Proposta de desapropriação surpreende moradores de Mariana

Minuta de acordo entre Ministério Público, prefeitura de Mariana e governo de Minas, sem a participação de vítimas, propõe transformar distrito em museu a céu aberto

Os moradores de Bento Rodrigues, em Mariana, primeiros a serem atingidos pela lama vazada da barragem do Fundão, correm o risco de perder suas casas pela segunda vez, agora definitivamente. Os Ministérios Públicos Federal e Estadual estão negociando um acordo com as empresas responsáveis pelo desastre – Samarco, Vale, BHP Billiton –, a prefeitura de Mariana e o governo de Minas para desapropriar os imóveis do distrito mais devastado pela tragédia que completa quatro anos no próximo dia 5 de novembro.

“É uma segunda perda, e essa de uma forma pior porque, se ela vir a acontecer, a gente sabe que nunca mais vamos ter aquilo de volta. E a gente corre um sério risco de nem poder frequentar lá mais como hoje. Pra mim está sendo até uma sensação pior do que o próprio dia do rompimento”, desabafa Mônica Santos, integrante da Comissão dos Atingidos de Bento Rodrigues.

Na minuta do acordo, obtida pela Agência Pública, os órgãos propõem a desapropriação e o tombamento das ruínas de Bento Rodrigues para transformá-la em um “museu de território”. Mariana fica no circuito das cidades históricas de Minas Gerais e, de acordo com o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), essa seria uma medida de “reparação integral pelos danos ao meio ambiente cultural no Município de Mariana”. A assinatura do termo está prevista para o dia 21 deste mês, conforme informou o Ministério Público ao enviar a minuta à Comissão dos Atingidos de Bento Rodrigues, há duas semanas, por e-mail.

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Uma audiência com os ex-moradores de Bento Rodrigues para debater a minuta está marcada para sexta-feira, 13. Segundo Mônica, a proposta, “que já chegou pronta” e “com prazo curto para ser discutida entre os atingidos”, os pegou de surpresa. “Mais uma vez eles estão passando por cima das nossas opiniões, dos nossos sentimentos, da gente enquanto proprietário. As pessoas não entendem o sentimento que a gente tem por aquele lugar”, disse.

Após o desastre em novembro de 2015 – que matou 19 pessoas, arrasou comunidades, provocou um estrago imenso na bacia do rio Doce e em seu entorno e levou a lama de rejeitos de minério até o oceano Atlântico –, a área foi isolada pela Samarco e apenas depois de uma ação judicial eles puderam ter acesso às suas casas, agora sob o risco de desapropriação.

Enquanto isso, os atingidos continuam em moradias provisórias; as obras da “nova Bento Rodrigues” têm conclusão prevista em dezembro do ano que vem. Para eles, portanto, as ruínas de suas propriedades são também a garantia de bem material, mas não apenas, como explica Mônica “É a nossa garantia, porque nós não fomos indenizados ainda, nós não fomos reassentados, mas a gente não só trata ali como garantia, mas como pertencimento. Se eu e a minha família não estivéssemos indo para lá aos finais de semana igual a gente faz, é fato que hoje a gente não estaria nesse mundo mais porque assim, a forma da gente estar vivendo, tentando sobreviver, é o fato de a gente poder estar indo lá”, concluiu Mônica.

Desde 2016, um grupo de moradores, que se identificam como “Loucos por Bento”, do qual Mônica faz parte, passa os finais de semana no distrito. Eles fazem questão de manter as tradições festivas, como a festa de São Bento, o padroeiro do local. O acordo em negociação determina que o projeto do “museu de território” deverá prever um local próprio para reunião e pernoite dos ex-moradores.

Por meio de nota, o Ministério Público de Minas Gerais declarou que nenhum TAC foi proposto à Samarco até o momento. “MPMG e MPF, juntamente com AGE (Advocacia Geral do Estado), SEMAD (Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável) e Município de Mariana, tem discutido a questão referente ao dique S4 e ao futuro da área do Bento Rodrigues, para verificar as possibilidades técnicas e jurídicas de utilização da área por seus proprietários e de preservação da memória da tragédia”, informou o órgão, que acrescentou: “Toda a análise será apresentada aos antigos moradores para devida informação e qualquer solução será construída conjuntamente, respeitado o princípio da dignidade da pessoa humana”.

Já o Ministério Público Federal informou que “avalia o alcance e o conteúdo do TAC, levando em conta a necessidade de equacionar o museu, a história e a participação dos atingidos”.

