Presença de Espírito

Por Fernando Evangelista.

Respire fundo, abra bem olhos, aperte o terço, porque esta é uma história sobre espíritos assustadores, dietas perigosas, neurônios canibais, previsões cabalísticas e, no meio disso tudo, um menino tímido chamado Fred e seu tio Roberto.

Tio Beto era um boa-praça, extrovertido e boêmio, a alegria em pessoa, um “rivotril humano”. A família gostava dele, os amigos o amavam, sua esposa o amava, menos o sobrinho Fred.

Assim como o conflito atual na Palestina (terra de Jesus), e as desavenças antigas em Asa Branca (terra do Roque Santeiro), tudo começou com um mal-entendido. A mãe de Fred, lavando roupa ou ouvindo rádio, costumava dizer que seu irmão Beto possuía “uma tremenda presença de espírito”. Falava isso com tanto espanto, marcando bem cada sílaba, que o menino imaginava o espírito morando dentro do seu tio.

O menino perdeu muitas noites de sono, suando no travesseiro, atormentado com a imagem do espírito dominando os gestos, as vontades e até as piadas daquele familiar terrível. Tudo o que o tio falava, por mais engraçado que fosse, por mais inteligente que pudesse parecer, só podia ser, ora pois, vindo de um fantasma. E isso era terrível.

Os fantasmas eram terríveis nos anos 70. Só nas décadas seguintes, quando Chico Xavier tornou-se mais conhecido e Marco Maciel assumiu a vice-presidência da República, essa coisa de fantasma ficou mais ou menos banal. Naquele tempo, porém, fantasma era tabu.

Então, como todos os anos, houve um grande almoço de Páscoa. O menino estava fazendo dieta e sofria com as restrições alimentares. Por azar, colocaram-no, na mesa, ao lado do tio Beto que, além de assombração, era um apreciador de vísceras, torresminhos de porco e carnes exóticas. De repente, ao pé do ouvido, o tio falou bem baixinho: “Querido Fred, a lucidez exige certa dose de loucura”.

O menino ficou petrificado. Era um aviso sobre o destino, sem dúvida. O fantasma queria lhe dizer alguma coisa. Escreveu a frase no caderno e tentou decifrá-la. Imaginou milhares de combinações, fez cálculos com o número de vogais, multiplicadas pelo número de consoantes, somou tudo com as letras do seu próprio nome e estudou os resultados sob à luz da cabala. Foi inútil. Não entendia a terrível advertência.

O tempo passou, o menino cresceu e foi tocando a vida, mas nunca se esqueceu daquela frase. Há três semanas, 30 anos depois, Fred finalmente compreendeu o que seu tio quis dizer naquele domingo de Páscoa. E descobriu por acaso. Ele estava tomando café e lendo o jornal, quando se deparou com a notícia.

Segundo pesquisa desenvolvida no Albert Einstein College of Medicine, em Nova York, e publicada na revista Cell Metabolism, os neurônios responsáveis pelo apetite, percebendo a restrição de alimentos, tornam-se canibais. O sistema entra em colapso e fica mais nervoso do que o habitual.

De pacatas e pacíficas células, os neurônios passam a assassinar sem piedade seus semelhantes e depois, como nos velhos folhetins, praticam a autofagia. Um salve-se quem puder, uma guerra civil cerebral, uma Bovespa neurológica.

Estava claro, o mistério fora desvendado. Na verdade, Tio Beto, que sabia das coisas, disse: “a lucidez exige certa dose de gordura”. Sim, gordura, e não loucura, como o menino havia entendido. Para ser lúcido, e a pesquisa comprovava isso, é preciso comer sem censura, sem remorso e sem economia.

Desde então, Fred passou a abordar todas as pessoas da mesma maneira. Sem dizer oi, tudo bem, como vai, ele automaticamente dispara a pregação: “Se você faz dieta, cuidado: você pode estar perdendo neurônios e, por consequência, inteligência”.

Sem esperar perguntas ou espantos, ele explica os detalhes da pesquisa, acrescentando suas próprias conclusões: “desconfio que seja impossível ser muito inteligente e, ao mesmo tempo, muito magro. As grandes inteligências exigem abundância corporal”.

Indiferente ao interesse ou não do interlocutor, Fred continua: “claro que nem todo gordo é gênio, porém são raros os gênios muito magros, com exceção do Stephen Hawking, aquele da Física, e do Ricardo Viel, aquele do Purgatório”.

A pesquisa nada afirma a respeito, mas Fred deduz que se as mulheres fazem mais dieta do que os homens, elas estão mais propensas a perder neurônios. Essa última afirmação, como era de se esperar, tem lhe causado alguns arranca-rabos.

Em poucos dias, aquilo virara uma obsessão. Segundo a família, Fred não muda o disco, fala o dia inteiro sobre este assunto e, enquanto fala, come. Come sem parar, como se quisesse compensar antigas frustrações calóricas.

Comendo, deixa-se envolver pela filosofia: “mesmo que o Tio Beto tenha dito que a lucidez exige certa dose de loucura, ainda assim seria certeiro e cada vez mais atual. Basta abrir o jornal para lhe dar razão. É preciso ser um pouco louco para seguir fingindo normalidade”, divaga. O discurso, relatou um familiar, termina com a mesma frase, num tom grave e pausado: “Tio Beto era um profeta”.

Fred tirou o velho quadro com a imagem do Gandhi da parede e a substituiu pela foto do tio Beto. Embaixo, como se fosse um epitáfio, acrescentou: “Eis um gênio da humanidade, quiçá o maior de todos, que Deus o tenha”.

Imagem: neoteo.com

 

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