Prospectivas em família: café, lágrimas e liberdade. Por Carlos Weinman.

Imagem: Pixabay.

 Por Carlos Weinman, para Desacato. info.

O olhar de Perséfone estava radiante pelo movimento que estava acontecendo na casa, pois ela e a mãe raramente recebiam visitas, existia uma alegria promovida pelo encontro dos irmãos no universo dos estranhos, fazia tempo que não sentia algo ou sentimento tão bom, isto é, um pedacinho de felicidade, pois, em geral, sua mãe a cuidava, tinha um olhar triste, próprio das pessoas que zelam pelas outras e temem o pior. Embora a mãe tentasse esconder, a situação da filha não era tranquila, existia o grande potencial de ameaça a sua vida, a doença avançava, seu corpo perdia rapidamente seus movimentos, era uma doença degenerativa, precisava de cuidados médicos mais caros e somente com uma cirurgia e com tratamento médico haveria esperanças.

No universo dos estranhos, nas condições extremas é possível encontrar uma vontade, uma força de querer viver e dar vida para aqueles que estão a sua volta, o que leva, diante das adversidades, das tempestades da vida a tendência enorme para questões filosóficas. Entre elas, encontramos o debate sobre a existência da liberdade, do livre arbítrio. Devido as circunstâncias, os irmãos e Roberto, começaram a trazer essas questões. Quando Deméter relatou para os irmãos, enquanto Perséfone não estava por perto, as condições de saúde da filha e suas aflições, muitos questionamentos sobre o determinismo biológico e a liberdade surgiram.

Deméter – Quando cheguei aqui busquei um começo, pois  não tinha ninguém, eu e meu falecido marido sonhamos com uma família, a morte trágica, em um acidente de carro, tirou o meu chão mais uma vez, quando estava superando essa dor, Perséfone começou ficar doente, conversei com os médicos, mas o tratamento está acima do que posso pagar, não estou aguentando tudo isso, acho que estamos fadados, determinados para um fim trágico, mas hoje vocês trouxeram um pouco de felicidade, pois ao menos ela conheceu dois dos meus irmãos.

Inaiê – Para mim o determinismo não é suficiente, a não ser que seja relacionada com a questão biológica, mas muitas coisas estão associadas com as circunstâncias sociais, culturais e econômicas que não dependem de uma opção meramente individual, mas correspondem a uma escolha feita pela coletividade, pela sociedade, se existem excluídos sociais está no fato que a sociedade é constituída por indivíduos que fazem suas escolhas.

Nesse momento Roberto chegou com o café, que serviu para inspirar os sentimentos e a conversa. Ulisses pegou uma xícara de café e disse:

Eu tenho minhas dúvidas sobre isso que você defende Inaiê, pois somos organismo vivos, temos decisões que são decorrentes de impulsos resultantes de substâncias que estão e são produzidas pelo nosso organismo. Dessa forma, somos seres determinados por uma questão biológica, temos a impressão de escolher, mas o que não quer dizer que não o façamos por um determinismo biológico.

Inaiê – Não ignoro o fato de sermos determinados por uma condição biológica e por nossas escolhas estarem ligadas a elas, mas não vejo que somos determinados exclusivamente por elas.  Poderíamos destacar o que Edgar Morin descreve sobre o humano, somos seres que possuem uma natureza física e biológica, temos uma organização físico/química, mas a nossa relação com a natureza e com os nossos semelhantes vai muito além do determinismo natural, podemos afirmar que no ser humano há elementos biológicos necessários para o desenvolvimento do que chamamos de consciência e  a partir disso temos a constituição da linguagem, dos valores e da cultura, que vão além do biológico, ficando a questão, na história da humanidade, sobre até que ponto é o elemento biológico que determina a nossa condição e o que corresponde ao elemento cultural.

Deméter – Vejo que vocês herdaram de nosso pai a paixão pelas discussões, li sobre Edgar Morin, lembro vagamente de uma parte em que ele afirma algo parecido com isso: “somos tão diferentes devido ao fato de sermos tão iguais”.

Roberto – Não entendi, o que você ou o autor quer dizer?

Deméter – Acredito que somos iguais no que corresponde a capacidade  criativa, de consciência, de buscar alternativas para os problemas, o que leva ao fato que se as pessoas ficarem longe uma das outras acabarão criando outras formas, valores, até soluções diferentes para problemas semelhantes, por isso, até mesmo na linguagem, vemos que ela muda constantemente, chegando ao ponto que se as pessoas de um determinado grupo fossem separadas e mantidas isoladamente, em dois grupos menores, com o passar dos anos, talvez não conseguissem mais se comunicar, não teriam um idioma em comum.

Roberto – Então pensando na situação que você está vivendo, temos uma questão biológica, a doença de sua filha e, ao mesmo tempo, há uma estrutura criada por nós seres humanos,  no caso por não ter condições,  a exclusão dos meios colocam em cheque a sobrevivência, o que não corresponde a vontade de Deus ou ao determinismo biológico, mas a uma opção que a sociedade que fazemos parte optou.