O que prevê o acordo:

Reprodução de trecho do acordo

Constituem objetos do presente termo (1) a justa indenização pela ocupação dos terrenos requisitados administrativamente para construção do Dique S4 em Bento Rodrigues no período entre 20 de setembro de 2016 e 20 de setembro de 2019; (2) a justa indenização para desapropriação por parte do Estado/Município dos imóveis objetos da requisição administrativa, bem como dos demais imóveis que constituem o distrito de Bento Rodrigues; (3) o reconhecimento do valor cultural do distrito de Bento Rodrigues; (4) a definição de medidas de reparação integral pelos danos ao meio ambiente cultural no Município de Mariana, através de (a) instituição do circuito turístico Caminhos da Mineração, nos termos da Lei Municipal 2855, de 15 de maio de 2014, integrando ao Circuito Estrada Real; (b) implantação de ponto do Circuito Caminhos da Mineração em Paracatu de Baixo, abrangendo a Igreja Santo Antônio e demais imóveis protegidos; (c) implantação e administração pelo, prazo mínimo de 30 anos, do museu de território Bento Rodrigues; (d) reparação in natura dos danos ao patrimônio material e imaterial, arqueológico e espeleológico no Município de Mariana; (e) elaboração e implantação, no que couber, de estudos, inventários, diagnósticos, planos, programas, medidas e ações voltados à proteção do patrimônio edificado; móvel; paisagístico; imaterial; arqueológico e espeleológico; bem como à educação patrimonial.

Museu de Território
De acordo com a minuta do acordo, o município de Mariana seria o responsável pelas desapropriações dos imóveis – que “não abarcará o terreno do imóvel da Igreja das Mercês e cemitério anexo, que continuarão de propriedade e posse da Arquidiocese de Mariana” – e por instituir o museu. Ele seria administrado por uma empresa escolhida por edital por 30 anos e depois passaria a ser de responsabilidade do município, conforme o documento.

“O Compromissário Município de Mariana se obriga a realizar o chamamento público de projetos para instituição de Museu de Território (ou Museu de Memória Sensível) no terreno correspondente ao distrito de Bento Rodrigues, com ampla divulgação e transparência, conforme estudo de planejamento da área e termo de referência a ser elaborado pelos compromitentes e órgãos de proteção ao patrimônio cultural interessados, com participação da comunidade local. Prazo: até 30 dias após elaboração do termo de referência”, diz o texto.

A empresa administradora do “Museu de Território” seria subordinada a um conselho composto por: secretarias de Cultura, Turismo e Meio Ambiente do município de Mariana, Conselho Municipal de Patrimônio Cultural do município de Mariana, Comissão de Atingidos de Bento Rodrigues, Arquidiocese e membros da universidade, “nos termos de estatuto a ser elaborado pelos compromitentes, órgãos de proteção e município”.

Há 3 anos, o rompimento da barragem de rejeitos da mineradora Samarco, causou uma enxurrada de lama que inundou várias casas em Bento Rodrigues. Até hoje as vítimas não foram indenizadas

A proposta do acordo prevê também a desapropriação da área alagada de Bento Rodrigues pela Samarco em 2016 para a construção do dique S4. A obra, duramente questionada por ambientalistas e alvo de protestos dos atingidos à época, foi realizada com a justificativa de conter a lama de rejeitos.

