Professora de inglês sofre processo disciplinar por falar sobre feminismo na cidade que é berço do MBL

A professora de inglês Virginia Ferreira, em fotografia dentro de sala de aula com uma aluna. Foto: Arquivo Pessoal.

Por Felipe Betim.

O projeto do Escola Sem Partido não vingou, por ora, como lei nacional. Mas em algumas cidades, o programa, que prega o fim de uma suposta “doutrinação de esquerda” dentro dos centros de ensino, já é uma realidade na rotina de professores de escolas públicas e privadas. É o caso de Vinhedo, município de mais de 70.000 habitantes a cerca de 80 quilômetros da capital São Paulo, berço do direitista Movimento Brasil Livre (MBL), nascido no final de 2014 para lutar nas ruas pelo impeachment da então presidenta Dilma Rousseff (PT). Dois projetos de lei para instituir o Escola Sem Partido ?uma das bandeiras do grupo— acabaram arquivados na Câmara dos Vereadores, mas isso não impediu que Virginia Ferreira, de 58 anos, e professora de inglês da rede pública municipal há 20 anos, sofresse um processo administrativo por falar sobre feminismo e a violência contra as mulheres em sala de aula no ano passado. Ela é filiada ao esquerdista PSOL, mas garante que não mistura sua militância com seu trabalho dentro de sala de aula, por considerar que seria antiético de sua parte.

Era início do ano letivo e a Escola Municipal Professor Ricardo Junco se preparava para as atividades do mês de março, quando é celebrado o Dia Internacional da Mulher. Algumas semanas antes da data, Ferreira começou a conversar com seus alunos sobre o tema, de modo a prepará-los para as atividades do mês seguinte. Pediu em sua turma de 8º ano que os adolescentes —de idades entre 13 e 15 anos— respondessem um questionário e fizessem uma pesquisa em casa sobre alguns conceitos e correntes históricas do feminismo, abordando alguns estrangeirismos e relacionando a temática com o próprio conteúdo do livro didático, que trata de personagens que atuaram a favor dos direitos civis. “Já nesse processo a diretora me chamou para avisar que havia a queixa de mães de alunos. Pensei que se tratasse da abordagem, não do conteúdo, e me coloquei a disposição para explicar meu trabalho”, recorda Ferreira, em entrevista por telefone ao EL PAÍS. Algumas semanas depois do Carnaval, outra notícia chegou por meio da diretora. “Ela veio me dizer que eu precisava ir na Secretaria de Educação prestar esclarecimentos, porque um pai havia apresentado uma queixa na Ouvidoria”, conta.

Na reclamação, bastante abrangente, o pai dizia que Ferreira usava suas aulas para ensinar sobre feminismo e “ideologia de gênero”. E que usava o português para se comunicar com os alunos. “Mas é claro que uso o português, é a língua mediadora entre o conteúdo que vou trazer e os alunos, que possuem um entendimento heterogêneo da língua inglesa”, justifica. “Minha aula não tem nenhuma estrutura de doutrinação, a gente faz um trabalho de diálogo, de conversa. Busco aproximar o conteúdo dos alunos e problematizar os temas trabalhados. É uma dinâmica já de anos em sala de aula”, afirma. Para a Secretaria, Ferreira argumentou ainda sobre o papel do professor em se fazer uma reflexão sobre a condição da mulher e a necessidade de se combater a violência contra ela, segundo o relato que consta no documento. Ela conta já ter acolhido alunos que choravam por ter visto a mãe sendo agredida pelo pai em casa, ou ainda “casos de alunas que sofreram abuso e violência dentro do próprio lar”.

No 14 de março, o MBL de Vinhedo publicou em sua página no Facebook a gravação que uma aluna —e filha do pai denunciante— havia feito de Ferreira. No áudio, de cerca de um minuto, Ferreira falava sobre a violência psicológica à qual as mulheres geralmente estão submetidas e abordava as correntes históricas do feminismo. Em outro vídeo publicado no Facebook no mesmo mês, o vereador de São Paulo, Fernando Holiday, afirma que a professora “filiada ao PSOL, ao invés de de dar aula inglês, estava dando aula de feminismo”, obrigado os alunos a escutar “aquele verdadeiro proselitismo político”. Ainda no primeiro semestre, Holiday concedeu entrevistas, uma delas ao EL PAÍS, em que fazia uma autocrítica em sua forma de defender o Escola Sem Partido: “A forma que defendi muitas vezes teve como efeito colateral uma demonização do professor, que já é um profissional extremamente desvalorizado pelo Estado e pela sociedade brasileira”.

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