Nesse momento as lágrimas rolaram do rosto de Deméter, que não se conteve, uma mistura de choro e de uma tentativa de fala marcaram o momento, até que conseguiu dizer:

Ela é tudo para mim, meu trabalho não é suficiente para dar conta do tratamento, trabalho todos os dias, chego em minha casa, organizo tudo, no período da noite, mesmo cansada, não consigo dormir, pois sei que talvez seja meus últimos momentos com ela.  

Inaiê segurou a mão da irmã e disse:

– Agora não estás mais sozinha, vamos lutar com você, vamos levantar o dinheiro necessário, nem se para isso tivermos que vender a ferrugem dos esperançosos, em quatro vamos conseguir cuidar bem dela e alcançar o dinheiro necessário para o tratamento.

Nesse momento, o rosto de Deméter revelou um novo ânimo, decorrente da solidariedade dos irmãos, seres viajantes, pertencentes do mundo dos estranhos, a junção dos seus esforços daria esperança para a filha, pois a força dos estranhos está na sua capacidade de serem solidários uns om os outros, o mais difícil está em perceber no olhar do outro o reflexo da sua identidade e promover essa unidade, era o que justamente estava ocorrendo. Ulisses percebeu a alegria da irmã e disse:

Amanhã vamos trabalhar durante o dia, no supermercado, à tardinha podemos ver outros trabalhos para somar, tanto no final de semana, quanto no período noturno, para arrecadar o que precisamos. Só para constar, não defendi o determinismo ao extremo, só estava pensando um pouco, relacionando as circunstâncias com as minhas leituras das obras do filósofo Espinoza, já que o modo dele perceber a questão da liberdade é pouco distinto.

Roberto – Realmente, esse filósofo tem uma visão bem interessante. Ele defende que Deus é a natureza, o ser humano faz parte dessa, por isso está determinado pelas leis naturais, até mesmo o pensamento. Assim, o ser humano acredita ter livre-arbítrio, de ter o poder de escolha, mas na maioria das vezes, a escolha que fazemos é decorrente das circunstâncias que antecederam e que não temos como intervir, acreditamos que nossos desejos e ambições são nossos, mas são decorrentes da nossa mente, que não segue a nossa vontade, mas as leis da natureza, que não foram criadas por nós, nossas decisões estão ligadas a uma cadeia de causas e efeitos que na maioria das vezes desconhecemos.

Ulisses- No entanto, não devemos esquecer da noção de “conatus”, pois quando estamos dispostos a refletir sobre as causas, as relações, as circunstâncias, podemos fazer o que um vegetal ou a pedra não poderia, ampliando nossa condição de permanência no mundo. Ele define Conatus como a tendência de buscar nossa preservação, uma força vital, um esforço para preservar o nosso ser, quando há consciência dizemos que o conatus não é apenas um impulso, mas desejo, nós seres humanos temos uma estrutura autoconsciente, por isso em relação aos demais seres vivos, detemos maior conatus, força vital, temos uma certa “liberdade”, desde que estejamos dispostos a refletir sobre as causas e as relações dos acontecimentos humanos e da natureza.  

Deméter- Nesse sentido, poderíamos afirmar que, na relação com o mundo, o conatus pode aumentar ou diminuir de força, quando somos afetados por forças externas desenvolvemos sentimentos, uma forma de sentir, que Espinoza chamava de paixão, que são formas passivas do nosso ser.

Ulisses- É interessante como Espinoza a faz referência a alegria e a tristeza, a primeira aumenta a nossa potência de agir e fortalece o nosso conatus, a segunda diminui, existem alguns sentimentos que enfraquecem o nosso ser, quando odiamos diminuímos a nossa força vital, pois somos afetados pelo ser ou objeto de ódio.

Roberto – Mudando de assunto, independente das possibilidades e das escolhas que criaram o mundo dos estranhos, vamos organizar todas as nossas forças para salvar Perséfone.

Em seguida Perséfone sentou no colo de Roberto, os cinco conversaram muito, prepararam uma janta, saborearam a vida, com o diálogo, com a conversa reforçaram o sentimento de família, seguida do desejo de estar juntos, o que proporcionou a certeza e o sentimento de que entre eles não havia uma relação de estranheza, embora o mundo os tratasse como estranhos.

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Carlos Weinman é graduado em Filosofia pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (2000) com direito ao magistério em sociologia e mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (2003), pós-graduado Lato Sensu em Gestão da Comunicação pela universidade do Oeste de Santa Catarina. Atualmente é professor da Universidade do Oeste de Santa Catarina. Tem experiência na área de Filosofia e Sociologia com ênfase em Ética, atuando principalmente nos seguintes temas: Estado, política, cidadania, ética, moralidade, religião e direito, moralidade e liberdade.

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