Ela foi autorizada pelo ex-governador Fernando Pimentel (PT) por meio de decreto que previa o fim de sua atividade, iniciada em 20 de setembro de 2016, para 20 de setembro deste ano: “o prazo de vigência desta medida interventiva é de três anos”, diz o decreto. Membro da Comissão dos Atingidos de Bento Rodrigues, Marquinhos Muniz contou que passa pelo distrito quase diariamente e não há nenhuma movimentação para o descomissionamento do dique S4.
Muniz teve suas propriedades alagadas pela obra mesmo sem ter fechado acordo com a Samarco à época e até hoje não recebeu nenhuma indenização da empresa. “A Samarco usa aquela área lá, mas eu não recebi nenhum centavo das três áreas de herança e das duas minhas que foram alagadas, mas não somente eu estou nessa situação”, contou.
A minuta do TAC em negociação abre brecha para que a Samarco faça apenas o descomissionamento parcial do Dique S4: “as compromissárias Samarco, Vale e BHP Billiton obrigam-se a realizar o descomissionamento total ou parcial do Dique S4, nos termos indicados pelos órgãos competentes de Estado e auditoria externa independente, nos prazos por estes indicados”, diz o documento.
A minuta prevê ainda que as empresas “continuarão responsáveis pelo monitoramento e segurança de eventuais estruturas remanescentes do complexo Germano, inclusive Dique S4, caso o descomissionamento seja parcial”. Os custos da desapropriação ficariam a cargo da mineradora, que teria que pagar também o valor de R$ 311,98, corrigido desde 20 de setembro de 2016 até a data do efetivo pagamento, “por metro quadrado de imóvel contido na requisição administrativa de terreno para implantação do Dique S4, referente ao período entre 20/09/2016 e 20/09/2019”.
Segundo o documento, o município de Mariana teria que incluir no tombamento do distrito de Bento Rodrigues a “previsão de que não é compatível a atividade de mineração na área e no seu entorno”. O receio dos atingidos é de que, depois de o município tomar posse dos terrenos, a Samarco construa outra barragem onde hoje é o dique S4. “A gente tem muito medo de, por exemplo, desapropria e depois entrega para a Samarco”, disse Marquinhos.
A previsão do diretor-presidente da Vale, Eduardo Bartolomeu, é que a Samarco volte a operar em Mariana no segundo semestre do ano que vem, conforme afirmou em teleconferência com analistas em agosto deste ano. De acordo com nota enviada pela mineradora, “a Samarco vai reiniciar suas operações de forma gradual, sem utilização de barragem para disposição de rejeitos e com a implantação de um sistema de disposição e tratamento de rejeitos. Esse sistema inclui a filtragem para o empilhamento a seco, que corresponde a 80% do rejeito gerado, e a Cava de Alegria Sul, que receberá os demais 20%. O retorno operacional está condicionado à obtenção da Licença Operacional Corretiva (LOC) do Complexo de Germano, em Mariana, processo que está em análise na Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Minas Gerais (Semad). A previsão é que as obras para implantação da planta de filtragem sejam concluídas em um prazo de cerca de 12 meses após a obtenção da LOC.”
A história se repete
Para Maria Teresa Corujo, representante do Fórum Nacional de Comitês de Bacias Hidrográficas, única ambientalista que representa a sociedade civil na Câmara Técnica Especializada em Mineração (CMI) – órgão vinculado ao Conselho Estadual de Política Ambiental (Copam), que dá a palavra final nos processos de licenciamento do setor –, a minuta do TAC em negociação é a prova de que os ambientalistas estavam certos em 2016:
“Desde àquela época [da construção do dique S4] a gente achou que aquilo seria uma forma de dar para a Samarco não só a possibilidade de não ter que tirar aquela maior parte do rejeito, que ficou naquela área, como também ficar com uma nova barragem de rejeito a partir de uma coisa chamada dique. E aí, se realmente esse TAC se concretizar como definitivo, para a empresa é uma mão na roda”.
Na sua avaliação, o que aconteceu em Bento Rodrigues está se repetindo em Brumadinho. Ela citou como exemplo as obras emergenciais que estão sendo realizadas pela Vale nos municípios de Barão de Cocais e Itabirito e nos distritos de André do Mato Dentro e Macacos. “Para nós, está muito claro que essas estruturas são para realmente expulsar as pessoas de seus territórios, para não só garantir a continuidade como também ampliação das minas”, alertou.
“E isso é o modo muito similar, ao nosso ver, do que aconteceu com o dique S4, onde, naquela época, foi um ato do governador, requisição administrativa, aquelas propriedades simplesmente foram colocadas à disposição para se fazer o dique S4 no sentido de evitar uma tragédia, porque a lama não continuaria descendo. Muito igual ao que está acontecendo esse ano com essas obras emergenciais após o rompimento em Brumadinho, em barragens que, mesmo não tendo rompido, ganharam um selo de ‘em risco’”, acrescentou.
Questionada, a Samarco informou que “o descomissionamento do dique S4 está sendo tecnicamente discutido junto ao Governo do Estado” e “que não construirá barragem para disposição de rejeitos no local onde está o dique S4.” A mineradora “reitera que a decisão de construir o dique S4 foi tomada após uma ampla e profunda discussão e análises técnica” e diz que ‘a obra foi essencial para que a água que chega ao Rio Gualaxo do Norte, subafluente do Rio Doce, esteja dentro dos parâmetros estabelecidos pelo Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama).”

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