da acumulação, não é interessante mudar a pirâmide das classes sociais para uma forma geométrica sem ângulos.

Como escrito pelo economista francês Piketty¹, ao concluir o seu livro O Capital no Século XXI:

Essa desigualdade exprime uma contradição lógica fundamental. O empresário tende inevitavelmente a se transformar em rentista e a dominar cada vez mais aqueles que só possuem sua força de trabalho. Uma vez constituído, o capital se reproduz sozinho, mais rápido do que cresce a produção. O passado devora o futuro. Piketty (2014: 692).

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Uma opressão financeira vertical é necessária para realizar a manutenção dos luxos dos ricos e da mesquinhez habitual da classe média. É intrínseco à nossa sociedade necessitar de uma classe subalterna, uma que esteja tão desesperada a ponto acatar quaisquer oportunidades para ter ínfimo acesso ao capital. Uma lógica que tende a se perpetuar e que é dignificada e travestida como meritocracia. Quando na realidade trata-se da mais simples relação de poder e servilidade.

Para nós, afortunados do capital, a quarta-feira de cinzas representa o final de um descanso. Para os escravos modernos é somente mais um dia de labuta.

¹ Piketty, Thomas (2014), O Capital no Século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca.

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