Primeiros a parar na pandemia, profissionais da cultura relatam abandono do governo

Trabalhadores do setor representam 5,7% do total de ocupados no país: 44% dos são autônomos e não possuem renda fixa

(Brasília – DF, 22/01/2020) Encontro com Regina DuarterFoto: Carolina Antunes/PR/

Por Pedro Stropasolas.

A cultura foi um dos primeiros setores a parar em meio à pandemia do coronavírus. Sessões de cinema, shows de música, estreia de peças, concertos e exposições de arte foram suspensos logo na chegada do vírus ao país. Todas as atividades, que dependem da aglomeração de gente e da venda de ingressos, foram interrompidas, mas não houve um plano para suprir a renda dos profissionais do setor.

Um levantamento da conferência musical SIM São Paulo indicou o cancelamento de 8.141 eventos e um prejuízo estimado em cerca de R$ 442 milhões, em 21 estados brasileiros – com um público que estava estimado em oito milhões de pessoas.

Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad), o setor cultural envolvia, em 2018, mais de 5 milhões de trabalhadoras e trabalhadores, representando 5,7% do total de ocupados no país – 44% desses profissionais são autônomos.

Mas a crise da cadeia que tem no artista sua ponta mais reconhecida, atinge principalmente quem atua por trás das câmeras ou dos palcos. É o que garante Inti Queiroz, produtora cultural e docente em gestão cultural pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)

“Muita gente acha que o setor cultural é basicamente de artistas. Mas além de artistas e produtores, nós temos técnicos, figurinistas, costureiras, maquiadores, montadores de palco, logística, eletricistas… Existem algumas produções onde a gente tem mais de mil pessoas trabalhando, em um espetáculo como o Fantasma da Ópera, por exemplo. É muito difícil dizer de fato quem trabalha com cultura ou não no Brasil, justamente por ser um setor autônomo com muita dificuldade de ser reconhecido como um trabalho”, explica.

:: A jornada dos trabalhadores dos serviços essenciais que não param na quarentena ::

Precarização

Fly atua no processo de montagem de luz dos ambientes e na construção de refletores alternativos em eventos de rua e para bandas musicais da cidade de São Paulo (SP). Com as paralisações, foi preciso se reinventar em outros ofícios para pagar as contas.

“O trabalhador da cultura já tem um processo de precarização e de muitas vezes jornada dupla, tripla, em que a gente tem que participar de trabalhos, exercer trabalhos para uma remuneração, uma vez que nosso trabalho principal não cobre toda a nossa despesa. Agora no período de pandemia, a gente tem que se virar para trabalhar em diversas áreas para conseguir cobrir esse rombo no orçamento”, conta a profissional que atua na cultura popular e em espetáculos LGBTI, como a peça Segunda Queda, realizada em fevereiro no emblemático Teatro Oficina.

:: Demissões, perda salarial e redução de jornada: como ficam os trabalhadores formais? ::

A dificuldade de quem desenha a luz dos espetáculos é a mesma de sonoplastas, como é o caso de Gabriel Barbosa, que precisou adaptar o projeto que vinha construindo – a peça didática  “O voo sobre o oceano”, inspirada no dramaturgo alemão Bertold Brecht – para o formato virtual de podcast.

“Desde o começo do ano, a gente tava preparando essa peça. A gente ia começar a fazer bilheteria, porque essa não foi com edital, não foi com nada. A gente contava realmente com bilheteria, com o público. Então a gente teve que recomeçar em um outro nível, que não tem esse encontro. Você tem o material disponível e a pessoa tem que dar uma colaboração espontânea”, revela o trabalhador de 29 anos.

A gente contava realmente com bilheteria, com o público. Então a gente teve que recomeçar em um outro nível, que não tem esse encontro.

Para além das mudanças na rotina de trabalho forçadas pela pandemia, Fly considera que o momento pede uma transformação mais profunda das relações humanas, não somente com a arte, mas da organização social como um todo. “A gente precisa construir uma sociedade nova, com valores mais juntos, com valores de solidariedade, onde a gente tenha de fato um modelo de produção que abarque toda a sociedade e não se baseie nessa exploração de um por cento sobre o resto da população”, finaliza o artista das luzes, de nome não binário.

Cadê a ministra?

Na última semana, a Secretaria Especial de Cultura do governo de Jair Bolsonaro (sem partido), apresentou uma instrução normativa que flexibilizou a execução de projetos culturais financiados por meio do Programa Nacional de Apoio à Cultura, implementado pela Lei Rouanet.

Foi a única ação específica voltada aos trabalhadores do setor anunciada pela secretária Regina Duarte durante a pandemia. Na ocasião, a atriz definiu a normativa como “a primeira vitória de muitas que virão”.

A iniciativa é vista pelos trabalhadores da cultura como insuficiente em meio a urgência que a paralisação completa do setor demanda. O despreparo de Duarte vem recebendo críticas do próprio presidente, que chegou a admitir essa semana a secretária tem “dificuldade” para liderar a pasta.

Renda emergencial

Enquanto isso, uma proposta para minimizar os efeitos da covid-19 na economia criativa vem tramitando na Câmara dos Deputados e aguarda votação. De autoria dos deputados José Guimarães (PT/CE), André Figueiredo (PDT/CE) Fernanda Melchionna (PSOL/RS), Perpétua Almeida (PCdoB/AC), Alessandro Molon (PSB/RJ) e Waldenor Pereira (PT/BA), o projeto de lei 1089 prevê a distribuição de uma renda emergencial para trabalhadores da cultura. A proposta é aguardada com urgência pela classe artística.

No caso de São Paulo, há dois projetos de caráter semelhante que aguardam aprovação. Um deles a nível estadual, o Projeto de Lei 253, de autoria da bancada do PSOL e da deputada Leci Brandão (PCdoB); e o outro voltado à capital paulista, o Projeto de Lei 227 formulado pelo vereador Toninho Vespoli (PSOL).

Enquanto o poder público não age, iniciativas de solidariedade tentam ajudar os trabalhadores que já vêm sofrendo com a falta de recursos. É o caso da plataforma Backstage Invisível, um grupo de apoio criado para ajudar montadores, carregadores, técnicos, seguranças, equipes de limpeza, e todos que trabalham atrás das cortinas dos shows e espetáculos.

A iniciativa da Epah Studios, com o apoio do grupo “Ajuda a Graxa – SP”, vem distribuindo cestas básicas para de famílias que já estão com sérias dificuldades. Para doar é preciso entrar em contato com a organização da campanha no e-mail [email protected] ou acessar a plataforma virtual.

“Novas formas tem sido pensadas, mas para gente recuperar o mercado como ele era acredito que só no ano que vem. Uma coisa que agrava também a dificuldade da galera do nosso mercado é que ele nunca foi organizado em termos de entidade de classe. Então as pessoas ficam meio perdidas, sem ter acolhimento. Por isso esse tipo de inciativa que a gente está vendo no Brasil inteiro é bastante importante”, afirma um dos organizadores da campanha, o técnico de áudio Renato Carneiro, que vive em São Paulo.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.